terça-feira, 27 de junho de 2017

A conversão reformista


1. A principal surpresa da atual fórmula governativa - cuja improbabilidade inicial gerou a alcunha de "Geringonça" - está no facto de os dois partidos da extrema-esquerda parlamentar (o PCP e o BE), até aí assumidamente "partidos de protesto" e antissistema, se terem rendido ao papel de pajens do Governo PS, a troco de umas centenas de milhões de euros para as suas cosntituencies eleitorais e de alguns lugares nas altas instituições do Estado (como o Tribunal Constitucional e o Conselho de Estado), metendo na gaveta os seus princípios doutrinários mais identitários, nomeadamente a condenação do capitalismo, o desprezo da democracia liberal, a repulsa pela globalização, a rejeição da integração europeia em geral e do euro em particular, a hostilidade à disciplina orçamental e a defesa das reestruturação da dívida pública.
Essas "vacas sagradas" ainda figuram na sua retórica política. Mas já são só "lip service" para militante ouvir. Tal como tantos a quem condenaram no passado, os revolucionários viraram reformistas soft.
Expedita conversão e barata feira!

2. Desde o final do séc. XIX, a extrema-esquerda sempre denunciou sem contemplações as cedências da social-democracia ao "reformismo" e a sua conversão à "democracia burguesa" e ao capitalismo. Só que desde o congresso de Gotha (1875), já criticado por Marx, até ao congresso de Bad-Godesberg (1969), que abandonou definitivamente a perspetiva marxista, revolucionária e anticapitalista, essa lenta transição da social-democracia europeia, que vai de Berstein a Willi Brandt, demorou quase um século e foi "transacionada" pela construção do Estado social, a grande conquista política do sec. XX, baseada nos direitos dos trabalhadores e nos direitos sociais.
Em comparação, a conversão da extrema-esquerda lusa ao "reformismo social" demorou um breve momento e foi feita a troco de algumas "prendas" orçamentais e políticas avulsas. Lénine e Rosa Luxemburgo não devem acreditar no que veem por estas bandas.

3. Mesmo que a Geringonça não tenha continuidade - e para já nada indica que a fórmula esteja esgotada -, as coisas não voltarão a ser como eram no panorama político em Portugal.
Uma vez perdida a "virgindade" na partilha do poder e na barganha governativa, os dois partidos da esquerda da esquerda não podem mais voltar às posições anteriores de radicalismo protestário, sob pena de descrédito. Para todos os efeitos passaram a fazer parte do "arco do poder" do sistema político que até agora tinham combatido.
Afinal, a inédita experiência da Geringonça pode redundar numa inestimável contribuição para a renovação e inclusividade do atual sistema político! Ainda bem!