domingo, 31 de outubro de 2004

As razões do "Le Monde"

Excepcionalmente, o Le Monde toma posição nas eleiçõs presidenciais norte-americanas. Sem surpresa, por Kerry contra Bush. Na sua fundamentação o vespertino francês escreve:
«Car il s'agit bien d'un choix entre deux visions du monde et du droit. (...) La vision du président Bush est celle d'un pays en guerre, (...) une guerre si particulière qu'il faut lui sacrifier des règles de droit sur lesquelles est fondée la démocratie américaine, remplacer la tradition de transparence par l'opacité et la manipulation, et ignorer l'architecture internationale qui est au centre d'un consensus mondial depuis plus d'un demi-siècle.
John Kerry sait que le monde a changé le 11 septembre 2001. Mais il refuse de voir dans le terrorisme quelque force supérieure qui justifie une remise en cause des fondements de la démocratie américaine et de l'ordre international. (...)
Pour la marche du monde, une victoire de John Kerry est préférable le 2 novembre. Pour que l'Europe et les Etats-Unis aient une chance de prendre ensemble un nouveau départ. Et pour qu'à la Maison Blanche s'installe une équipe non plus guidée par le Bien et le Mal, mais par le droit et la justice
[Sublinhados acrescentados]

Fingimento

Imagine-se que o comissário europeu indigitado para a pasta da concorrência proclamava em plena audição parlamentar a sua convicção nas virtudes dos monopólios e dos cartéis. Ou que o comissário escolhido para o pelouro do alargamento manifestava as suas reservas à entrada de novos países, para preservar a coesão da UE. Obviamente teriam de ser afastados, por manifesta incompatibilidade com as suas funções. Seria perfeitamente ridículo que alguém viesse protestar contra uma pretensa violação do seu direito à opinião.
Ora é a esse ridículo que se submetem aqueles que contestam o afastamento de Rocco Buttiglione, que estava indicado para a pasta da Justiça e que defendeu posições claramente discriminatórias por causa de orientação sexual ou entre homens e mulheres na família, em flagrante violação da Carta de Direitos Fundamentais da UE. Os comentadores que continuam a bater a tecla do "saneamento ideológico" do ex-comissário fingem não ver que o que está em causa é uma questão de incompatibilidade política entre as suas posições e o cargo para que Barroso o tinha (mal) indicado.

Vantagem à esquerda

A sondagem de opinião publicada ontem no Expresso sobre o posicionamento político dos portugueses -- somente os quadros estão disponíveis na edição online -- reitera três características relativamente constantes do panorama político nacional desde a consolidação da democracia no nosso País:
a) Uma esmagadora maioria de portugueses adultos (quase 90%) continuam a auto-identificar-se politicamente de acordo com a tradicional "grelha" gradativa esquerda/centro-esquerda/centro-direita/direita (embora uma pequena percentagem admita oscilar entre o centro-esquerda e o centro-direita), contrariando os que, como recentemente J. Pacheco Pereira, no Público, defendem a perda de interesse da contraposição esquerda/direita como instrumento de identificação e de análise política;
b) O conjunto esquerda/centro-esquerda recolhe uma sensível vantagem sobre o conjunto centro-direita/direita, confirmando a existência de uma "maioria sociológica" à esquerda, que anteriores estudos de opinião tinham revelado, a qual neste momento deve aparecer mais reforçada pelo mau estado do actual governo de direita na opinião pública;
c) O quadrante do centro-esquerda supera em muito o quadrante da esquerda (29% contra 19%), o mesmo sucedendo na comparação do centro-direita com a direita (26% contra 15%), o que confirma o predomínio das posições de esquerda moderada e de direita moderada.
Deste modo, em condições normais a chave dos resultados das diversas eleições está essencialmente na opção conjuntural dos eleitores que não se identificam nem à esquerda nem à direita (11%) e daqueles que admitem oscilar entre o centro-esquerda e o centro-direita (cerca de 7%), bem como nas diferentes taxas de abstenção em cada um dos quadrantes.

Contraditório sobre o Protocolo de Quioto

«(...) O efeito de estufa e o correspondente efeito de aquecimento global não se devem unicamente ao dióxido de carbono e a outros gases resultantes da queima de combustíveis fósseis nas centrais térmicas. Um contributo muito importante provém da poluição provocada por partículas microscópicas de fuligem, suspensas na atmosfera, as quais, além do mal que fazem aos pulmões, revelam também um efeito de estufa considerável.
Muitas dessas partículas são emitidas pelos motores diesel que equipam automóveis e camiões e que não dispõem dos relativamente eficazes dispositivos de retenção que se encontram nas centrais térmicas. Se conseguíssemos acabar com a poluição provocada pelas partículas de fuligem na atmosfera, cerca de metade do efeito de estufa seria atenuado e o Protocolo de Kyoto perderia impacte. (...) Para além disto tudo, muito do que se tem escrito acerca do aquecimento global é pura fraude, de pseudo-cientistas, abrigados no IPCC, no Greenpeace e noutras organizações com forte poder mediático, que massacram o público com alarmismos injustificados, com o propósito, fácil de adivinhar, de se manterem na ribalta e de recolherem os vastos fundos que os governos, à cautela e com receio da opinião publicada, lhes põem à disposição.
Na verdade, o principal factor de alteração climática na Terra continua a ser o Sol e as variações da respectiva radiação. (...)»

(Jorge Oliveira, Engenheiro electrotécnico)

sábado, 30 de outubro de 2004

Gente perigosa

Nem o ex-director do "Diário de Notícias", Fernando Lima -- que foi o último a saber, por notícia pública, que ia ser despedido -- nem a escritora Clara Ferreira Alves -- de cuja nomeação para o mesmo lugar o "Expresso" ficou a saber por «fontes governamentais» -- merecem o vexame de que foram vítimas. Manifestamente esta parceria PT-PSD que manda no Lusomundo não tem escrúpulos na desconsideração das pessoas. Esta gente não é confiável!

Já não podem passar um sem o outro

Segundo o "Público", com a sua ameaça televisiva de fazer novos atentados terroristas nos Estados Unidos Bin Laden «entra na campanha americana contra Bush». Mas parece-me evidente que este só pode agradecer a ameaça, que dá razão à sua campanha de medo e de segurança. Um excelente apoio nas vésperas das eleições. Por outro lado, como mostra a situação no Iraque, a política de Bush só tem reforçado o apoio da Al-Qaeda no mundo árabe.
Verdadeiramente já não podem passar um sem o outro...

Afinal o problema não era somente português

Logo após a assinatura do Tratado constitucional da UE Jacques Chirac anunciou que o Conselho Constitucional francês irá ser chamado a pronunciar-se sobre se a Constituição francesa precisa de ser revista para que a Constituição europeia possa ser ratificada pela França. Entrevistado pelo Le Monde sobre os aspectos que podem suscitar problemas constitucionais, o constitucionalista Olivier Duhamel, que também foi membro da Convenção constitucional europeia, menciona especialmente a primazia do direito comunitário sobre o direito interno (incluindo as constituições nacionais), que agora consta explicitamente no Tratado constitucional europeu (embora já decorresse desde há muito da jurisprudência do Tribunal de Justiça europeu).
Como se sabe, foi essa uma das razões que entre nós justificou a revisão constitucional no primeiro semestre do corrente ano, introduzindo na CRP o referido princípio da primazia do direito comunitário. Desse modo, Portugal removeu oportunamente os obstáculos constitucionais que poderiam impedir a aprovação da Constituição europeia. Pelos vistos outros países só agora vão resolver tal problema.

Qualidade de vida a termo certo

«O Departamento de Ambiente e Qualidade de Vida da Câmara Municipal de Coimbra pôs a concurso dois lugares de coveiro com contrato de trabalho "a termo certo", pelo prazo de seis meses. Excelente termo para este tipo de tarefa.
É requisito obrigatório ter a escolaridade obrigatória. Dá-se preferência a quem tenha experiência profissional no desempenho efectivo de funções na área para que é aberto o concurso. Sublinha-se que é preciso ter desempenhado tais funções; não basta ter formação.
Haverá avaliação curricular e entrevista profissional em data a anunciar; não está indicado o horário, mas é de presumir seja pelas horas da morte. Da grelha da análise curricular constará seguramente um item sobre a satisfação dos utentes -- os candidatos terão 3 dias úteis para o fazer, dado ser esse o prazo de candidatura ("3 dias úteis contados da data de publicação do presente aviso"). R.I.P.»

(Carolina e HC Mota)

Até o Economist!

Era o que faltava na imprensa europeia de referência contra Bush. Depois do apoio do Finantial Times à candidatura de Kerry, até esse baluarte conservador que é o The Economist britânico apela aos seus eleitores norte-americanos (quase meio milhão de exemplares vendidos nos Estados Unidos) que impeçam um novo mandato de Bush votando em John Kerry. A mensagem do editorial desta semana é:
«(...) as Mr Bush has often said, there is a need in life for accountability. He has refused to impose it himself, and so voters should, in our view, impose it on him, given a viable alternative. John Kerry, for all the doubts about him, would be in a better position to carry on with America's great tasks.»
Esta tomada de posição é tanto mais importante quanto é certo que o semanário apoiou Bush há quatro anos, bem como a guerra no Iraque. Mas agora, embora sem excessivo entusiasmo em relação a Kerry, não conseguiu ignorar a incompetência de Bush na ocupação do Iraque nem as maciças violações dos direitos humanos em Guantánamo e em Abu Grahib, que mancham a autoridade moral dos Estados Unidos. A opção era inevitável:
«With a heavy heart, we think American readers should vote for John Kerry on November 2nd».
Mais um golpe profundo na credibilidade europeia do actual inquilino da Casa Branca.

PS - Em contrapartida, como informa o Expresso Online, o grande capital financeiro e industrial suíço com interesses nos Estados Unidos financia generosamente a campanha de Bush. São racionais: as políticas de Bush favorecem fortemente os seus interesses, designadamente pela redução dos impostos dos mais ricos.

sexta-feira, 29 de outubro de 2004

Medo e liberdade ...

... na América e em Portugal, eis o tema da coluna de Vicente Jorge Silva no Diário Económico de hoje (também recolhido no Aba da Causa, com link aqui ao lado).

Uma experiência com futuro

Microcrédito, uma experiência com futuro é o título da conferência que a Associação Nacional do Direito ao Crédito (ANDC) organiza nos próximos dias 5 e 6 de Novembro, na Fundação Calouste Gulbenkian. Lá se discutirá a experiência do microcrédito no combate à pobreza e ao desemprego, mas não só. Empresários que começaram como micro-empresários e que gerem hoje empresas de sucesso, a nível internacional, como a Critical Software, uma empresa incubada no Instituto Pedro Nunes da Universidade de Coimbra, relatarão também a sua experiência. David Storey, director do Small Business Centre da Universidade de Warwick e consultor da OCDE, estará entre os conferencistas. Um excelente programa que se anuncia para esta iniciativa de Manuel Brandão Alves, que a organizou, e de Jorge Wemans, que preside à ANDC.

Roma II

Quase meio século depois do Tratado que criou a CEE, é assinado hoje o Tratado que aprova a Constituição Europeia. Na mesma cidade e no mesmo local. Os protagonistas são muitos mais (25 em vez de 6). O mercado comum, que era o objectivo principal em 1957, deu lugar a uma União Europeia com múltiplas atribuições, incluindo relações externas e defesa. De uma associação de Estados nasceu depois uma comunidade de cidadãos europeus.
Roma testemunha de novo a realização da história da integração europeia.

Capataz ou Presidente?

É curioso como alguns nos nossos media, em assomo nacional-servilista, querem ver «visão estratégica» onde a gestão de Durão Barroso falhou, «triunfo» onde há derrota de um estilo confrontacional, «iniciativa» por quem revela não ter verdadeiro poder, nem autonomia - nem parece ter ganas para os conquistar. Porque o episódio não engrandece, antes volta a revelar as dificuldades de Barroso em gerir crises (um jornalista estrangeiro dizia-me como já as tinha percebido perante o distanciamento dele no auge da «época» dos fogos em 2003...). E aqui está uma das diferenças entre Barroso e um Delors (a outra, inter-ligada, vai aos princípios - alguém imagina Delors a tolerar desafios provocatórios a valores fundamentais por um qualquer «glione»?). Nesta diferença reside o que, em última análise, faz uma Comissão forte ou fraca: a qualidade da liderança.
Não é o PE, nem são realmente os governos representados no Conselho, quem determina se a Comissão é fraca ou forte, como pretendem todos aqueles que, desconcertados ou despeitados, se desforram em acusações ao PE, por estar pronto a exercer o poder democrático que lhe foi conferido (e afinal, nem precisou de votar...). Não por acaso, são exactamente os mesmos que habitualmente desvalorizam o PE, acusando-o de inútil, incapaz de se impor, de falta de representatividade, de «défice democrático», falta de iniciativa legislativa (como se dependesse apenas do próprio PE), etc.... Como José Manuel Fernandes, no PÚBLICO de ontem (concordo inteiramente com a crítica que Vital Moreira lhe faz no post «ENFRAQUECIMENTO DA COMISSAO?» ).
JMF tem, porém, razão num ponto: na constatação de que os actuais governos europeus não querem uma Comissão forte. Em especial os governos dos grandes países (e basta ver como a imprensa francesa e alemã se atiram como gato a bofe ao Presidente Barroso, vingando-se das afrontas que ele terá infligido àqueles países ao atribuir pastas «menores» aos seus comissários). Esses governos - e o britânico - só queriam um capataz para o seu «directório» - e por isso foram buscar um PM a um país médio, um país a afundar-se por uma governação desastrosa, cada vez mais a divergir dos parceiros europeus. Um PM fresquinho de uma clamorosa derrota nas urnas. Ele fingiu não perceber, achou-se durão, julgou calar críticos arranjando oito mulheres, oito, (mas, tal como os homens, convém ver que mulheres) e distribuiu pastas judiciosamente, pensando arreliar os grandes «ma non troppo». Mas bastou atravessar-se-lhe na frente um irritante «glione», para perder o jogo de cintura, escorregar .... e borregar (na óptica dos «gliones»).
O Presidente da Comissão José Manuel Barroso não está em causa - ainda. E eu espero que não venha a estar. Pela Europa e por Portugal, evidentemente. Mas para isso ele tem de ter aprendido a lição. Tem de aproveitar a oportunidade de recompor a proposta de Comissão mostrando firmeza e exigência junto dos governos que o designaram, mostrando que quer ser Presidente a sério e não mero capataz do pretendido «directório». E para isso precisa de se apoiar no PE e na legitimidade reforçada que só o PE lhe pode conferir e à Comissão. Porque é também disso que depende termos a Comissão forte de que a Europa precisa.
E o PE é a primeira instituição a querer uma Comissão forte. Como bem disse a Barroso o líder dos Liberais-Democratas Graham Watson: «se quer ter uma Comissão respeitada pelos governos, respeite e apoie-se no PE. Porque se eles não respeitarem o PE, ainda menos vão respeitar a sua Comissão».

Ana Gomes

A inteligência de sobreviver

Qualificar de "inteligente" o volte-face que o Presidente Barroso operou diante do PE ontem só sublinha a "burrice" da inflexibilidade anterior. Porque recuar "in extremis", mais do que da inteligência, releva do instinto de sobrevivência. Que Durão Barroso tem, tão ou mais aguçado do que a inquestionável inteligência. O que lhe falta é coragem para romper a tempo com situações em apodrecimento (como aquela em que se - e nos - atascou na governação em Portugal): fugas "in extremis" nunca são a melhor solução, sejam para a frente ou para trás.
E esta (mais uma) que acabou ontem por operar no PE, a inteligência de Durão Barroso já lha soprava antes: foi o que ele admitiu quando confessou diante do Grupo dos Liberais do PE, na noite de 26, que tinha já tentado livrar-se de Buttiglione, mas Berlusconi resistia... O que constituiu uma dramática confissão de impotência, além da tal falta de coragem: bastava tê-lo já dito publicamente, que as pressões sobre Berlusconi de outros governos europeus e também internas (até Gianfranco Fini logo se mobilizou...) se teriam exercido, como agora se vão inevitavelmente exercer, para mandar Buttiglione para outras paragens.
Se Durão Barroso tivesse tido a coragem de anunciar ao PE durante o dia 26 (ou mesmo na manhã de dia 27) que, depois de escutados os grupos parlamentares, tinha decidido pedir a Berlusconi que substituisse Buttiglione, o ambiente no PE teria mudado radicalmente: o abcesso desincharia de imediato e, de caminho, até "salvaria" outros problemáticos comissários-indigitados, como as Sras. Kroes, Udre, Fisher-Boels e os Srs. Kovaks e Dimas. Para os Liberais-Democratas, determinantes na contagem que fez recuar Barroso, Buttiglione era "o problema". Os sinais estavam dados pelo PE desde 11 de Outubro, data do chumbo de Buttiglione por uma das Comissões que o audicionara. E Barroso não os soube ouvir ou não os quis ouvir. O que não é novo - também não ouvia a oposição em Portugal.

Ana Gomes

Há momentos de sinceridade assim


(Mapa petrolífero do Iraque)

Numa entrevista do Diário Económico de ontem com Severin Borenstein, Director do Instituto de Energia da Universidade da Califórnia, pode ler-se:

«O petróleo esteve no centro [da decisão norte-americana de invadir o Iraque], não para benefício exclusivo das companhias americanas, mas para alimentar o mercado mundial de petróleo, incluindo o dos Estados Unidos. Não acho que Bush tenha sido pressionado pelo sector petrolífero para invadir o Iraque e até podemos argumentar que essas mesmas empresas estariam hoje melhor se a ofensiva não tivesse tido lugar. Só que muito americanos, incluindo o Presidente, acreditam ter direito a gasolina barata e querem manter o fluxo de petróleo a baixo preço. Nesse sentido, Saddam Hussein era uma ameaça e foi uma das razões para invadirmos o Iraque
Afinal foi mesmo uma "guerra pelo petróleo". Há momentos de sinceridade assim...

Obrigação de contraditório

Depois de, através do Ministro Gomes da Silva, ter atacado publicamente Marcelo Rebelo de Sousa por este manter um comentário televisivo "sem contraditório", o Governo recusa-se agora a comentar as gravíssimas declarações do mesmo comentador perante a Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS), onde revelou que a TVI o pressionou directamente para deixar de criticar o Governo e acusou este de ter pressionado directa ou indirectamente a TVI para esse efeito.
Afinal, o contraditório é só quando convém? Só que agora, em vez do direito ao contraditório que antes infundadamente reclamou, o Governo tem uma obrigação de contraditório. O que está em causa é demasiado grave para permitir a fuga pelo silêncio. "Prima facie", a acusação do comentador ao Governo faz todo o sentido, dada a sucessão dos dois acontecimentos. Por isso, politicamente, cabe agora ao Governo o ónus da refutação. Se este não desmente convincentemente a referida acusação, deixando validar a convicção da sua veracidade, não pode ficar impune. É isso a responsabilidade democrática.

PS - Sendo de presumir que Marcelo R. de Sousa, quando foi chamado a Belém, revelou ao Presidente República tudo o que agora disse à AACS, é caso para perguntar se Sampaio tem dormido sem pesadelos desde então...

quinta-feira, 28 de outubro de 2004

Microcrédito, macro-realizações

E se além da liberdade de criar empresas houvesse também um direito de iniciar uma actividade por conta própria mesmo para quem não tem os necessários recursos financeiros? Tal é o objecto do meu artigo de hoje no Diário Económico sobre o direito ao crédito e o microcrédito (reproduzido também no Aba da Causa, acessível no link aqui ao lado na coluna da direita).

A maioria perdeu a vergonha

A recusa da maioria PSD/PP em admitir a presença de Marcelo Rebelo de Sousa em audição parlamentar -- idêntica àquela a que compareceu o presidente da TVI, Pais do Amaral -- constitui uma vergonha para a Assembleia da República e uma afronta ao regular funcionamento das instituições democráticas. Depois de tanto se ter criticado a fórmula das intervenções televisivas de Marcelo, invocando a ausência de contraditório, esta atitude releva a hipocrisia e a má-fé da maioria. A maioria perdeu a vergonha -- e já nem cora por causa disso.

Confesso, porém, não ter ficado surpreendido com esta nova subversão da ética parlamentar. Em mais de dois anos e meio como deputado cheguei à triste conclusão que maioria não é rigorosamente sinónimo de democracia e pode mesmo ser o seu contrário: a ditadura arbitrária e intolerável de uma maioria sobre os direitos das minorias e violando o princípio fundamental do contraditório e do debate democrático (e esse é bem mais obrigatório no parlamento do que em programas televisivos).

As regras elementares de equidade e civilidade democrática que deveriam inspirar o funcionamento do parlamento são sistematicamente torpedeadas, sempre que a maioria não tem previamente assegurado um desfecho favorável às suas posições (ou receia vê-las postas em causa). Não lhe basta ser maioria. Tem de silenciar as vozes dissonantes com o coro acrítico de rebanho dócil pelo qual afina. Mesmo quando essas vozes, como é o caso de Marcelo, provêm do seu próprio campo (ou precisamente por causa disso...).

Se tudo isto não deveria incomodar o Presidente da República enquanto garante do regular funcionamento das instituições e guardião supremo dos direitos, liberdades e garantias constitucionais, então o que é que o incomoda?

Vicente Jorge Silva

Nada de novo na frente mediática

Para uma reflexão fria sobre o negócio dos media, hoje no Jornal de Negócios (artigo reproduzido também no Aba da Causa, cujo link se encontra aqui ao lado na coluna da direita).

Luís Nazaré

Enfraquecimento da Comissão?

Discordo do argumento de José Manuel Fernandes hoje no Público, vendo no chumbo da equipa de Barroso perante o Parlamento Europeu um sinal de debilitação da Comissão no sistema de governo da UE, enfraquecimento que só pode ser prejudicial para a UE e para os pequenos e médios Estados-membros como Portugal.
Hoje o principal perigo para a Comissão vem da tendência intergovernamentalista em curso e do reforço dos poderes do Conselho, onde os governos dos grandes Estados-membros têm um peso político acrescido (dado o sistema de voto ponderado e a votação por maioria), ao contrário da Comissão, onde o peso dos Estados é igual. Por isso uma efectiva aprovação política da Comissão pelo Parlamento só robustece a sua posição perante os governos nacionais e o Conselho, de duas maneiras: (i) mostra aos governos que não podem nomear para a Comissão quem eles quiserem e ao presidente da Comissão por eles nomeado que não pode formar livremente a equipa; (ii) empresta à Comissão uma legitimidade e uma força política acrescida em face do Conselho, já que ela lhe pode contrapor o apoio expresso do Parlamento europeu, o único órgão directamente eleito. O pior que poderia suceder à UE, em termos de legitimidade das suas instituições, era ter uma Comissão "empalmada" pelo Conselho e "imposta" ao PE, e um parlamento desprovido de poder, apesar de directamente eleito.

PS - Para desqualificar a oposição do PE em relação a Buttiglione, JMF lembrou-se de ir buscar um escabroso texto de juventude do deputado europeu Daniel Cohn-Bendit. Ora sucede que, ao contrário do italiano, Cohn-Bendit enjeitou oportunamente esse triste episódio da sua biografia, velho de décadas, e não é candidato ao posto de comissário da Justiça, mas sim deputado. Seria admissível, por exemplo, que alguém fosse buscar as declarações ou atitudes de Barroso enquanto jovem maoista como argumento para o rejeitar como Presidente da Comissão?

A razão conta

Um estudo de opinião do Pew Research Center sobre as eleições presidenciais nos Estados Unidos relata que mais de metade dos eleitores que há um mês estavam indecisos tomaram entretanto uma decisão e que entre estes se verifica uma clara vantagem de Kerry sobre Bush. A principal razão invocada pelos eleitores para a preferência do candidato democrata refere-se aos debates entre os dois candidatos, que Kerry venceu. Eis uma explicação para o desvanecimento da nítida vantagem que Bush tinha nas sondagens eleitorais, sendo hoje imprevisível o resultado de 2 de Novembro.

USA: «A negação da dignidade humana»

No seu extenso relatório sobre as violações de direitos humanos na "guerra ao terror" a Amnistia Internacional descreve pormenorizadamente como os Estados Unidos «falharam em respeitar as garantias básicas dos direitos humanos, abrindo a porta à tortura e aos maus tratos», desde Guantánamo ao Afeganistão, passando obviamente pelo Iraque. A Amnistia reclama a realização de um inquérito independente a todas essas situações.
Publicado a alguns dias apenas das eleições presidenciais norte-americanas, o relatório da prestigiada organização é um poderoso libelo contra as intoleráveis violações dos direitos humanos por que é responsável a América de Bush.

Rua da Judiaria

Primeiro aniversário do Rua da Judiaria, de Nuno Guerreiro. Um primor de design ao serviço de uma fina erudição e sensibilidade judaica. Parabéns!

«Cavaco anti-santana»

É assim que o Expresso online vê as declarações de Cavaco Silva sobre os perigos do regresso da indisciplina nas finanças públicas. Na verdade, o sério alerta do antigo primeiro-ministro, embora sem destinatário identificado, visa obviamente a inflexão de política orçamental do Governo Santana Lopes, já posta ao serviço do ciclo eleitoral do final da legislatura. A crítica é ainda mais digna de registo tendo em conta que se Cavaco quiser ser candidato às eleições presidenciais ele precisa obviamente do apoio oficial do PSD.

quarta-feira, 27 de outubro de 2004

A derrota da Comissão de Barroso

1. A democracia na UE sai fortalecida com o recuo de Barroso, face à sua iminente derrota no Parlamento Europeu. Os governos e o presidente da Comissão ficaram a saber que a investidura parlamentar desta é para ser levada a sério, não podendo ser encarada como um carimbo antecipadamente tomado por garantido. Trata-se de um passo em frente no caminho para uma verdadeira democracia parlamentar europeia. Os que lamentavam o "défice democrático europeu" só podem ver neste episódio um motivo de satisfação.

2. Uma conhecida comentadora criticava hoje numa rádio a esquerda europeia por condenar Bettiglione em razão das suas ideias morais e religiosas, quando o seu currículo mostra que ele não utilizaria o seu cargo para implementar tais ideias. Ora, como se sabe, a esquerda é minoritária no PE, pelo que a derrota de Barroso só foi possível por causa da firme oposição, entre outros, dos liberais-democratas (o que é mais do que compreensível, dado que as posições em causa são sobretudo uma ofensa à cultura liberal). Além disso, o que o currículo do indigitado comissário italiano mostra abundantemente, como se referiu várias vezes aqui no Causa Nossa, é que ele não hesita em utilizar os cargos públicos para fazer valer a sua agenda moral e religiosa ultraconservadora.

Entradas de durão, saídas de cordeiro...

Assim se pode resumir o volte-face do Presidente Barroso diante do Parlamento Europeu, de ontem, altas horas da noite, para hoje de manhã cedo. Como já suspeitava nos meus "posts" de ontem, a arrogância e a dureza seriam de pouca dura. E vimos o Durão de ontem transformado no europeista flexível, conciliador, submisso, desequilibrado apenas na vertigem de quase bajular os deputados europeus (não é reflexo MRPPista, mas apenas falta de chá ...).
Antes assim. Mais vale tarde do que nunca. Evitou o pior e tem agora nova oportunidade para reconstituir a proposta de Comissão e obter para ela um endosso claramente maioritário, condição indispensável para que possa preservar a independência e capacidade de acção - sua e dela. Que é justamente o que a Europa precisa e o que querem os que, como eu, criticaram a sua anterior proposta.
Uma das lições que o Presidente Barroso certamente já tirou, é que não pode avançar contra a maioria do PE e sem pelo menos uma parte dos socialistas. E por isso não vale a pena ofender, como fez ontem, tentando meter no mesmo saco da extrema-direita anti-europeia os deputados que criticavam a sua proposta pela esquerda (incluindo muito boa gente da sua própria família política liberal e centrista).
Mas também há uma grande lição a extrair pelos deputados e pelos governos europeus - lição que tanto é dada pela determinação do Sr. Buttiglione e das forças filosóficas e políticas que ele representa, como pela determinação daqueles que o/as contestaram e contestarão: é que a hora dos compromissos centrões, moles e mal-cheirosos está em declínio. Voltou a Europa do debate ideológico e do confronto político. E foi sempre essa a Europa que fez progredir os europeus e avançar o mundo.

Ana Gomes

terça-feira, 26 de outubro de 2004

Quem tramou Clara?

Do cibernauta Nelson Henriques, um contributo para o nosso concurso "Quem tramou Clara?":

"Existe pelo menos mais uma dúzia de outras possíveis razões:
1- O Diário de Noticias, com Clara Ferreira Alves (CFA), seria mais um órgão preocupante : 'Há que definir limites à sua independência' (Morais Sarmento);
2- Luís Delgado foi 'independente demais' e foi desautorizado, pelas tais 'fontes governamentais' citadas pelo Expresso;
3- O CDS/PP vetou uma perigosa esquerdista/liberal. Enquanto não for re-educada ideologicamente, CFA não pode tomar posse;
4- António Ribeiro Ferreira queixou-se a LD que estava a ficar esquecido e que ele é o 'independente' que o Governo procura;
5- Mário B. Resendes 'excedeu-se' e não consultou previamente a PT, ie, Luís Delgado, o reformador;
6- Depois das confissões de LD no Diário Digital, tudo mudou na Global Noticias. LD disponibilizou-se para acumular a função de director do DN;
7- Paulo Portas meteu uma cunha a favor de um 'independente do PP' . Diz-se que é um dos assessores de Celeste Cardona;
8- O novo director do DN acumulará com o cargo de director do SNIP (Serviço Nacional de Informação e Propaganda), Paulo Velez;
9- A Media Capital fez uma oferta irrecusável ao Primeiro Ministro, para comprar o DN . 'Ou me vende o DN ou eu confesso que me telefonou a pedir a cabeça de MRS' (Paes do Amaral)
10- CFA foi preterida a favor de Cinha Jardim. Aguarda-se o seu regresso da quinta da TVI;
11- A PT Multimedia vai apostar no '24 horas' como jornal de referência. O DN vai manter-se como tabloide. Por essa razão CFA recusou o convite;
12- O novo director do DN, segundo fontes próximas do gabinete do Primeiro Ministro, será o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa.

'Fontes governamentais' fizeram-me chegar mais algumas 'dicas' que, por serem informação privilegiada (como disse Paes do Amaral), não posso revelar..."

Nelson Henriques é um sério candidato ao troféu Causa Nossa.

"Pior do mesmo"

Por que é que um segundo mandato de Bush seria muito pior do que o primeiro, eis o que procuro demonstar no meu artigo de hoje no Público, com o título em epígrafe (também reproduzido no Aba da Causa - link na coluna da direita, ao lado).

Durão ou nem tanto?

"Barroso was the one who painted us into a corner"... queixou-se esta noite, na reunião do Grupo Socialista do PE (200 membros),na presença de seis comissários-indigitados da família política, um deputado britânico.
Antes um dos comissários havia revelado que, no final da sessão da manhã, juntos haviam dito a Durão Barroso que só tinha três hipóteses:
1) avançar para o voto amanhã e enfrentar a elevada probabilidade de a Comissão Barroso chumbar ou passar por uma escassa margem de votos - o que significava ficar ferida para sempre;
2) pedir mais tempo, adiar o voto e entretanto explorar possibilidades de redistribuição das pastas ou de recomposição da Comissão - o que Barroso continuava a recusar;
3) ou forçar a desistência de Rocco Buttiglione (e houve quem sugerisse que Monti, competente e prestigiado, apoie-se ou não a sua actuação, bem podia ser deixado por Berlusconi na Comissão...).
Durante a reunião várias vozes se elevaram a expressar repúdio pela atitude desafiadora e arrogante e os instintos antidemocráticos evidenciados de manhã por Durão Barroso no Parlamento Europeu, quando sentiu perder o pé e julgou poder perder o verniz impunemente (como tantas vezes aconteceu na Assembleia da República). Muitos frisaram como isso nada de bom augurava para as relações entre comissários e entre a Comissão e o PE, se a Comissão Barroso sobrevivesse. Outros sublinharam que a Europa precisa de uma Comissão forte e a Comissão Barroso já estava condenada a ser fraca nesta fase do campeonato, pelos erros de julgamento e pela obstinação de Barroso, incapaz de travar a escalada provocatória de Buttiglione.
Não deixei de lembrar aos deputados socialistas europeus mais chocados que os portugueses bem tinham avisado (incluindo pelo voto que derrotara Durão Barroso nas europeias...).
Mas também sublinhei que quem tinha de ajudar agora a limpar a "mess" criada pela dureza de Durão eram os governos que tinham inventado o Presidente Barroso, incluindo vários da família socialista. Governos que estavam agora, conspicuamente, muito caladinhos - e até o Conselho estiveram ausente esta manhã no debate no PE, deixando a cadeira vazia e Barroso sozinho. Governos que, abismados pelas enormidades de Buttiglione e a inabilidade política de Barroso, já nem tinham coragem para recomendar um sentido de voto aos seus deputados.
É que é esse, evidentemente, o significado de todos os deputados do Labour, PSOE e SPD - que em Julho aprovaram o Presidente Barroso - se incluirem nos 200 votos socialistas assumidos esta noite contra uma Comissão em que Barroso mantenha Buttiglione tal como propôs.

Ana Gomes

Durão de pouca dura?

Durão Barroso saiu de certeza preocupado esta manhã do Parlamento Europeu, depois de ter ouvido várias deputadas da direita queixar-se de "coração pesado" por causa das afirmações inaceitáveis do Sr. Buttiglione (uma delas afirmou-se católica, para se demarcar das buttiglionescas teses).
O problema do indigitado Presidente da Comissão não é de facto a esquerda que nele não votou, nem sequer o Grupo Socialista (onde muitos há que praticam pouco...), mas aqueles que antes o apoiaram e que ele agora está a alienar, sustentando Buttiglione (incluindo os socialistas espanhois e os trabalhistas britânicos).
O problema de Durão Barroso não são também os Liberais que claramente dizem que não aceitam Buttiglione.
O problema dele não são sequer as deputadas do PPE de "coração pesado", mas que votam a favor. São sobretudo as (os?) que nada dizem e que podem pura e simplesmente não votar.
Atitudes arrogantes, de ofensa gratuita, segundo as velhas tácticas MRpp (como o de tentar conspurcar quem contesta Buttiglione à esquerda com a coincidência táctica da extrema-direita), como na exibição do final desta manhã de Durão Barroso, só revelam desespero e não vão valer de nada para a Comissão amanhã conseguir o número de votos mínimo para ser aprovada.
O que ainda pode salvar a Comissão indigitada - que já demonstrou ser fraca, fraquíssima, por comissários outros além do Sr. Buttiglione e barrosa liderança - é, no mínimo, o Presidente indigitado não perder mais tempo e tratar de explicar ao Sr. Buttligione que precisa urgentemente de "passar mais tempo com a família" - o que um homem tão preocupado com as famílias dos outros certamente apreciará...

Ana Gomes

Buttiglione não serve para Comissário

Tenho estado a receber mensagens de pessoas - que certamente não contribuiram para me eleger - apelando a que vote a favor da Comissão Europeia indigitada e realçando as qualidades do Sr. Buttiglione, que mais não teria feito que afirmar convicções pessoais e por elas não deveria ser censurado.
Não estão em causa as qualidades técnico-jurídicas do Sr. Buttiglione, nem as suas convicções pessoais ou religiosas. Não reprimo a liberdade de opinião seja de quem for, liberdade que muito prezo e exerço: por ela também me insurgi contra a posição do Governo português no caso do "Borndiep" e pelas pressões que levaram à saída da TVI do comentador Marcelo Rebelo de Sousa. Nem me interessam realmente as convicções pessoais do Sr. Buttliglione, ou de qualquer outro Comissário/a indigitado/a, se vão à missa aos domingos ou ao astrólogo de vez em quando.
Mas, atenção: foi o Sr. Buttiglione quem trouxe para a esfera política a referência à homossexualidade como "pecado", ao casamento como instituição para as mulheres procriarem protegidas pelos homens e a sua crítica ofensiva das mães sozinhas e do equilíbrio pessoal dos respectivos filhos ou filhas. Como uma dessas mães, só tenho razões para me orgulhar do produto e mandar bugiar reaccionários insultuosos como o Sr. Buttiglione... Mas não são também os meus sentimentos pessoais que estão em causa, antes a avaliação política que faço, como deputada eleita, das qualidades e capacidades políticas do comissários indigitados, e portanto também Sr. Buttiglione, para co-governar a UE na Comissão Europeia.
Ora, se o Sr. Buttiglione trouxe estas questões para a esfera política das audições no PE é porque quer que tenham consequências políticas. E eu não duvido, antes pelo contrário, da sua inteligência e do seu conhecimento do Parlamento Europeu, para o qual até foi eleito na legislatura anterior. E por isso não posso desvalorizar como escorregadelas ou ingenuidades infelizes as sucessivas declarações do Sr. Buttiglione, mas antes considerá-las como uma deliberada escalada de afrontamento ao PE (e de constrangimento de Durão Barroso), na linha do pensamento filosófico integrista que o Sr. Buttiglione e alguns outros católicos fundamentalistas, que consideram o Vaticano II demasiado "liberal", procuram transformar em prática política. Pensamento que ofende a moral pública europeia - e por isso tantos, de direita e de esquerda, católicos e não católicos, o repudiam no PE e fora dele.
Mas esta não é a única razão, nem talvez a mais importante, que determina a inadequação, no meu entender, do Sr. Buttiglione "político" para exercer o cargo de Comissário da Justiça e Liberdades.
Basta ver o curriculum de Buttiglione, em defesa da posição de Berlusconi, contra o mandado de detenção europeu.
Basta ver a posição que o seu Governo defende contra a investigação científica em células embrionárias, de que foi expoente a acção determinada e corajosa do actor Christopher Reeves, recentemente falecido. (Posição retrógrada, a que aliás, curiosamente, o Governo português tem dado apoio, de forma inédita, colocando Portugal na primeira linha de defesa de um projecto de resolução na ONU com vista a proibir qualquer investigação científica desta natureza; ao lado dos Governos dos Estados Unidos, da Costa Rica e naturalmente da Itália).
Basta, por fim, ver a proposta do Sr. Buttiglione de criação de campos de acolhimento de imigrantes e refugiados na Líbia, para perceber que Direitos Humanos e liberdades pessoais não são preocupação do Sr. Buttiglione. A proposta, em discussão no Conselho da UE, visa impedir os imigrantes e refugiados de entrar no território europeu, negando-lhes os direitos reconhecidos às pessoas que estão no espaço da UE e colocando-os à mercê da jurisdição de regimes ditatoriais opressivos, como o que ainda vigora na Líbia, sob a batuta de Khadaffi (que, por mais apertos de mão que vergonhosamente receba do Srs. Blair, Berlusconi, Chirac ou quaisquer outros dirigentes europeus, não deixa de ser o que é - um terrorista, um violador dos direitos humanos).
E é por todas estas razões que, no meu entender, o Sr. Buttiglione "político" não serve para exercer as funções políticas que serão exigidas a um Comissário Europeu. Qualquer que seja a pasta.

Ana Gomes

Fraude

Dois municípios, Maia e Covilhã, vão obter financiamentos extraordinários vendendo aos bancos as rendas da habitação social municipal durante muitos anos. Por trás deste aparente "ovo de Colombo" está obviamente uma fraude flagrante à proibição de aumento de endividamento municipal, imposta pela lei do orçamento do Estado, frustrando manifestamente os propósitos de limitação da despesa pública e do défice público. É evidente que, tal como no endividamento, os municípios em causa realizam encaixes financeiros à custa de pagamentos no futuro, mediante afectação de rendimentos municipais futuros, onerando os exercícios financeiros vindouros, o que é substantivamente equivalente ao recurso ao crédito. Por que não venderem também antecipadamente o rendimento previsível dos impostos municipais dos próximos 10 ou 20 anos?
Para além disso, há uma questão que não foi respondida e que é essencial para a licitude do esquema. Tal tipo de operações tem fundamento legal? Onde está a lei que as prevê?

O comissário do Vaticano

O presidente da Comissão Europeia recusou fazer qualquer redistribuição dos pelouros da sua equipa para solucionar a questão Butttiglione, entre outras razões para não afrontar a reacção do Vaticano, que pelos vistos quer ter o seu comissário, mesmo não sendo membro da UE.
Na votação de amanhã no PE é provável que a Comissão de Barroso obtenha os votos necessários para "passar", embora com muitos votos contra. O desejo de não criar uma crise institucional da União deve falar mais alto dos que os erros de "casting" da Comissão e do seu presidente. Mas como assinala Teresa de Sousa no Público de hoje, tanto uma como outro saem notoriamente fragilizados deste episódio. Barroso deu um desnecessário passo em falso.

Malthusianismo profissional

«Eis um exemplo de malthusianismo profissional: a Ordem dos Advogados. Este ano decidiram fazer coisas, em meu entender, execráveis:
1. subiram a taxa (?!) de inscrição como advogado estagiário para 600 euros;
2. foi criado um exame escrito final;
3. atribuem-se créditos a acções de formação (muitas delas NÃO gratuitas), sem limite de acumulação de créditos.
É um caso de concorrência desleal, pois quem tem mais possibilidades monetárias, facilmente arranjará muitos créditos. Para "compensar" foi limitado a um certo número máximo de créditos a atribuir para as presenças em actos processuais (escalas no DIAP, julgamentos, etcetera).
(...) Junte-se a isto formadores de qualidade duvidosa na maior parte dos casos e temos o quadro feito, com a pintura bem borrada (...)»

HRA

segunda-feira, 25 de outubro de 2004

Clara

Ferreira Alves renunciou ao lugar de directora do Diário de Notícias sem ter chegado a tomar posse. Em comunicado oficial, alegou não ter a certeza de poder garantir a independência do jornal, pelo que se escusava a aceitar o convite já aceite. O que terá acontecido nos últimos oito dias? Eis um desafio à altura do Policiário do Público. Sugerem-se três alternativas:

a) Ferreira Alves não gostou de ser vista e tratada como santanete, sobretudo depois de ter mudado radicalmente a cor do cabelo que a celebrizou;
b) o inefável ministro Gomes da Silva não gostou do nome escolhido por Luís Delgado e tratou de lhe fazer sentir o seu descontentamento por esta escolha, correcta sim, mas perigosa nos tempos que correm;
c) os devotos da Casa Fernando Pessoa exprimiram de modo tão avassalador a sua consternação pela saída de Ferreira Alves, que a escritora cedeu à emoção.

Os concorrentes poderão avançar com outras construções igualmente fantasiosas, desde que sustentadas pela lógica e pelos factos que entenderem por bem invocar. O vencedor terá direito a uma recomendação do Causa Nossa para director do Diário de Notícias.
Luís Nazaré

Não são só os europeus que não querem Bush

Se as eleições presidenciais norte-americanas dependessem dos jornais dos Estados Unidos, elas seriam ganhas sem dúvida por John Kerry, como mostra esta investigação do Financial Times. Não só o número de jornais que anunciaram o seu apoio ao senador é muito maior do que os que apoiam o presidente cessante, como há vários jornais que, tendo apoiado Bush há 4 anos, decidiram agora apoiar Kerry.
Isto mostra pelo menos o grande desagrado com o desempenho de Bush na Casa Branca e a credibilidade presidencial do candidato democrata.

Buttiglione e Barroso

Como assinalei a seu tempo, o perigo de Buttiglione não são as suas ideias mas sim a tendência dos fundamentalistas religiosos como ele para imporem os seus valores a todos por via de lei, o que o torna impróprio para a pasta da justiça na Comissão Europeia. Na edição do insuspeito "Economist" da semana passada encontrei esta passagem, que confirma inteiramente os meus receios:
«Yet when Mr Buttiglione protests that he is being persecuted for his thoughts not his actions, he is being disingenuous. He is a lifelong member of a conservative organisation, Communion and Liberation, that is known for seeking to bring religious values into political life. After being made Europe minister in 2001, Mr Buttiglione astonished colleagues with a string of demands that went far beyond his remit. Within days, he had called for a ban on artificial insemination, for state funding for private schools and for payments to women who rejected abortions.»
Como era fácil de adivinhar...
Barroso deveria saber o currículo do indigitado comissário. Escolhê-lo para a Justiça não revela grande inteligência e sensatez do presidente da Comissão. Neste momento já é o próprio Barroso que está em causa.
(revisto)

Estudantes da Universidade de Coimbra

«(...) A propósito deste assunto, pergunto-me se não terá também havido, neste processo todo, uma atitude demasiado demissionária dos docentes, designadamente dos directores das diversas faculdades, que deixaram, por exemplo, fechar a cadeado um espaço público, turístico, e onde alguns professores tinham gabinetes, sem que a "tal polícia" tenha actuado, como manda a democracia e o estado de direito?
Num debate há uns meses, no Prós e Contras (RTP1), o presidente da AAC dizia que "esta política de ter que pagar propinas ia endividar gerações inteiras". No dia seguinte perguntei aos meus alunos (6º ano de Medicina, da Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa) quanto pagavam, só para não errar. Multiplicando pelos seis anos de Curso dava algo como 900 contos. Dois euros por dia... para um Curso de Medicina! Se se chama a isto "endividar gerações", então estou em crer que a maioria dos estudantes só acabará por pagar os seus "shots" e as suas "bejecas" lá para o ano 4000!
Haja decoro e, para alguma coisa, a escolaridade onde estão NÃO é obrigatória. É pena alguns esquecerem-se que o liceu ficou para trás, e que a falta de um ensino/aprendizagem profissionalizante e responsável vai-nos mantendo, cada vez mais, num plano "subsahariano" de que os estudantes vão ser as vítimas mais evidentes. Só é pena que não tenham parado um momento para reflectir sobre o assunto e sobre o que vai por essa Europa fora...»

Mário Cordeiro (FCM/UNL)

Se Bush ganhar



Uma das consequências da eventual recondução de Bush na Casa Branca seria, dentro em breve, uma maioria ultra-conservadora no Supremo Tribunal dos Estados Unidos, com a subsequente mudança de jurisprudência em questões decisivas como a despenalização do aborto, a separação entre o Estado e as igrejas, a defesa do ambiente, a licitude da "acção positiva" em favor dos afro-americanos e outras minorias étnicas, os direitos dos homossexuais, etc.
Vale a pena ler este texto publicado no Guardian de Londres, a começar por este excerto:
«In 2000, Bush said his favourite supreme court justices were the ultraconservatives, Antonin Scalia and Clarence Thomas. If he named four more in their image, giving them a majority on the court, then the face of modern America could be changed within a few years.
Such a bench would no longer deem abortion a constitutional right; it would allow individual states to ban it, which they would do, across swathes of the country. If past Scalia-Thomas decisions are any guide, laws on everything from clean air to access for the disabled, affirmative action for ethnic minorities to gay rights would all be struck down. (When the supreme court last year heard the case of a gay man arrested for having sex in his own home, Scalia and Thomas sided against the man and with the police.) Crucially, Thomas has argued that the Constitution's ban on established religion might not apply to the individual states.»

Apesar de Washington

A Rússia aprovou o Protocolo de Quioto sobre a limitação de gases com efeitos de estufa, perfazendo o número de ratificações suficiente para a entrada em vigor do tratado; e a Turquia, preparando o caminho para a entrada na UE, anunciou a sua adesão do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que já se encontra em funcionamento.
Apesar da feroz oposição dos Estados Unidos a estes dois tratados internacionais, as causas do ambiente e da punição dos crimes internacionais avançam na Europa e no Mundo. O império não manda em tudo.

domingo, 24 de outubro de 2004

Em resposta a "O financiamento do Ensino Superior"

1 - «Se estivesse atenta às reivindicações estudantis saberia que a questão das propinas não é a única bandeira do movimento apesar de ser a que, por motivos de urgência, tem mais protagonismo.
2 - Aprovada em Assembleia Magna uma das maiores reivindicações da AAC é a revisão do processo de Bolonha nomeadamente no modelo 3+2 ou 4+1 dos cursos, seu subsequente financiamento, bem como a questão da mobilidade (os seus custos e democraticidade) e a questão da uniformização dos cursos a nível europeu».
Ao contrário do que pensa, estou atenta. Não é a única bandeira, mas tem sido a principal, de tal modo que parece a única. Mas sei que alguns estudantes estão atentos ao processo de Bolonha e conhecem bem os dossiers. Testemunhei com muito agrado isso mesmo na reunião do Senado anterior à que estamos a discutir. Só não percebo a razão pela qual essa questão é, depois, subvalorizada. (Espero que não seja pelo facto de só vir a reflectir-se sobre os estudantes vindouros e não sobre os actuais). De resto, a minha chamada de atenção não era dirigida aos estudantes de Coimbra, mas sim aos deputados de S. Bento.

3 - «A questão de Bolonha não detém exclusividade no que diz respeito ao futuro de uma Universidade Pública e Gratuita em Portugal. Para isso também é necessário que o acesso público à Universidade seja efectivamente democrático e não através do filtro do poder económico da família do estudante».
No meu post não discuti a justiça ou injustiça das propinas, embora tenha obviamente uma opinião sobre esse assunto: (Fica para outra oportunidade). Apenas contestei a legitimidade dos estudantes para interromperem o Senado, que não têm em qualquer caso.

4 - «É pena que o corpo docente não só seja insensível às questões que mais lesam os estudantes e a Universidade como boicote sucessivamente as tentativas de resolução dessas questões e ajam em conluio descarado com um governo que está a fazer um grave e descarado ataque ao Ensino Superior em Portugal».
O corpo docente não é um corpo, felizmente. Para corporativismo bastaram-nos 40 anos. Os docentes são pessoas, umas mais atentas e outras menos (como os estudantes); umas mais participativas e outras menos (como os estudantes); umas a favor e outras contra as propinas (como os estudantes); umas mais preocupadas e outras menos com a reforma de Bolonha (como os estudantes). Não posso falar por todos, mas a avaliar pela discussão e votação no último Senado, aquilo que nos une e nos distingue de alguns estudantes é que não saímos ou berramos quando a votação não nos convém.

Márcio Diogo Augusto (aluno da Universidade de Coimbra)
Maria Manuel Leitão Marques (Professora no mesmo lugar)

Em resposta a "O voto do Partido Socialista"

1 - «Parte do princípio que o Senado é o órgão legítimo para fazer o trabalho sujo do governo - fixar propina».
O Senado tem que fazer o que lhe compete, mesmo quando o que lhe compete não aquilo que lhe é mais agradável decidir. O Senado é um órgão de governo de uma instituição pública e por isso está sujeito às leis da República. Ossos de ofício para quem no Senado quer estar representado.

2 - «Se a aprovação do Orçamento de Estado implica a exclusão de cidadãos do exercício dos seus direitos e da sua própria existência no seio do Estado governado por quem o aprova, a opção hipotética que expõe não me parece tão descabida».
Não é isso que se passa. Tenhamos tento naquilo que falamos quando discutimos a fixação do valor de uma propina. Não se trata de proscrever ninguém.

3 - «Parte do princípio que os estudantes "desafiaram" a polícia».
Até a Televisão o mostrou! Quem deitou abaixo a grade que protegia a porta? Era, aliás, um cenário previsível.Mas não é essa a questão mais importante.

4 - «Parte do princípio que os estudantes não querem deixar funcionar o Senado quando, na verdade, o objectivo é não deixar fixar propinas».
Pois é, mas acontece que fixar o seu valor é da competência do Senado. É claro que podemos sempre decidir acabar com a gestão democrática. Comissão administrativa, venha ela. O governo que a nomeie e assim não seremos obrigados a decidir coisa nenhuma.

Márcio Diogo Augusto (aluno da Universidade de Coimbra)
Maria Manuel Leitão Marques (Professora no mesmo lugar)

Já não há respeito

Parece que a AAC vai desencadear uma acção judicial contra a polícia, por ela ter impedido aleivosamente os estudantes de exercer o seu direito fundamental a invadir a reunião do Senado da Universidade de Coimbra; e contra a própria UC, por o Senado da mesma ter deslealmente tomado decisões sem esperar pela invasão dos estudantes, violando assim o seu direito de interrupção.
Realmente já não há respeito nenhum pelos direitos dos oprimidos...

É o Governo que nomeia a direcção do "Diário de Notícias"?

O Expresso de ontem informava ter confirmado junto de «fonte governamental» a nomeação de Clara Ferreira Alves para directora do Diário de Notícias. Só pode ser intriga do semanário, pois claro. O que é que o Governo tem a ver com a direcção do Diário de Notícias? Será que a Lusomundo foi intervencionada pelo Governo de Santana Lopes?

Estudantes e polícia na UC

«Como toda a gente, detesto a polícia na Universidade, o que admito ser um reflexo de uma visão clássica da UC como feudo de fidalgos e de clérigos a quem a polícia serviria para manter a plebe (os futricas) no seu lugar.
Com a polícia à porta da Universidade, seria de temer o confronto entre a força da razão e a razão da força. O que vi foram duas forças que se opunham: uma em defesa de um processo democrático de decisão, outra a favor de interesses de uma minoria de privilegiados que repetidamente boicotou aquele processo.
O uso da força é quase sempre detestável, sobretudo numa Universidade onde se espera se esgrimam argumentos. Os polícias que eu vi na TV não se comportaram pior que os seus opositores; poderiam ter sido estudantes universitários se lhes tivessem sido dadas as oportunidades que os outros tiveram.»
(HC Mota)

Democracia interna no PCP

«Desculpará mas creio que o seu texto sobre o cumprimento das regras da lei dos partidos pelo PCP padece de diversas omissões, preconceitos e entorses.
Concretamente:
(...) Não faz nenhum sentido envolver as eleições de delegados ao Congresso do PCP numa fórmula geral de «proposta oficial, vinda de cima». De facto, nesse aspecto não há qualquer diferença entre a metodologia usada pelo PCP e pelos outros partidos. De acordo com o regulamento da fase preparatória do Congresso,qualquer militante se pode candidatar a delegado ou apresentar propostas para a eleição de delegados. E, Congresso após Congresso, creio que nunca houve qualquer impugnação ou reclamação de militante ou militantes por lhe ter sido negado esse direito. (...)
Ainda no âmbito do que chama de «proposta oficial, vinda de cima» creio que, nas opiniões que emitiu, parece não estar a ter em conta que a eleição da Comissão Política e do secretário-geral do PCP decorrem no Comité Central e eu pelo menos não conheço nenhuns Estatutos nem regulamentos internos do PCP que impeçam qualquer membro do Comité Central de, nessa reunião, se auto-propor ou propor outro membro do Comité Central para Secretário-geral ou de fazer propostas globais ou parciais quanto à Comissão Política a eleger.(...)»

(Adriana Sampaio, membro do PCP)

sábado, 23 de outubro de 2004

Ferro Rodrigues ainda lhe deve estar grato!

Agora Souto Moura vem dizer em entrevista ao Expresso que, tendo sido nomeado por um Governo socialista, ele «seria o último a querer prejudicar o PS» no caso "Casa Pia". O PGR não se dá conta de que com esta pequena manobra de diversão ele só pretende esconder que foi justamente por dever a nomeação ao PS que ele o deixou massacrar e ao seu secretário-geral durante meses, sem fazer nada, só para exibir uma zelosa independência e não poder ser acusado de estar a fazer um "jeito" a quem devia o cargo. Há complexos assim...

O financiamento do ensino superior

Se os deputados da oposição estivessem atentos ao que está a preparar-se para o ensino superior, estariam a perguntar à Ministra responsável se pensa financiar o segundo ciclo, após a entrada em vigor da reforma de Bolonha. Ou, pelo contrário, se vai limitar a comparticipação pública aos três primeiros anos, deixando às famílias e ao crédito a total responsabilidade pelo financiamento dos restantes dois. Essa sim é uma questão que influenciará decisivamente o futuro da universidade pública democrática em Portugal.

O voto do Partido Socialista

Que o Bloco de Esquerda tenha proposto um voto de protesto contra o facto de o Reitor da Universidade de Coimbra ter pedido à polícia que garantisse o normal funcionamento do Senado não me admira. Que o PCP tenha apoiado tal voto também não. Que o Partido Socialista tenha ido a reboque é que me espanta. Imagine-se que um grupo de cidadãos, incluindo até deputados do PCP e do Bloco, impedia o funcionamento do plenário da Assembleia da República, democraticamente eleita, como forma de protesto contra a votação do orçamento. E fazia isso uma, duas, três vezes. À terceira, o presidente chamava polícia para permitir que a Assembleia funcionasse. Que faria o Partido Socialista? Pelos vistos viria cá para fora protestar, desafiar a polícia, ou no mínimo aprovaria um voto de solidariedade com os manifestantes. (1975 foi de facto há muito tempo).

Os acontecimentos de quarta-feira em Coimbra

Os estudantes têm todo direito a manifestar-se, sejam muitos, sejam poucos, estejamos ou não de acordo com os seus objectivos. Não podem é ser poder e contrapoder ao mesmo tempo. Se querem estar representados no Senado, onde têm direito a falar, a fazer propostas e a votar, devem também, na hora própria, saber ganhar e saber perder. Em democracia, não podem é servir-se do Senado quando lhes convém e impedir o seu funcionamento pela arruaça quando tal não acontece.

sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Confissões teológicas

É conhecida a forma decidida, sem quaisquer dúvidas, com que Durão Barroso envolveu Portugal na guerra do Iraque. Em Maio de 2003, poucas semanas depois da invasão, o então Primeiro Ministro admitia a participação portuguesa nas forças de estabilização, escusando-se a adiantar os moldes em que seria feita ou se seria enquadrada num mandato internacional. Questionado sobre a posição do PR acerca do assunto, Durão Barroso afirmou então que "o importante é responder às necessidades do povo iraquiano em vez de estarmos com uma discussão teológica ou formal".
Um mês mais tarde, poucas semanas antes do atentado que vitimou Sérgio Vieira de Mello e outros funcionários das NU no Iraque, Durão Barroso dizia "as NU, nesta fase, em vez de se perderem numa discussão teológica acerca de problemas de legitimidade, deveriam era colaborar pragmaticamente para a melhoria das necessidades do povo iraquiano".
Questionado agora nesta crise suscitada pela sua escolha para Comissário europeu do Sr. Buttiglione, indigitado para a pasta da Justiça e Liberdades, sobre se considerava a homossexualidade um pecado, Durão Barroso confessou finalmente: "é uma matéria teológica e em matéria teológica as minhas competências são muito limitadas".

P.S. Nada teológico, aposto, será na próxima semana o voto da esmagadora maioria das deputadas ao PE, sejam de direita ou de esquerda, ofendidas pelas tiradas arcaico-fundamentalistas do Sr. Buttiglione, em especial a última «pérola» sobre a capacidade educativa das mães sozinhas.

Ana Gomes

A democracia interna no PCP

O antigo dirigente comunista Edgar Correia tem razão quando diz que o PCP não cumpre a lei dos partidos no que respeita às eleições por voto secreto, visto que se limita a anunciar, contrafeito, o voto secreto na eleição do comité central no próximo congresso, quando a lei requer o voto secreto em todas as eleições, o que abrange desde logo as eleições de delegados ao congresso, bem como as posteriores eleições da comissão política e do secretário-geral. Causa estranheza que o partido se arrisque a ver judicialmente impugnado o congresso e as referidas eleições...
Para além disso torna-se desnecessário dizer que o PCP continua a não respeitar outro requisito essencial da democracia eleitoral, ou seja, a liberdade e igualdade de candidaturas em todas essas eleições, havendo somente a proposta oficial, vinda de cima. Enquanto os dogmas leninistas do "centralismo democrático" continuarem a prevalecer, o PCP estará sempre à margem das comuns regras democráticas na sua organização interna.

O sistema eleitoral norte-americano (adenda)

Um leitor chama-me a atenção para que o Colorado vai efectuar um referendo sobre a alteração do sistema eleitoral no sentido da repartição proporcional dos seus representantes no colégio eleitoral, que se realizará no mesmo dia das eleições presidenciais, para ter efeito imediatamente em relação a elas. Note-se que se em 2000 tivesse havido distribuição proporcional dos representantes do Colorado, Bush não teria sido eleito presidente, visto que ganhou as eleições nesse Estado com pouco mais de metade dos votos, beneficiando da totalidade dos 9 representantes, ao passo que só teria direito a 5 se tivesse havido representação proporcional, o que daria a vitória a Gore no colégio eleitoral nacional. Não é por acaso que os Republicanos se opõem à mudança de regime no Colorado.

O sistema eleitoral norte-americano é democrático?

Como se sabe a eleição do presidente dos Estados Unidos não é propriamente uma eleição directa. O que os cidadãos elegem é um colégio eleitoral composto pelos representantes dos Estados, cujo número é igual ao número de representantes de cada Estado no Congresso Federal (2 senadores mais um número de deputados proporcional à população de cada Estado).
O modo de eleição dos membros do colégio eleitoral é definido pelos próprios Estados, não estando fixado na Constituição federal. Ora quase todos os Estados escolhem esses representantes em eleições directas por um sistema maioritário de lista a nível de todo o Estado, ou seja, o candidato presidencial que tiver mais votos em cada Estado ganha todos os seus representantes (the winner takes all). Além de reduzir a disputa a dois candidatos, esse sistema permite que em caso de eleição mais renhida a vitória favoreça um candidato sem maioria de votos a nível nacional, como sucedeu com Bush nas eleições de 2000, em que Al Gore obteve maior percentagem de votos. Com apenas mais umas escassas centenas de votos na Flórida do que Gore (resultado aliás muito contestado) Bush ganhou todos os "grandes eleitores" deste Estado, um dos maiores, que lhe deram uma vitória tangencial no colégio eleitoral nacional.
Se fosse usado o sistema proporcional na eleição dos representantes estaduais deixaria de se verificar a discrepância referida. Mesmo se fosse usado o sistema de círculos uninomimais que servem de base à eleição da Câmara dos Representantes (como sucede no Nebraska e no Maine), também poderia haver uma distribuição menos iníqua dos "grandes eleitores" de cada Estado.
Ora o sistema maioritário de lista não é comum em sistemas democráticos, onde a alternativa é entre a eleição proporcional de lista ou a eleição maioritária individual. Os sistemas maioritários de lista foram em geral adoptados nos Estados autoritários que pretenderam exibir algum tipo de eleições (como sucedeu em Portugal durante o Estado Novo), com o fim de afastar qualquer hipótese de representação da oposição.
Infelizmente não se conhece nenhum movimento para alterar o controverso sistema eleitoral do Presidente dos Estados Unidos. A verdade é que a alteração só teria sentido caso fosse feita simultaneamente a nível de todo o país, visto que os Estados tradicionalmente republicanos não vão alterar o sistema se os Estados dominados pelo partido democrata o não fizerem também (e vice-versa). Por isso, a alteração só é de esperar, quando muito, nos Estados onde nenhum dos grandes partidos é hegemónico.

quinta-feira, 21 de outubro de 2004

Não há limites...

... para a leviandade e irresponsabilidade deste (des)governo. Santana Lopes propõe que os professores desocupados, por não terem horário atribuído, sejam utilizados como assessores dos juízes, não se sabe a fazer o quê!
Vai-se avolumando dia a dia a antologia dos dislates do primeiro-ministro...

as saudades que eu já tinha

Há um 4º andar na Avenida das Forças Armadas que, durante algum tempo, evitei. Olhar a casa, passar na rua. Depois habituei-me à ideia, voltei a usufruir da avenida quando havia necessidade de a percorrer e, inclusive, voltei naturalmente a observar - de passagem - o 4º andar onde passei o ano mais feliz da minha vida.
Durante algum tempo, tive a sensação de que estava abandonado. Mais tarde, repentinamente, comecei a aperceber-me de luz, de pintura nova, de mudanças na sua grande varanda.
Hoje, ao descer de carro a avenida, notei o vulto de um casal movendo-se atrás das persianas. Parado num semáforo, vi-os claramente e adivinhei-lhos os rostos e as intenções. Não tive dúvidas. Não se tratavam de novos moradores. Eram dois fantasmas, dois alegres fantasmas do tempo em que lá morou a felicidade.

20000 numa esplanada

Andava há dias a sentir um estranho mal estar físico cuja origem desconhecia. Súbito, fez-se luz: percebi que estava atrasado no meu elogio quinzenal ao Rui Branco. Assim, e aproveitando o pretexto de chegarem hoje às primeiras 20.000 visitas, saúdo o Rui, o Nuno Costa Santos, o Alexandre Borges, o João Pedro George e o Filipe Nunes (agora em Madrid, nas míticas pisadas do desaparecido Vasco Lourinho) - com um abraço de parabéns. Eles são a extraordinária equipa do ESPLANAR, um blog que, por entre poemas, traduções, análises, humor, literatura e comentários avulsos, vai cumprindo a nobre função de "Martinho da Arcada" virtual. Eles trazem-nos todos os dias as suas perspectivas sobre a vida, as relações humanas, a política, a cultura e o país - por isso saravá, um calduço no toutiço, um afago na nuca, uma festinha na moleirinha, um abraço amigo, fraterno e um grande bem-hajam!

1000 espectadores depois

O blogue e os espectáculos das Urgências continuam nos cuidados intensivos.

Domingos Farinho

Além de grande amigo, advogado, poeta, professor de Direito, aficcionado da blogoesfera e animador de meia-dúzia de blogues, o Domingos é um notável pensador político, um futuro comentador de mão cheia. E resolveu dar a cara, com coragem, em Uma Campanha Alegre - onde assina na primeira pessoa uma série de comentários e análises ao bagunçado forum onde nos calhou viver, este portugalzinho de hoje.

Para ler e aprender e discutir e comentar e linkar e.

uma questão de dialéctica

Último (e único) comentário sobre o Benfica-Porto:

Zahovic disse, um dia antes do jogo, que "não via como poderiam parar este Benfica".
Olegário Benquerença deu a resposta cabal 24 horas depois.

Referendar a Constituição europeia (2)

No que respeita à aprovação popular da Constituição, os dois primeiros referendos já marcados não suscitam dificuldades, salvo algum percalço inesperado. Na Espanha ela é praticamente pacífica em quase todo o espectro político. Em França, apesar da oposição da direita e da esquerda nacionalistas, bem como da divisão dentro do PS a esse respeito, uma sondagem recente dá ao "sim" uma confortável margem de quase 70%.
E em Portugal, como será?

Referendar a Constituição Europeia

Desta peça do Diário de Notícias de hoje retira-se que tudo se encaminha para uma revisão constitucional extraordinária (3 meses depois de uma ordinária!...) para permitir pôr a referendo a Constituição Europeia em si mesma, globalmente considerada, e não um conjunto das suas opções de fundo individualmente enunciadas. O que é incrível, e abona muito pouco a favor dos partidos e dos deputados, é que não se tenham dado conta atempadamente daquilo que era evidente, ou seja, que o pretendido referendo não cabia no actual texto da CRP...
Quanto à data do referendo, a indicada pelo Governo -- Abril do próximo ano -- pode considerar-se a data limite, tendo em conta o nosso calendário político do próximo ano (com a proximidade das eleições locais no Outono e eleições presidenciais no início de 2005). Em Espanha o referendo já se encontra marcado para Fevereiro, e em França aponta-se para Maio. Entretanto o Parlamento Europeu exprimiu a sua preferência pela simultaneidade dos referendos previstos em vários Estados membros, tendo indicado as datas de 5-8 de Maio.

quarta-feira, 20 de outubro de 2004

Malthusianismo profissional

«Gostaria imenso que pudesse dar-me a sua opinião sobre as ordens profissionais, (...) uma vez que sou um estudante do ensino superior que acha que a Assembleia da República deu um poder desmesurado às ordens profissionais. Sendo eu estudante de contabilidade numa das mais reconhecidas instituições de ensino superior nessa área vejo o meu ingresso na Câmara de Técnicos Oficiais de Contas vedado porque os membros que lá estão não querem concorrência.
(...) Esta questão não afecta só a mim mas a milhares de estudantes que ingressam no ensino superior a pensar que um dia vão poder desempenhar as funções para que estudam, e no entanto, não são as universidades mas sim as ordens profissionais que decidem o seu futuro. As ditas ordens profissionais argumentam com a qualidade dos profissionais que saem da universidade mas isso é falso. (...) Os que pretendam ingressar no Ordem dos Revisores Oficiais de Contas têm de pagar cinco mil euros para fazer os exames, e ainda fazer um estágio de três anos. Ora essa medida barra o acesso aos licenciados com menos possibilidades financeiras. Não está em questão o seu conhecimento.»

(E. Oliveira)

Comentário

Sou muito crítico desde há muito tempo da tendência malthusiana das ordens profissionais, no sentido de restringirem excessivamente o acesso à profissão, o que fazem pelos mais variados modos: elevando os requisitos académicos, conseguindo limitar logo o acesso aos cursos (como sucedeu escandalosamente com a Medicina), exigindo a "creditação" dos cursos pelas próprias ordens, criando barreiras ao acesso (exames à entrada), estabelecendo longos estágios profissionais, agravando a exigência dos exames de estágio, de modo a reprovar muitos candidatos, fixando taxas incomportáveis de estágio e de exame, etc. Infelizmente os estatutos da ordens, cujos projectos são elaborados pelas mesmas, são em geral "carimbados" sem discussão pela AR ou pelo Governo, sem que se definam as salvaguardas necessárias para garantir a liberdade de acesso. Penso que neste momento existem entre nós restrições desproporcionadas e injustificáveis à liberdade profissional.

O que resta

Num artigo de hoje no Público, Domingos Lopes defende a hipótese de Carvalho da Silva, o prestigiado secretário-geral da CGTP, para a liderança do PCP. Ainda há quem prefira alimentar ilusões de "aggiornamento" na Soeiro Pereira Gomes! Quando nada mais resta...

Poder judicial

«Serve o presente para manifestar a minha total concordância com o post "Poder Judicial, literalmente". A questão da nomeação de uma Académica reputada para a direcção do CEJ é a prova acabada de que a visão predominantemente estatutária que tem marcado a leitura de muitas nomeações confunde o essencial com o acessório. Isto é, ao polarizar-se o acerto ou desacerto da nomeação no "status" da pessoa nomeada, desmerece-se as qualidades da pessoa. Não interesssa se é magistrado ou não. Interessa antes se é uma pessoa capaz e habilitada ao exercício do cargo.
Ora, (...) manda a lógica que, na perspectivação contrária, não vislumbre qualquer "diminuição de capacidade" por parte dos magistrados (quaisquer que estes sejam) para o exercício de outros cargos públicos, em que também sobreleve o serviço à República. Apesar do "politicamente correcto" apontar para a hermetização dos magistrados nos tribunais, são ainda as mesmas razões de (i) "desendogeneização", (ii) de ausência de "incapacidades de exercício" e de (iii) enriquecimento de experiências que me levam a defendê-lo. Só assim evitaremos que "haja dois pesos e duas medidas", ou, nas suas acertadas palavras, que desejemos "sol na eira e chuva no nabal".»

(A F Cunha)

Passou-se!

As declarações do ministro dos Assuntos Parlamentares perante a Alta Autoridade para a Comunicação Social sobre a existência de uma espécie de "conspiração objectiva" do Expresso, do Público e de Marcelo Rebelo de Sousa para atacar o Governo são destrambelhadas.
Pelos vistos, para ser ministro deste governo não é preciso ser dotado de um mínimo de siso político. Qual será o próximo disparate do áulico de Santana Lopes?

Poder judicial, literalmente

Num agreste comunicado, a Associação Sindical dos Juízes (ASJP) manifesta «frontal discordância» em relação à nomeação de um não magistrado (a Prof. Anabela Rodrigues, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) para director do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), a instituição pública de formação de magistrados judiciais e do Ministério Público. O sindicato dos juízes acrescenta que essa nomeação «não credibiliza as instituições judiciárias, e não é abonatória da independência do poder judicial».
O escândalo da ASJP tresanda a corporativismo vulgar. A lei não estabelece nenhuma "reserva judicial" desse cargo, e nada a impõe ou recomenda. Até há boas razões para uma direcção "leiga": do que se trata é de formar magistrados de acordo com o interesse geral da justiça e não necessariamente segundo a concepção endógena dos próprios interessados. Por último, não faz nenhum sentido neste contexto a invocação da «independência do poder judicial», que em nada é afectada pela qualidade do director do CEJ.
Só é pena que o zelo da ASJP na defesa da independência do "poder judicial" não se tenha expresso até agora numa igualmente «frontal discordância» da nomeação de juízes para cargos exteriores aos tribunais, na maior parte dos casos por escolha política do Governo, o que é seguramente muito mais comprometedor para a sua independência. Sol na eira e chuva no nabal...
(Revisto)

Direito à independência, de quem?

Promovida pelo blogue Briteiros está em curso uma petição para conferir à Madeira o direito à independência. O propósito é virtuoso, mas duvido que eles queiram, enquanto o dinheiro continuar a jorrar abundantemente de Lisboa para o Funchal. Não será melhor conferir o direito à independência do resto do País em relação à Madeira de Jardim?! Era sucesso garantido...

terça-feira, 19 de outubro de 2004

"Jardinismo"

Os resultados das eleições regionais da Madeira -- a vitória menos expressiva de sempre do PSD e o melhor resultado de sempre do PS --, poderão eles tornar previsível a alternância democrática na Madeira e significar o princípio do fim do "jardinismo", após quase três décadas de hegemonia? Tal é o tema do meu artigo no Público de hoje (também coligido no Aba da Causa, com link aqui ao lado, na coluna da direita).

Benfica

Só agora me recompus da derrota de domingo ante o Porto. Os meus amigos lampiões é que ainda não. Dizem que tudo é preferível a perder-se assim, espoliados pelos árbitros, e que teria sido bem melhor se tivéssemos sido dominados futebolisticamente pelo clube das Antas e ponto final. Discordo. Prefiro ter perdido assim. É bem mais transparente e encorajador para a Luz.

Não subscrevo, porém, a maioria dos comentários desbragados dos da minha cor. É claro que fomos prejudicados em momentos capitais - um golo e dois penaltis por marcar -, mas não quero acreditar que tenha havido qualquer intenção dolosa por parte de Benquerença e dos seus auxiliares. O que aconteceu dentro e fora das quatro linhas decorre da normalidade futebolística lusitana.

Primeiro, o golo negado. É bem verdade que o lance é de difícil análise e que só o recurso a meios tecnológicos modernos, comuns noutras modalidades e sistematicamente negados por esse grupo de gerontes incompetentes da FIFA e do International Board, poderá um dia introduzir mais rigor na arbitragem. Acontece que a forma como o lance se desenrola e o movimento de Baía a safar a bola de dentro da baliza não deveriam deixar dúvidas a uma equipa treinada e paga para ajuizar lances difíceis num desporto de alta competição. Bastaria que, nas acções de reciclagem, tivessem aulas de física. Na sua ausência e perante a conhecida correlação de forças no futebol português, os Benquerenças aplicaram a regra habitual: em situações difíceis, o Porto deve gozar do benefício da dúvida. O mesmo se passou nos dois lances sobre Karadas, ambos para castigo máximo, como as imagens e as fotos evidenciaram.

Fora das quatro linhas, foi a rasquice suprema, para gáudio do povão.
Luís Nazaré

Esquerda v direita

«Compreendo a sua reinvindicação (...) de que "a distinção entre esquerda e direita continua a fazer sentido", mas a verdade é que os resultados de algumas sondagens recentes revelam um progressivo desinteresse dos portugueses acerca de uma tal distinção.
Julgo que seria oportuno tentar entender as razões que levam os portugueses a desinteressar-se por esta matéria. Uma explicação plausível será a de que os portugueses se encontram confundidos com a prática política dos partidos que habitualmente tomam conta do governo da nação, PS e PSD, o primeiro de esquerda e o segundo de direita, pelo menos de um ponto de vista formal.
Assim sendo, coloca-se uma pergunta óbvia. Na prática política, quem terá contribuído para a confusão e desinteresse dos portugueses: a direita, por adoptar atitudes de esquerda, ou a esquerda por adoptar atitudes de direita?
A resposta não parece difícil e convinha que fosse objecto de alguma meditação. Até porque, hoje em dia, se torna difícil classificar algumas das figuras políticas mais emblemáticas. (...)»

(Jorge Oliveira)

Serviços públicos e mercado

Os que se opõem à existência de um serviço público de rádio e televisão, como garantia mínima de uma esfera de pluralismo de informação, de ideias e de opinião (entre outras coisas), costumam defender também que deixe de haver escolas públicas, hospitais públicos, e outros serviços públicos que visam proporcionar acesso universal, equitativo e plural (e por vezes gratuito) a certos bens básicos (informação, educação, cuidados de saúde, etc.) que o mercado só por si não proporcionaria nessas condições. São coerentes, sempre pela mesma razão: eles não precisam desses serviços públicos para terem acesso privilegiado a esses bens e por isso também não querem pagá-los. Uma posição inquestionavelmente racional, pois claro!
É também por isso que a distinção entre esquerda e direita continua a fazer todo o sentido!

Guilhermina Suggia



Nos últimos dias tenho-me deliciado a trabalhar ao som de uma excelente interpretação de obras para violoncelo e piano de Heitor Villa-Lobos, que uma amiga minha brasileira, sabedora da minha paixão por obras de violoncelo, me trouxe do Brasil. Eis senão quando recebo um mail de Virgílio Marques, um dos autores do blogue Guilhermina Suggia, a anunciar a criação de uma associação de amigos/admiradores da grande violoncelista. Não resisto a divulgar o blogue e a apoiar a ideia da associação.

segunda-feira, 18 de outubro de 2004

O sono da razão democrática

Na Madeira, ainda não se processou, no plano dos factos, a transição da ditadura para a democracia: é uma constatação que qualquer pessoa com formação democrática mínima pode fazer. Mas é o que nunca fizeram, até hoje, os órgãos de soberania que, ao longo de décadas, têm contemporizado e sido cúmplices com uma situação de excepção que atenta contra os valores consagrados na Constituição da República.

Tudo se passa como se uma parte do território nacional pudesse subtrair-se ao regime democrático que nos rege. E como se isso não violasse o próprio conceito de Estado unitário ou alguns princípios essenciais do Estado de direito -- que asseguram o respeito pelas liberdades e garantias dos cidadãos, incluindo o pluralismo das opiniões.

A menoridade democrática da Madeira é entendida, por vezes, como uma fatalidade incontornável ou um fruto espúrio, uma consequência perversa dessa conquista democrática que são as autonomias. Mas estarão as autonomias à margem da lei fundamental do país? O preço a pagar pelas autonomias (cada vez mais alargadas ao longo de sucessivas revisões constitucionais) é a impunidade do regime jardinista? Eis uma questão a que os mais altos responsáveis políticos do Estado se têm furtado a responder.

A «obra» deixada por Alberto João Jardim parece caucionar a sua inimputabilidade política. Mesmo sem pôr em questão a importância física dessa «obra» (aliás altamente discutível em termos de desenvolvimento sustentado de uma região e com custos terríveis para as gerações vindouras), alguém admitirá, porém, a bondade de regimes autoritários ou totalitários (como os de Hitler ou Estaline) em nome da «obra» edificada pelos respectivos ditadores? A falta de alternância democrática da Madeira poderá ser evocada como normal e positiva em nome da «estabilidade», mesmo que essa estabilidade se confunda já com aquela que conhecemos durante o salazarismo?

A governamentalização da sociedade civil e a sua asfixia pelos poderes públicos, a desresponsabilização dos actores políticos que fazem «obra» sem assumir os compromissos devidos aos seus custos (e, ainda por cima, sufocam as liberdades) não é normal num Estado de direito democrático. Trata-se de uma efectiva monstruosidade. Mas é uma monstruosidade que não provoca grandes incómodos entre os admiradores continentais de Jardim (antes pelo contrário) nem parece ser suficiente para mobilizar de forma consequente os seus opositores.

Em relação à Madeira vivemos uma espécie de sono da razão democrática. Só que é um sono cujo vírus contamina a consciência e a vivência da democracia em Portugal. Se aceitamos como normal ou até motivo de elogios (e imitação) o que se passa na Madeira, que impede que se pense o mesmo relativamente ao resto do país?

Vicente Jorge Silva

A notícia e a não-notícia

Os Açores foram notícia no passado domingo, a Madeira não. As previsões apontavam para uma disputa de resultado muito incerto nos Açores, onde se admitia que a coligação PSD-CDS pudesse ganhar as eleições regionais. Na Madeira, pelo contrário, a única dúvida sobre o resultado eleitoral residia na maior ou menor expressão da inevitável e fatal maioria absoluta de Alberto João Jardim. Ora, numa democracia normal não há certezas absolutas sobre vencedores antecipados e, por isso, o factor surpresa faz parte da própria lógica democrática. A surpresa açoriana teve como contraponto a não-surpresa madeirense (se exceptuarmos o melhor resultado de sempre do PS). É a surpresa, a novidade, que cria a notícia, não aquilo que é previsível, velho, conhecido por antecipação. E que, como o jardinismo, cheira a mofo.

Mas a surpresa açoriana relativizou, ainda mais, a não-surpresa madeirense. Apesar de já se saber que o jardinismo estava «condenado» a obter uma oitava maioria absoluta consecutiva, ninguém se atreveu a apostar que o PS/Açores registasse uma percentagem de votos superior ao PSD/Madeira. Foi isso, porém, o que aconteceu. E assim percebe-se melhor o comportamento de Jardim na noite eleitoral. Depois do espectáculo de circo e inaugurações em que investiu mundos e fundos, não conseguiu disfarçar o inconfessável: o rancor e o ciúme por ter sido ultrapassado pelo seu congénere socialista açoriano (o qual, ainda por cima, parece ter feito uma decepcionante campanha eleitoral). Tanto circo para ficar atrás de César? Impensável. A culpa só poderia ser mesmo da imprensa do continente (os tais «patetas» que tanto o atormentam) ou dos jornalistas da Madeira que não estão comprados por ele, e que, por isso, ameaça publicamente de saneamento.

Este é certamente mais um motivo de vergonha para a Madeira, a somar aos tantos que Jardim tem protagonizado ao longo de vinte e muitos anos. Mas a Madeira tem um motivo ainda maior para continuar a sentir-se envergonhada: é por Jardim, embora em recuo, ainda tratar os madeirenses como gado eleitoral -- e esse gado eleitoral ainda gostar de sê-lo, obediente, apático e servil, às ordens de um pastor cuja boçalidade e carácter rancoroso constituem uma ofensa aos valores mais básicos da boa-educação e da civilidade. Para não falar, é claro, de valores democráticos -- que é coisa ainda muito distante da vivência quotidiana dos madeirenses.

Vicente Jorge Silva

A coligação com o PP é um mau negócio eleitoral para o PSD?

Não concordo com a tese, que vem desde as eleições europeias, de que a coligação PSD-PP seja eleitoralmente prejudicial para o PSD. É de admitir que haja uma ligeira perda de votos, quando comparada com a soma que teriam os dois partidos separadamente, mas essa desvantagem pode ser compensada com a vantagem da atribuição de mandatos, que tira proveito da concentração de votos. Além disso, pode permitir à direita ganhar ao PS, quando o PSD não o pode fazer sozinho, o que pode ser essencial para saber quem forma governo. Por isso, não creio que a coligação tenha sido responsável pela humilhante derrota de Vítor Cruz nos Açores. Basta ver o que sucedeu na Madeira, onde, concorrendo separados, tanto o PSD como o PP perderam votos, em proveito do PS. O que sucede é que a coligação governamental nacional está manifestamente em perda, pelo que os dois partidos perderão sempre votos, coligados ou não.
Mas é evidente que a ideia de que a coligação é um mau negócio permite aos próprios (sobretudo ao PSD) amenizar as derrotas, imputando-as ao parceiro de coligação, e à oposição semear a cizânia nas hostes governamentais.

O mundo de Bush

«Muitos dos suspeitos de terrorismo detidos na base americana de Guantanamo foram sujeitos de forma regular e continuada a tratamentos coercivos passíveis de serem considerados tortura» - conta hoje o Público, referindo uma investigação do New York Times. Os pormenores são de estarrecer. Eis a (in)cultura de direitos humanos e o "rule of law" (Estado-de-Direito) à maneira de Bush!

«Bush is the Problem»

«América yes, Bush no» - é assim que o vespertino francês Le Monde sintetiza o resultado do inquérito de opinião realizado em dez países sobre os Estados Unidos, cuja análise pode ser vista neste site do Guardian de Londres. Na verdade, são três os principais resultados a registar:
a) Existe uma enorme rejeição de George Bush e uma correspondente preferência por John Kerry na disputa presidencial norte-americana; Bush sofreria derrotas humilhantes em vários deles (apenas 13% em Espanha, 16% na França, cerca de 20% no Canadá e no México, 22% no Reino Unido...).
b) Mantém-se porém uma apreciação muito positiva em relação aos Estados Unidos em todos os países, com taxas relativamente elevadas em vários deles;
c) No entanto, a imagem dos Estados Unidos degradou-se nos últimos anos por causa de Bush e em especial da guerra do Iraque, fortemente condenada em quase todos os países.
Isto permite tirar especialmente duas conclusões:
a) O sentimento dominante anti-Bush não decorre de nenhum "anti-americanismo", como defendem os partidários daquele;
b) Pelo contrário, é a política de Bush que arruina o retrato da América no Mundo e amplia o sentimento anti-americano.
O ainda presidente dos Estados Unidos é o principal factor do anti-americanismo. Uma reeleição de Bush para novo mandato só pode piorar a imagem e o crédito dos Estados Unidos no mundo. Como titulava um jornal sul-coreano sobre o inquérito, «Bush is the problem».

Soma e segue

Nas eleições regionais dos Açores o PS ganhou folgadamente à coligação de direita, reforçando mesmo a maioria absoluta, com cerca de 20% de diferença na votação, esmagando as veleidades do PSD de recuperar o poder. Na Madeira, como era previsível, Jardim voltou a ganhar confortavelmente mas em nítida perda (com a menor maioria de sempre e com votação inferior à de César nos Açores), tal como o PP, ao mesmo tempo que o PS obteve uma notável subida, encurtando significativamente o enorme fosso que o separava do PSD. Quem sabe, o princípio do fim do jardinismo...
Resultado: uma jornada fagueira para o PS e claramente negativa para a direita em geral e para o PSD em especial. Na estreia eleitoral de Sócrates e de Santana Lopes à frente dos respectivos partidos (pese embora a dimensão essencialmente regional destas eleições), é evidente que, depois do triunfo nas eleições europeias em Junho passado, o PS ganhou igualmente o segundo "round" do ciclo de eleições que termina daqui a dois anos com as eleições parlamentares, no fim da presente legislatura (se não for antes...).

domingo, 17 de outubro de 2004

Previsões à moda de Zandinga

Custa dizer que a culpa do que se passou nos últimos dias, em matéria de previsões sobre as eleições regionais nos Açores, foi da comunicação social. Não sei, não estive lá para saber se o que as televisões relatavam correspondia ou não ao que viam no local. Mas a sensação que ficava em quem as ouvia, aqui no continente, era a de que o lugar de Carlos César estava em perigo. Basta lembrar a importância que foi dada às declarações de Marcelo de Rebelo de Sousa. Que o tipo de intervenções do partido socialista, dizia o comentador em tom convicto e supostamente fundamentado, era um sinal indiscutível de que se sentiam perdedores.
Lição a tirar depois dos resultados: um esforço acrescido de isenção e objectividade aconselha-se para as próximas campanhas eleitorais. A bem do prestígio da comunicação social, muito em especial da que é paga por todos nós.