quinta-feira, 18 de abril de 2019

Lisbon first (18): O resto do país não existe

Merece todo o aplauso o desempenho do Governo na greve do transporte de combustíveis, ao decretar prontamente a requisição civil, os serviços míninos e o racionamento e ao presssionar um acordo entre grevistas e entidade patronal, assim poupando o País a uma devastadora paralisação da economia e dos serviços públicos.
Só é pena que este excelente registo tenha sido manchado inicialmente pela incrível restrição dos serviços mínimos às áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, esquecendo o resto do País, como se fosse irrelevante. É atávico: visto de Lisboa, o mapa do País, com exceção de Porto, é um indefinido deserto...

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Há 50 anos, em Coimbra (II): O sítio da coragem

Desta vez, meio século depois, na mesma sala (agora chamada "17 de abril") do Departmento de Matemática da UC, Alberto Martins não precisou, como outrora, de pedir ousadamente a palavra para evocar eloquentemente os dias desse abril pioneiro, tão longe no tempo e tão perto nas emoções compartilhadas por tantos que quiseram vir rememorar esses dias de corajoso desafio à ordem estabelecida da Ditadura.

Há 50 anos, em Coimbra


Iniciam-se hoje as comemorações dos cinquenta anos da grande luta académica de Coimbra de 1969, que teve início justamente a 17 de abril, com uma manifestação na inauguração do edifício das Matemáticas, a apoiar a tentativa do Presidente da AAC, Alberto Martins, de falar na cerimónia.
Nessa mesma noite ele seria detido pela PIDE, com repressão violenta de uma manifestação espontânea de estudantes em frente às instalações da polícia política. A luta iria culminar numa greve aos exames, com uma dimensão inédita nos anais das lutas estudantis.
Pela sua repercussão nacional, apesar da censura, a luta académica de Coimbra abalou a frustre tentativa de reforma da ditadura do Estado Novo, ensaiada por Marcelo Caetano. Cinco anos depois, noutro dia de abril, o regime acabava.

+Europa (15): Proteção dos denunciantes de atos ilícitos

[Fonte da imagem: aqui]
1. No seu último plenário desta legislatura, o Parlamento Europeu acaba de ratificar o acordo alcançado com o Conselho da União sobre a diretiva legisaltiva para a proteção dos que dentro de organizações ou instituições denunciam infrações da legislação da União, quando se traduzam nomeadamente em fraude, corrupção, evasão fiscal das empresas ou lesão da saúde ou do ambiente.
A proteção dos denunciantes contra a retaliação dos visados (sanções, despedimentos, etc.) constitui uma importante condição para superar os receios na denúncia dessas situações, proporcionando a respetiva investigação e punição.

2. Sendo o âmbito da nova legislação limitado à denúncia de infrações da legislação da União, importa que na sua transposição para a ordem jurídica interna o legislador nacional alargue o seu âmbito também às infrações à legislação nacional.
Num País onde é costume fechar os olhos às infrações contra o Estado ou os interesses coletivos, urge tomar medidas para encorajar a sua denúncia, quer dentro das próprias organizações, quer às competentes autoridades externas (incluindo o Ministério Público, quando se trate de crimes), sem excluir a denúncia pública, em última instância.

Euroeleições (11): Fingimento para eleitor ver

1. Os mais importantes partidos da direita nacionalista europeus - como em França ou na Itália -deixaram de sublinhar os seus tradicionais objetivos de saída do Euro e da União, dada a fraca adesão popular dessas bandeiras. Mas é só fingimento!
No seu programa eleitoral para as próximas eleições europeias, a União Nacional de Marine Le Pen vai direito aos fundamentos da integração europeia, colocando em causa o próprio mercado interno, através de uma regra geral de "preferência nacional", que é absolutamente incompatível com as liberdades de circulação de produtos e serviços e de trabalho e capital e com a regra da não discriminação por razões de nacionalidade.
Afinal, o seu alvo não é somente o tratado de de Maastricht (1992) e a união monetária e a integração política. É mesmo o Tratado de Roma (1957), que fundou a Comunidade Económica Europeia!

2. Neste contexto, o aparente recuo dos "soberanistas" quando à saída do euro é um simples estratagema para enganar incautos. É evidente que não faz o mínimo sentido uma união monetária sem um mercado integrado.
A direita nacionalista apenas mudou de tática, substituindo o radicalismo anti-UE pelo "entrismo" institucional, ou seja, pela entrada nas instituições da União para as destruir por dentro. Aparentando ceder quanto ao euro, mantém integralmente o mesmo objetivo de o destruir, socavando os próprios alicerces da União.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Não concordo (10): Legislar sobre "casos políticos"

Discordo desta crítica sobre uma alegada corrida a "fazer leis à medida de casos políticos", desde o caso das viagens oferecidas a governantes para ir ao futebol até ao recente caso do "nepotismo" nas nomeações para os gabinetes ministeriais.
Pelo contrário: o que não se compreenderia era que, verificadas falhas de previsão regulamentar, não se tomassem medidas para as suprir, de modo a evitar a repetição desses casos. Não se trata de "legislar para o caso concreto", aliás já ocorrido, mas sim para prevenir casos idênticos no futuro (e puni-los, caso ocorram). Ora. em todas as precedentes situações referidas, as normas adotadas revelam-se equilibradas e prudentes e o mesmo se espera agora da regulação do "nepotismo", sendo já conhecidas as propostas do PS sobre o assunto.
Tal como na vida privada, os políticos não podem ser acusados por não terem cão e por o adquirirem, depois de um assalto.

Vontade popular (1): Fragmentação política

1. Nas eleições parlamentares finlandesas, a vitória do Partido Social-Democrata foi conseguida com menos de 18% dos votos e cerca de 1/5 dos mandatos!
Este resultado testemunha a fragmentação da paisagem política na Europa e a perda de apoio eleitoral das duas famílias políticas tradicionais, nomeadamente o centro-direita e o centro-esquerda, em consequência da emergência de novas forças políticas à esquerda e à direita, incluindo uma direita xenófoba, anti-imigração. O sistema eleitoral proporcional ajuda essa fragmentação.

2. Sendo de saudar a vitória à justa da social-democracia, que estava afastada do poder há muitos anos, é de registar, porém, o segund lugar da direita nacionalista dos "Verdadeiros Finlandeses", somente com um deputado a menos.
Complicada vai ser a formação do Governo, que vai necessitar de uma coligação de vários partidos para assegurar uma maioria parlamentar. Assim vai, com vida complicada, a democracia parlamentar europeia.

Euroeleições 2019 (10): O mesmo do costume?

Tinha a ilusão de que, por causa do Brexit e dos demais problemas com que a UE se defronta, o debate político nesta eleições europeias poderia centrar-se, pela primeira vez, justamente sobre temas europeus e sobre os projetos e as políticas europeias defendidas por cada partido concorrente.
Tenho de admitir que o começo na pré-campanha não é muito animador a esse respeito, pelo contrário. Quando a oposição pede um cartão vermelho ao Governo e este reage com o pedido de uma moção de confiança ao eleitorado, há, de novo, o risco de "nacionalização" das eleições europeias, travadas em torno de questões políticas nacionais. Enquanto isso, as forças antieuropeístas sentem-se livres para a sua luta contra a União...

Estado social (6): Empurrar com a barriga

1. Sem grande surpresa, um estudo académico vem mostrar que o sistema de pensões nacional vai entrar em défice daqui a 10 anos, essencialmente por causa de demografia desfavorável. Das três soluções teoricamente possíveis para repor o equilíbrio financeiro do sistema de pensões - reduzir o valor das pensões, aumentar as contribuições ou aumentar a idade da aposentação - , o referido estudo prefere a terceira.
Mesmo sem colocarem em causa as conclusões do estudo quanto ao previsto desequilíbrio financeiro do sistema de pensões, a solução aventada foi imediatamente rejeitada tanto pelo Governo como pelos partidos de esquerda e pelas centrais sindicais, sendo, aliás, evidente que a reação negativa ainda seria maior se o estudo tivesse manifestado preferência por qualquer das outras duas soluções.

2. Levantada esta questão num ano eleitoral, não existem obvimente condições neste momento para um debate minimamente sereno e desapaixonado. Todavia, é de recear que o estudo fique rapidamente esquecido e que prevaleça a atitude, na boa tradição política nacional, de esquecer o assunto numa gaveta enquanto os riscos não se concretrizarem.
Estando a economia a crescer desde há cinco anos, com a inerente subida das receitas contributivas, a tendência vai ser esperar que a economia continue a crescer indefinidamente até que uma recessão venha exigir o recurso a transferências orçamentais, colocando os impostos de todos a subvencionar as pensões.

Não dá para entender (12): Oportunismo político

Não dá para entender como é que o PSD converge com a extrema-esquerda parlamentar no que respeita à recuperação integral do congelamento da carreira do professores durante a crise, sabendo que isso implicará um enorme esforço orçmental (mais de 600 milhões por ano!) e que (mais importante) se trata de uma vantagem injusta, quando comparada com outras carreiras na função pública.
Ora, mesmo com eleições à vista, não pode valer tudo para conquistar votos, sob pena de pedestre oportunismo político. Além disso, ao aprovar um medida de tão grande impacto orçamental (direto e indireto), mesmo que não concentrado num único ano, o PSD deixa entender que não conta ganhar as eleições de outubro nem vir a governar nos próximos anos, preferindo dificultar desde já a vida do próximo Governo do PS...

domingo, 14 de abril de 2019

O que o Presidente não deve fazer (19): Ingerência no poder legislativo

1. Ao entregar ao Governo um anteprojeto de diploma sobre a proibição do "nepotismo" (nomeação de familiares) em Belém, o Presidente da República foi mais longe do que antes na interferência presidencial no poder legislativo, exercendo de facto um poder de iniciativa legislativa que lhe não compete.
Constitucionalmente, o PR só intervém no poder legislativo a posteriori, através da promulgação, ou recusa da mesma, uma vez terminado o procedimento e tomada a decisão pelos órgãos legislativos competentes. Não faz sentido que o PR intervenha a montante, seja para desencadear um procedimento legislativo, seja para influenciar concretamente a formação das leis.

2. Acresce que no caso concreto o Presidente já tinha sinalizado o seu apoio público à posição do Governo sobre a necessidade de uma intervenção legislativa a regular a matéria, bem como o seu interesse em nela abranger a presidência da República (como, aliás, sempre deveria ser). Não era necessário nem se justificava ir mais além, incluindo um projeto normativo de pormenor, condicionando o parlamento sobre o assunto.
O princípio constitucional da separação de poderes exige que cada um dos "órgãos de soberania" respeite a autonomia e as atribuições próprias dos outros.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Dinheiro Vivo (10): Advogados deputados

Aqui está o cabeçalho da minha coluna do fim de semana passado no Dinheiro Vivo, o suplemento de economia do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias, desta vez sobre a controversa questão da forte presença de advogados de negócios no parlamento, glosando posts anteriormente publicados aqui e aqui no Causa Nossa.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Euroeleições (10): Em tempo de Brexit

1. Depois de amanhã, sexta-feira, pelas 11:00 na FDUC, vou participar neste colóquio sobre as eleições europeias no final de maio, inicialmente marcadas para ocorrerem já sem a participação do Reino Unido, mas que ainda podem ter de se realizar na Grã-Bretanha, se o incrível e inesperado novelo político do Brexit em Londres não tiver um desenlace nas próximas semanas - o que ninguém pode antecipar.
Ora, não é a mesma coisa!

2. Por mim, que lamento a saída britânica, que constitui uma perda para a União Europeia (e uma perda ainda maior para o próprio Reino Unido), preferia que ainda organizassem as eleições europeias, em que os partidos britânicos e os candidatos teriam de assumir claramente as suas posições definitivas sobre o próprio Brexit, podendo levar a um novo referendo para reverter o primeiro.
Não sendo, em princípio, favorável ao recurso a referendos, em geral, o caso do Brexit - em, que se votou a saída sem haver a mínima ideia sobre o modo de a efetuar! - só reforça a minha posição de crescente reserva referendária, desde logo em matérias à partida complexas.

Laicidade (7): Basta de farisaísmo!

1. A encomenda de missas por parte de escolas públicas constitui sempre uma violação qualificada da laicidade constitucional do Estado.
Aliás, duplamente:
   - porque, existindo separação entre o Estado e as religiões, as entidades públicas não podem obviamente convocar cerimónias religiosas, por estarem fora do seu objeto;
    - porque, conferindo essas iniciativas um privilégio à religião católica, existe violação da igualdade religiosa dos cidadãos em geral e dos crentes de outras religiões em especial.
Custa a crer que isto possa ser ignorado de boa-fé.

2. É lamentável, e inaceitável, que o Ministério da Educação (de um Governo do PS!) manifeste complacência com a celebração das missas por iniciativa das escolas, com a invocação de que isso cabe na sua autonomia de gestão e desde que as missas não sejam obrigatórias (também era o que faltava!).
Mas não é nada assim. As escolas não podem ter liberdade nem autonomia para cometer atos ilícitos, infringindo princípios constitucionais fundamentais, que vinculam diretamente a Administração pública, por mais autonomia de que goze. As escolas não podem mandar celebrar missas, pela mesma razão de que não podem mandar instalar crucifixos nas paredes das escolas nem mandar rezar uma oração nas aulas.

3. Estas cerimónias religiosas por iniciativa de escolas públicas (e outras entidades públicas) são tanto mais indesculpáveis, quando é certo que aquelas podem realizar-se na mesma, por iniciativa de grupos de crentes (no caso, por associações de pais ou de alunos), não havendo nenhuma infração na simples cedência do recinto das instalações da escola, desde que em condições de igualdade em relação a outras religiões.
É mesmo a vontade de afrontar deliberadamente a laicidade constitucional.

4. Perante a sucessão de casos destes não é menos indesculpável a inércia do Ministério Público, que, tendo a incumbência constitucional e legal de defender a legalidade democrática, tem a obrigação de utilizar os meios que a justiça administrativa coloca ao seu alcance para fazer cessar tais atropelos constitucionais.
A sua ostensiva passividade perante casos de flagrante infração, como estes, envolve uma implícita corresponsabilidade institucional passiva.

Adenda
Há quem invoque a "liberdade" das escolas para legitimar as missas, mas trata-se de um equívoco elementar. Não é preciso estudar direito constitucional para perceber que num Estado laico as instituições públicas não gozam de liberdade religiosa, o que seria uma contradição nos termos. Como é bom de ver, só as pessoas e as próprias instituições religiosas são titulares da liberdade religiosa.

terça-feira, 9 de abril de 2019

Concordo (8): Recenseamento étnico

Estou inteiramente de acordo com a inclusão de uma questão sobre a identidade étnico-racial no próximo recenseamento geral da população, em 2021, como elemento de informação essencial ao conhecimento sociológico do País e ao desenho de políticas públicas de combate ao racismo e à discriminação ética.
Nem sequer dá para perceber a oposição de algumas associações representativas das principais minorias étnicas entre nós. Com resposta anónima e facultativa, não se vê que perigo é que essa questão pode oferecer, para além de as respostas poderem ajudar a rever os esteriótipos dominantes acerca das condições de vida dessas minorias e da visão que elas têm de si mesmas na sociedade portuguesa.

Aplauso (10 ): Dá gosto ouvir

Um forte aplauso para o novo programa de Gabriela Canavilhas na Antena 2, O Ar do Tempo, que veio enriquecer a oferta da rádio pública de música "clássica". Uma bem-sucedida combinação de saber, sensibilidade, versatilidade e comunicabilidade (incluindo uma dicção rigorosa, quase isenta dos tropos fonéticos do "dialeto lisboês", o que vai sendo raro, mesmo na comunicação erudita...)
Para além do muito que se aprende, dá imenso gosto ouvir. É caso para dizer que valeu a pena deixar a atividade política...

Ai, Portugal ! (1): Dualismo territorial aprofunda-se


1. Enquanto nas áreas metropolitanas e no litoral em geral, os preços das casas dispararam nos últimos anos, mercê da pressão da procura nacional e estrangeira, em muitos concelhos do interior os preços do imobiliário continuam estagnados ou mesmo a descer, como informa o JN de ontem.
Não poderia haver melhor prova do dualismo económico e sociológico do País, apesar do discurso político e das estratégias de "coesão territorial" e de "dinamização do interior".

2. Desde que, há meio século, A. Sedas Nunes analisou Portugal em termos de "sociedade dualista" - entre o litoral desenvolvido e o interior deprimido -, os indicadores económicos e sociais nacionais mudaram muito, para muito melhor, mas não a estrutura territorial assimétrica que eles revelam -, que, aliás, só se aprofundou.
As políticas públicas continuam a favorecer sistematicamente os grandes centros urbanos, e em especial as duas áreas metropolitanas, como ainda recentemente sucedeu com os programas nacionais de subvenção dos transportes urbanos e de construção de residências universitárias.
Sediado no litoral, sobretudo nas duas áreas metropolitanas, o poder económico, político e mediático autorreproduz-se territorialmente, fagocitando tudo à volta. Na ausência de medidas de discriminação territorial positiva eficazes, trata-se de um verdadeiro círculo vicioso.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Praça da República (20): Família e política - é preciso distinguir

[A família Kennedy em 1938; fonte: aqui]
1. Continua a reinar uma enorme confusão de conceitos no que respeita às relações familiares no âmbito do Governo e nas nomeações governamentais, misturando o que não deve ser confundido.
Importa, em primeiro lugar, distinguir entre (i) "endogamia" (que tem a ver com o critério de seleção dos cargos políticos) e (ii) "nepotismo" (que consiste na nomeação de familiares do próprio titular de cargos políticos). Em segundo lugar, quanto ao segundo, há que separar (i) as nomeações para cargos políticos (como os ministros e outros membros do Governo) e outros cargos públicos de confiança política e (ii) as nomeações de funcionários ou equiparados (como os membros de gabinetes ministeriais e outros). Por último, cumpre distinguir entre (i) o que deve ser proibido como ilícito por via de lei (incompatibilidades e impedimentos) e (ii) o que deve ser autorregulado por via de códigos deontológicos.
Como tenho insistido, o pior que pode suceder é deixar estas matérias sem regulação, ao critério do "bom senso" de cada um, que é o terreno mais fértil para a demagogia política e populismo mediático.

2. Quanto à chamada "endogamia política" - que tem a ver com o relativo "fechamento" do círculo de recrutamento dos titulares de cargos políticos (dirigentes partidários, governantes, deputados, autarcas, etc.) -, isso deve ser deixado ao livre jogo político, ao livre juízo da opinião pública e à responsabilidade política. O facto de haver familiares na vida política (cônjuges, pais e filhos, irmãos, etc.) não é suscetível de condenação, salvo, obviamente, se se nomearem uns aos outros.
O burburinho condenatório que se tem feito a esse propósito não tem nenhum fundamento, sendo um subproduto demagógico da anomia legal e deontológica acima referida.

3. Quanto ao nepotismo na nomeação para os próprios cargos políticos e outros cargos públicos equiparados, a Constituição prevê incompatibilidades, mas remete para lei a sua enunciação, a qual, porém, não proíbe explicitamente a nomeação de familiares.
Ora, ainda que não seja usual tal tipo de nomeações entre nós, era conveniente que a lei proibisse expressamente a nomeação de familiares próximos (a definir), com as respetivas sanções (nulidade da nomeação e sanções pecuniárias, ou mesmo a demissão, para o nomeante), aplicadas pela autoridade da transparência que agora se prevê criar junto do Tribunal Constitucional.

4. Quanto ao nepotismo na nomeação de colaboradores ou de outros funcionários por parte dos titulares de cargos públicos, ela está coberta pelo princípio constitucional da imparcialidade da Administração pública e já existe a norma dos impedimentos do art. 69º Código de Procedimento Administrativo, interpretada extensivamente, que exclui os cônjuges (ou equiparados), os ascendentes e descendentes e os irmãos, bem como os afins correspondentes (sogros e enteados, cunhados, genros e noras).
Como já escrevi anteriormente, penso que esta cobertura é hoje exígua e que devia ser ampliada aos parentes e afins até ao terceiro grau de parentesco (tios, sobrinhos).

5. Como também já escrevi, para além das incompatibilidades e impedimentos mínimos estabelecidos por lei, a ética política pode ser mais exigente, abrangendo um círculo de familiares maior, bem como os familiares próximos de outros membros do mesmo órgão político (por ex. de outros membros do Governo), ou até de outro, de que aquele dependa (por ex. de deputados).
O lugar apropriado para enunciar e punir estes impedimentos deontológicos não é, porém, a lei, mas sim os códigos de conduta internos de cada órgão (governos, câmaras municipais, Assembleia da República, etc.),a títulço de "responsabilidade ética".

Adenda
Não acompanho o Presidente da República, quando este defende que basta mexer na referida norma do CPA. Primeiro, os impedimentos legais nunca podem ir além do mínimo necessário; segundo, na atual situação todos os partidos de oposição preferem explorar a indefinição legal para zurzir no Governo. Por isso, defendo que, independemente de proposta legislativa, o Governo deveria - quanto antes, melhor -, "matar" a questão por via de uma aditamento ao seu próprio código de conduta.

domingo, 7 de abril de 2019

Geringonça (18): Voltar atrás

1. Sem que tal medida estivesse no programa do Governo, o PS e os demais partidos da esquerda parlamentar aprovaram o retorno da Casa do Douro ao estatuto de associação de direito público, como instituição de representação oficial e defesa dos interesses da vitivinicultura duriense, com inscrição e quotização obrigatória de toda a classe, revertendo a reconversão institucional determinada pelo anterior Governo.
Embora possa ser um exagero dizer que se voltou à "organização salazarista" do vinho do Porto, como afirma Manuel Carvalho no editorial do Público de ontem, e não seja de excluir à partida o regresso ao estatuto da Casa do Douro anterior a 2014, isso suscita duas questões complicadas:
   - primeiro, o estatuto de associação pública profissional supõe o desempenho de atribuições públicas suficientemente relevantes para justificar a criação legal de uma "corporação pública" e o afastamento da liberdade de associação, o que não parece ser o caso, pois a nova Casa do Douro não dispõe de nenhum poder de autoridade;
    - a representação da vitivinicultura por uma associação oficial unicitária e obrigatória, sem paralelo em nenhuma outra região demarcada, introduz uma óbvia assimetria em relação à representação profissional  dos comerciantes/exportadores no conselho interprofissional de representação paritária de corregulação dos vinhos do Porto e do Douro.

 2. Além disso, o novo estatuto oficial da CdD recupera alguns traços dos antigos "grémios corporativos" - como a competência para "desenvolver atividade comercial no domínio dos fatores de produção ligados à agricultura" e de "representar os associados (...) em convenções coletivas de trabalho" -, manifestamente conflituantes com a ordem constitucional vigente.
Não é fácil, em geral, acomodar a existência de entidades públicas de representação profissional numa ordem constitucional liberal-democrática, como se verifica desde logo com as ordens profissionais. Mais problemáticas se tornam ainda quando elas assumem poderes que só podem caber a entidades privadas, como é o caso.

Adenda
Um leitor objeta que, se a Casa do Douro persistiu como entidade pública na atual ordem constitucional entre 1976 e 2014, não vê razão para não voltar a ter o mesmo estatuto. Há algumas importantes diferenças, porém: (i) nessa altura a CdD não deixou de exercer alguns poderes públicos de regulação, que poderiam justificar a sua existência como entidade oficial; (ii) parece manifesto que esse estatuto não proporcionou à CdD um desempenho especialmente bem-sucedido; (iii) uma coisa é manter uma instituição por inércia, apesar de problemática, e outra coisa é repristiná-la depois de extinta, num modelo ainda mais problemático.

Adenda 2
Outro leitor lamenta que a Casa do Douro, património histórico coletivo da vitivinicultura duriense, acabe nas mãos de uma associação privada de representação profissional. Mas não tem de ser assim. Por exemplo, poderia ser transformada num instituto de investigação sobre o Douro, afeto à UTAD.

Adenda 3 (9/4)
Defendendo a solução legislativa adotada, o deputado Ascenso Simões - cujo desempenho parlamentar, empenhamento cívico e frontalidade política admiro - não afasta, porém, nenhuma das reservas que acima suscitei. Para uma lei ser boa não basta ter o acordo dos interessados e beneficiários.

sábado, 6 de abril de 2019

Dinheiro Vivo (9): A ilusão do IRS

Eis o cabeçalho do meu artigo de há uma semana no Dinheiro Vivo - suplemento de economia do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias -, contestando a ideia de que uma elevada taxa marginal de IRS constitui, só por si, o principal instrumento de redução da desigualdade de rendimentos.
É de acrescentar que, sendo Portugal um dos países com mais elevado IRS para altos rendimentos na União Europeia (em paridade de poder de compra), devia apresentar menor desigualdade de rendimentos, o que está longe de ser o caso...

Praça da República (19): É preciso normas, em vez de "bom senso"

1. Não podia discordar mais desta tese, ultimamente defendida por alguns políticos e comentadores, de que em matéria de nomeações de familiares por governantes basta o bom-senso e que este "não se legisla".
O problema é que não existe nenhum consenso sobre o que constitui bom-senso neste assunto, bastando mencionar a enorme diferença de posições defendidas a este propósito nas últimas semanas. Numa matéria sujeita às paixões políticas o bom-senso mede-se pelo critério de cada um.
Ora, nesta matéria o que se exige é clareza, para se saber o que é ou não admitido.
2. De resto, a experiência comparada em muitos países mostra que os impedimentos quanto à nomeação de familiares de governantes e equiparados constam de lei e/ou de códigos de conduta, o que confere certeza e evita especulações indevidas. O que importa é que as regras sejam públicas e o seu incumprimento sancionado.
Num post anterior adiantei a minha própria proposta, conjugando um círculo de nomeações proibidas (de familiares mais próximos) e outro de nomeações suscetíveis de censura ética (de familiares menos próximos e de familiares de outros membros do Governo ou de deputados). Como é bom de ver, o primeiro círculo tanto pode constar de lei como de código de conduta, enquanto o segundo só pode ser objeto de código de conduta.

Adenda
Penso que, em vez de remeter para a AR uma solução legislativa sobre as nomeações de familiares para funções de confiança política, protelando a resolução do assunto, António Costa faria melhor em "varrer a sua testada" quanto antes melhor, através de um aditamento ao código de conduta governamental, atalhando o risco de a questão de manter na agenda política, com os exageros que a falta de clarificação normativa proporciona à demagogia reinante.

Lisbon first (17): "Buraco negro"

Não poderia caracterizar melhor a macrocefalia nacional de Lisboa, que aqui tantas vezes tenho denunciado, do que o CEO da Critical Software, Gonçalo Quadros, quando escreve que somos um país “fortemente assimétrico […] vergonhosamente centrado em Lisboa. Lisboa é um buraco negro. Tem atraído tudo e mais alguma coisa, o que tem ajudado a que uma espécie de deserto prospere numa parte importante do país”.
De facto!

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Ai, a dívida (8): Baixar impostos?

Concordo com o Primeiro-Ministro em não defender uma redução de impostos enquanto Portugal mantiver um nível demasiado elevado de dívida pública e se quiser assegurar simultaneamente os necessários excedentes orçamentais e um nível razoável de investimento público e de capacidade de resposta dos serviços públicos.
Continuo a entender, porém, que a redução da dívida pública será tanto mais rápida, ceteris paribus, quanto mais moderado for o aumento de despesa corrente do Estado, sobretudo em remunerações, pensões e prestações sociais, que tem crescido demasidamente nos últimos anos, em comparação com o investimento público, com a agravante de constituir despesa permanente, insuscetível de redução em caso de inversão do ciclo económico.
A despesa permanente criada em período de "vacas gordas" continua a ter de ser paga quando as ditas emagrecem.

Adenda
Indo além do seu programa, o Governo acaba de acrescentar 240 milhões de euros / ano em despesas com o pessoal, a título de recuperação de tempo de serviço congelado durante o período de assistência financeira, que os futuros orçamento terão de suportar. Preferiria que essa verba fosse destinada a reforçar o investimento público, que tem ficado sempre aquém do orçamentado...

Puerta del Sol (4): Impasse político em Madrid?

1. A três semanas das eleições parlamentares em Espanha, a média das sondagens eleitorais organizada pelo El País aponta para um impasse político na constituição do Governo pós-eleitoral.
Enquanto o PSOE reforça a sua liderança (agora mais de 8 pp de vantagem sobre o PP), continuando porém longe de uma maioria à esquerda com o Unidos Podermos, os três partidos de direita também não somam os deputados suficientes para obter a maioria absoluta, o que inviabiliza uma solução à andaluza. Uma coligação centrista (PSOE-Ciudadanos) poderia ter uma confortável maioria parlamentar, mas o partido de centro direita exclui à partida tal coligação com os socialistas.
Nestes termos, a chave da solução governativa em Madrid poderia estar outra vez nos partidos regionais...

2. Um dado interessante é a recuperação do protagonismo político dos dois grandes partidos políticos tradicionais (PSOE e PP), agora colocados bem à frente dos novos partidos que chegaram a ameaçar a sua liderança eleitoral nos últimos anos.
Apesar da entrada da extrema-direita do Vox na liça política espanhola, sobretudo à custa do PP, tudo indica que a fragmentação parlamentar pode vir a ser menor do que o temido anteriormente.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Privilégios (12): Remunerações e pensões judiciárias

Podendo haver razões para um aumento extraordinário da remuneração dos juízes dos tribunais superiores, o que não se veem são as razões pelas quais esse aumento há de implicar automaticamente aumentos correspondentes nas pensões dos juízes já aposentados nem arrastar medida afim nos vencimentos e pensionistas dos niveis equiparados do Ministério Público.
Na verdade, isso sucede porque (i) ao contrário dos demais pensionistas, os juízes "jubilados" gozam do privilégio de ter uma pensão igual à última remuneração e sempre atualizada com esta, enquanto as pensões dos demais cidadãos são sempre inferiores (cada vez mais) à última remuneração, sendo também independentes das atualizações desta, e (ii) os procuradores do Ministério Público gozam de um estatuto legalmente equiparado aos juízes, incluindo o regime privilegiado de pensões, apesar da diferente natureza e exigência das funções.
A meu ver, nenhuma das referidas situações se conforma com o princípio da igualdade, quer quando este exige tratamento igual para situações iguais (as pensões), quer quando ele requer o tratamento diferenciado de situações desiguais (juízes e procuradores).

Não vale tudo (5): O estigma socratista

No seu editorial de hoje, da responsabilidade de Ana Sá Lopes, o Público condena a lista do PS às eleições europeias sobretudo por ela incluir o antigo ministro dos governos de Sócrates, Pedro Silva Pereira.
Ora, para além de não pender sobre ele nenhuma acusação relacionada com o processo penal do antigo primeiro-ministro, a verdade é que Silva Pereira não se candidata como antigo ministro mas sim recandidata-se como atual eurodeputado, aliás com bom desempenho no PE, eleito na lista do PS que ganhou as eleições europeias de há cinco anos.
Que a oposição antissocialista, à falta de melhor, insista em explorar politicamente os crimes por que Sócrates é acusado como se fossem responsabilidade coletiva imprescritível de todos os membros dos seus governos (só faltando exigir que usem uma estrela amarela em público, expiando a sua culpa...), ainda pode levar-se à conta dos costumes de baixa política, quando se não tem melhores argumentos políticos. Mas que órgãos de referência jornalística se dediquem também a explorar esse filão, já não tem nenhuma justificação.

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Praça da República (19): Advogados-deputados (II)

Quando se procede neste momento à revisão do estatuto dos deputados à AR, não se deve esquecer que também cabe ao legislador nacional definir, em grande parte, o estatuto dos deputados ao Parlamento Europeu.
Ora, inicialmente o estatuto legal dos eurodeputados estipulava a dedicação exclusiva, o que se compreendia, não somente pelas exigências especiais da função (distância e deslocações internas e externas), mas também pela elevada remuneração. Inexplicavelmente, a exigência de dedicação exclusiva foi suprimida subrepticiamente, à margem do respetivo estatuto, sem sequer se prever um diferencial de remuneração entre dedicação exclusiva e falta dela (que, aliás, não está prevista no estatuto remuneratório do PE).
O mínimo que se exige, porém, é que as incompatibilidades e condições de exercício do mandato de deputado nacional, por menores que sejam (se algumas!), se tornem também extensivas aos eurodeputados.

Praça da República (18): Advogados-deputados

1. A propósito do lamentável recuo na AR sobre as incompatiblidades dos deputados-advogados, recordo que defendo há muito uma incompatibilidade geral entre o cargo de deputado e a profissão de advogado, em especial os advogados de negócios (e não somente quando se trate de litigar contra ou a favor do Estado, onde existe um manifesto conflito de interesses).
Por várias razões:
   - primeiro, por causa do princípio de separação de poderes: quem intervém no poder judicial e na aplicação das leis não deve participar na feitura das leis (Locke dixit);
    - segundo, pelo risco de conflito de interesses, quer influenciando leis em função dos interesses dos seus clientes, quer funcionando como lobby dos mesmos interesses junto do Governo e da Administração;
    - terceiro, por uma questão de concorrência: os advogados-deputados prevalecem-se da sua função e da sua notoriedade como deputados para promoverem a sua atividade como advogados, pelo que a própria Ordem deveria estabelecer essa incompatibilidade;
    - por último, porque a acumulação das duas atividades só favorece, mais uma vez, os advogados de Lisboa e arredores, que podem facilmente dar uma "saltada" a São Bento para assinar o ponto e votar, antes de irem reunir com os seus clientes, o que não está alcance dos deputados de fora.
Por conseguinte, os deputados-advogados deveriam suspender o exercício da profissão.

2. A atual compatibilidade faz com que os advogados-deputados e afins constituam o maior grupo profissional na AR e engrossem o número de deputados em tempo parcial (muitos em "tempo pontual"), em prejuízo do desempenho do parlamento, tanto mais que o prémio de dedicação exclusiva (ou desconto do tempo parcial) é escandalosamente reduzido (10%).
A manter-se o regime de tempo parcial, o mínimo que se exige é aumentar a diferença de remuneração para, pelo menos, 33%, a fim de tornar mais atrativa a dedicação exclusiva ao desempenho da missão para que os deputados são eleitos.

Praça da República (17): "Kakistocracia"?

[Fonte: aqui]
1. A meu ver, não pode ser destinada ao sistema político português a acusação de kakistocracia (= "governo dos piores", por oposição a aristocracia = "governo dos melhores") , nem mesmo a título de excesso caricatural, como faz Nuno Garoupa neste artigo.
Uma coisa é o alegado "fechamento" do sistema e a sua suposta blindagem contra o aparecimento de novos atores políticos, outra é a conclusão de que isso leva à seleção dos piores. Basta a lista dos nossos presidentes da República e dos nossos primeiros-ministros, incluindo as suas credenciais e os cargos internacionais que vários deles vieram a exercer depois, para não autorizar tal juízo. A elite governante em Portugal não perde no confronto internacional.

2. Quanto ao referido fechamento - normalmente fundamentado no monopólio eleitoral dos partidos políticos e na falta de voto pessoal nos candidatos -, deve notar-se que entre nós não se exige muito para criar novos partidos e que é relativamente fácil obter representação parlamentar, tendo em conta o limiar virtual no círculo de Lisboa, inferior a 2% (que, aliás, considero excessivamente baixo, por poder levar a uma excessiva fragmentação parlamentar).
Ora, não estando na agenda política abrir as eleições parlamentares a "grupos de cidadãos", já outro tanto não se pode dizer das diversas modalidades de personalização da eleição dos deputados que fazem parte habitual dos programas eleitorais dos principais partidos há várias décadas e que poderia reforçar o poder político dos cidadãos na escolha do parlamento e, indiretamente, da classe política.
Em todo o caso, a "endogamia do sistema político" é essencialmente produto da cultura política estabelecida e da estabilidade das opções eleitorais, pelo que, ressalvado qualquer imprevisível choque político, ela é relativamente imune a mudanças institucionais.

terça-feira, 2 de abril de 2019

+Europa (14): Poupança-reforma europeia

Integrado no plano de criação de uma mercado único de capitais (em paralelo com a criação da união bancária), a União Europeia aprovou a criação de um produto de poupança-reforma ao nível da União, podendo ser subscrito em qualquer Estado-membro.
Além de reforçar a oferta de planos de poupança pessoal para as pensões de aposentação, complementando os instrumentos públicos (segurança social) e os fundos empresariais de pensões, este novo instrumento pode atrair uma significativa fonte de apoio ao crescimento económico, através da aplicação desses fundos na "economia real".
A Comissão Europeia calcula um acréscimo de 700 000 milhões de euros aos fundos de pensões existentes na Europa, no horizonte de 2030, caso o novo produto beneficie dos estímulos fiscais propostos por Bruxelas.