sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Vontade popular (7): Um grande equívoco

1. Não tem nenhum fundamento a tese desde artigo, de que as eleições parlamentares são "ilegímias", por alegadamente não respeitarem o princípio constitucional da proporcionalidade. Trata-se de um manifesto equívoco.
Com efeito, a Constituição não determina que a repartição de mandatos se faça a nível nacional; pelo contrário, estabelece que os deputados são eleitos em círculos subnacionais (que sempre foram os distritos), pelo que é aí que se efetua a distribuição proporcional dos correspondentes mandatos. Nada de "ilegítimo" nem de "inconstitucional".
De resto, considero que um sistema eleitoral que apresenta um círculo de 48 mandatos (Lisboa), onde basta menos de 2% para eleger um deputado, e que resulta num parlamento com sete partidos representados (com tendência para aumentar) não padece de défice de proporcionalidade. Ao contrário!

2. Desde 1989, a Constituição admite a criação de um círculo nacional sobreposto aos círculos subnacionais, mas não impõe tal solução, deixando também em aberto o número de mandatos a atribuir-lhe e o modo de os eleger.
Sem dúvida, um círculo nacional permitiria que todos os votos, onde quer que ocorram, contem para a aleição de deputados, mas nada impõe nem aconselha que tal círculo (caso seja criado) seja de compensação ou de aproveitamento dos votos "sobrantes" dos círculos subnacionais (à maneira açoreana).

3. Pessoalmente, tenho defendido as seguintes alterações do sistema eleitoral:
    - instituição do "voto preferencial", dando aos eleitores a possibilidade de selecionarem um candidato dentro dos candidatos do partido em que votam;
    - divisão dos círculos eleitorais maiores, de modo a permitir aos eleitores conhecer os candidatos e a permitir boletins de voto com os nomes de todos os candidatos;
    - criação de um círculo nacional, elegendo 1/10 dos deputados (23), contando o voto dos eleitores em todo o país.
Estas mudanças não visam obviamente aumentar a proporcionalidade geral do sistema eleitoral, mas sim valorizar o papel dos eleitores, que me parece ser a principal defeito do atual sistema.

"Free and fair trade" (11): À margem da OMC?

Os Estados Unidos e o Japão fecharam um acordo comercial de redução tarifária limitado a algumas exportações agrícolas americanas e algumas exportações industriais japonesas, bem como ao comércio digital.
Ora, segundo o GATT, os Estados mebros da OMC só podem estabelecer entre si acordos preferenciais, em derrogação da cláusuala de igual tratamento de outros países, se o acordo instituir uma zona de comércio livre entre eles, abolindo as barreiras aduaneiras em relação a "substancialmente todo o comércio" entre as partes, o que não é obviamente o caso, sendo evidente o âmbito limitado do referido acordo.
Que os Estados Unidos de Trump não façam caso da OMC, não surpreende; que o Japão alinhe nessa violação da "constituição comercial internacional", já é menos compreensível. Sinal dos tempos: a "rules-based global order" já não é o que era...

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Praça da República (27): Poder impune e irresponsável

1. Só pode qualificar-se de politicamente obscena a opção do Ministério Público de apresentar a acusação do caso de Tancos em plena campanha eleitoral, fazendo-a preceder das habituais "fugas de informação" de matéria em segredo de justiça pelos canais do costume, para alimentar o impacto mediático (incluindo uma canhestra tentativa de enlamear o Presidente da República).
Tão grave como o desplante do Ministério Público é, porém, o silêncio dos políticos e comentadores perante mais esta irresponsável exibição de abuso de poder do MP.

2. Num Estado de direito constitucional, com exceção dos tribunais, não pode haver instituições do Estado à margem do escrutínio político em geral e do escrutínio parlamentar em particular.
A autonomia do Ministério Público não pode significar irresponsabilidade pública. Vai sendo tempo de o/a PGR ser chamado/a explicar ao País coisas tão óbvias como a arrastamento infinito de processos mediáticos, a impunidade sistemática da violação quotidiana do segredo de justiça (como se o crime tivesse sido apagado do Código Penal), a gestão política do calendário dos processos que envolvem políticos, etc.
O Ministério Público não pode ser um Estado dentro do Estado, à margem das regras mais básicas do Estado de direito.

Adenda
Ressalve-se do conformismo/cumplicidade/cobardia dominantes o corajoso editorial de hoje do Público.

Big Ben (4): Estado de direito

1. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça britânico de considerar nula a decisão governamental de suspender o Parlamento por algumas semanas estabelece um marco decisivo na afirmação do princípio constitucional do "rule of law".
Ao considerar que o Governo não pode suspender o Parlamento sem justificação, furtando-se durante esse período ao escrutínio parlamentar (peça-chave do sistema de governo parlamentar), o Tribunal veio reiterar que, se o Parlamento está constitucionalmente imune ao escrutínio judicial, o Governo, não, desde logo quando atenta contra os poderes do Parlamento.

2. A sujeição do Governo e da administração à lei consubstancia o princípio mais básico do constitucionalismo britânico. Enquanto nos sécs. XVII e XVIII, na Europa continental vigorava o Estado absoluto, sem parlamento e sem limites ao poder, na Inglaterra reforçava-se o poder do parlamento e afirmava-se a submissão do Governo ao parlamento e à lei.
O Supremo Tribunal não podia trair esta herança original do constitucionalismo britânico.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Eleições no horizonte (9): Bipolarização

O recente encurtamento da enorme vantagem eleitoral do PS sobre o PSD nas sondagens pode beneficiar não somente o PSD - que parece regressar à corrida eleitoral -, mas também o próprio PS, visto que atenua a sensação da vitória garantida e pode assim combater a abstenção e, mesmo, mobilizar eleitores à esquerda.
Em suma, como mostra o exemplo da Madeira, quando maior for a perspetiva de disputa da vitória, maior será a concentração eleitoral nos dois partidos tradicionais de governo.

Vontade popular (6): As eleições regionais na Madeira

1. Há claramente dois vencedores nas eleições de ontem na Madeira:
    - o PSD, que, apesar das perdas e do seu pior resultado eleitoral de sempre, ainda conseguiu resistir à forte ofensiva socialista e ganhar as eleições, com margem para se manter no governo regional, em coligação com o CDS, pagando o respetivo preço político (que não será seguramente pequeno...);
    - o PS, que obtém o seu melhor resultado de sempre, sendo o único partido que ganha em relação a 2015 - e de que maneira! -, mais do que triplicando votação e deputados, o que é extraordinário.

2. Apesar de as eleições se travarem num quadro de proporcionalidade num círculo eleitoral único de 47 deputados, onde basta menos de 2% para eleger um deputado - o que convida à fragmentação parlamentar -, verificou-se uma forte bipolarização eleitoral, com os dois principais partidos a somarem 75% dos votos e 85% dos deputados!
Consequentemente, o número de partidos com representação parlamentar reduziu-se de 7 para 5, contando-se entre as vítimas o BE, que foi um dos principais derrotados da jornada eleitoral, revelando a disponiblidade do seu eleitorado para "votar útil" no PS.
A responsabilidade desta bipolarização deve-se obviamente ao facto de, pela primeira vez em 43 anos, haver uma séria e credível disputa quanto à liderança do governo regional, mercê da forte desafio do PS à tradicional hegemonia do PSD.

domingo, 22 de setembro de 2019

Livro de reclamações (24): Administração eletrónica

Não podemos desvalorizar as vantagens da administração eletrónica (rapidez, conveniência, poupança), uma das vertentes mais bem-sucedidas do ambicioso programa Simplex.
Mas há falhas que se não justificam, como a que me aconteceu há dias. Necessitando de uma declaração da segurança social, acedi ao site da Segurança Social Direta; como não tinha palavra-passe, tive de a solicitar, preenchendo os dados requeridos, entre os quais o número do Cartão de Cidadão. Várias vezes a resposta foi a de que os dados fornecidos não correspondiam aos registados na SS. Contactados telefonicamente os serviços, descobri que o "erro" estava em incluir no número do CC o zero inicial - que consta do número oficial! Não se compreende esta discrepância.
Obtida a senha, acedi ao portal e pedi a dita declaração, clicando no respetivo link, porém para receber, várias vezes, a seguinte resposta: "página web não encontrada", possivelmente "por ter ocorrido um erro de digitação no endereço" [!?].
Lá terei de contactar de novo os serviços. Entretanto, já passaram dois dias sem conseguir uma declaração eletrónica que deveria demorar um minuto a obter...

domingo, 8 de setembro de 2019

Bicentenário do constitucionalismo em Portugal (8): Nas origens da Constituição de 1822

Eis o cartaz a anunciar o lançamento, na Feira do Livro do Porto, na próxima terça-feira, de um livro sobre os projetos da Constituição de 1822, da autoria de um grupo de doutorandos da Universidade Lusíada Norte, sob orientação do Professor José Domingues e de mim próprio. Essencial para perceber como se forjou a nossa primeira constituição.
É a primeira obra publicada recentemente sobre o início do constitucionalismo em Portugal, nas vésperas do bicentenário da revolução constitucional de 1820.