Blogue fundado em 22 de Novembro de 2003 por Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva e Vital Moreira
sexta-feira, 10 de março de 2017
Rousseau em Lisboa
1. A diferença fundamental entre a democracia liberal e a "democracia popular" (inspirada em Rousseau e teorizada por Lenine) está em que naquela o poder político é limitado por vários mecanismos, enquanto na segunda não há limites ao império da "vontade geral" ou da "vontade popular".
Entre os limites ao poder da maioria política numa democracia liberal contam-se desde o início a separação de poderes, a independência dos tribunais, os direitos fundamentais constitucionais, o direito de oposição. Mas esses limites podem incluir outros dispositivos, como a descentralização territorial do poder político e o "governo em vários níveis", a exigência de maiorias qualificadas para aprovar as revisões constitucionais e outras leis importantes, os poderes de veto presidenciais, as obrigações de transparência no exercício do poder e também a existência de entidades públicas independentes, sem tutela governamental, entre os quais se contam hoje os bancos centrais, as entidades de defesa de certos direitos fundamentais mais sensíveis (os média, os dados pessoais, etc.) e as autoridades reguladoras da economia.
Esses vários mecanismos impedem que a maioria política de cada momento se aproprie do Estado e se torne numa "ditadura da maioria".
2. Impera hoje em Portugal uma clara hostilidade política às entidades públicas independentes, traduzida nos episódios recentes sobre o Conselho das Finanças Públicas, o Banco de Portugal e as autoridades reguladoras independentes em geral.
Compreende-se que as forças de esquerda comunista ou neocomunista, que são tributárias da ideia de democracia sem limites, apoiem essa ofensiva contra as entidades públicas independentes, agora que fazem parte do "arco do poder" (mas quando estão na oposição ninguém defende mais a limitação do poder da maioria!). Já se compreende menos que as forças políticas adeptas da democracia liberal, como o Partido Socialista, apoiem essa mesma ofensiva e a correspondente ideia de "todo o poder à maioria".
Há alinhamentos políticos que comprometem, mesmo quando conjunturais.