Blogue fundado em 22 de Novembro de 2003 por Ana Gomes, Jorge Wemans, Luís Filipe Borges, Luís Nazaré, Luís Osório, Maria Manuel Leitão Marques, Vicente Jorge Silva e Vital Moreira
sexta-feira, 27 de abril de 2018
Capitalismo v democracia
1. A tese tradicional da esquerda anticapitalista acerca da incompatibilidade histórica entre capitalismo e democracia depende obviamente da sua rejeição da democracia liberal como "verdadeira democracia".
De facto, se se considera a democracia liberal, o contrário é que é verdade, ou seja, a plena compatibilidade. A democracia liberal nasceu, embora tardiamente, no âmbito do capitalismo e não existe fora desse ambiente. Por outro lado, as poucas tentativas de superar o capitalismo num quadro de democracia liberal acabaram em geral em desastre económico e político, como está a ocorrer agora na Venezuela.
Bem entendido, o capitalismo não postula a democracia liberal, longe disso, como testemunham as inúmeras variantes de "democracia iliberal" ou de autocracias autoritárias e repressivas, incluindo o fascismo propriamente dito. Mas na experiência histórica a democracia liberal pressupõe a economia de mercado (nome "técnico" ou neutro do capitalismo).
2. As noções de democracia contrapostas à democracia liberal, nomeadamente de "democracia socialista" ou de "democracia popular", são, por definição, antiliberais, e a verdade é que em qualquer das suas variantes históricas elas nunca foram compatíveis com a liberdade e a oposição política e com as liberdades individuais em geral, tendo sempre redundado em ditaduras de partido único e de subjugação da liberdade individual ao poder do Estado e tendo abandonado desde cedo as veleidades iniciais de uma genuína "democracia de conselhos" ou de "autogestão democrática".
E quanto à moderna "democracia participativa", por mais avançadas e variadas que sejam as suas formas operativas, ela nunca conseguiu erigir-se em modelo alternativo de exercício do poder político ao nível macrossocial ou estatal.
3. No grande debate histórico entre Locke e Stuart Mill, por um lado, e Rousseau e Lenine, por outro, o século XX atribuiu uma clara vitória aos primeiros, ou seja, à democracia liberal, limitada pelas liberdades individuais e pelo Estado de direito, sobre a democracia absoluta, onde a alegada "vontade geral", encarnada no Partido e no Estado todo-poderosos, prevalece sobre a sociedade civil e sobre os indivíduos. Falharam todas as tentativas teóricas de desenhar um modelo operacional de democracia anticapitalista compatível com as liberdades individuais.
Mas esse embate entre democracia liberal e democracia autocrática, dirimido em favor da primeira em 1989, com o desmoronamento do mundo soviético, foi o mesmo que opôs o modelo da economia de mercado, baseado na liberdade económica e na concorrência, ao da economia "socialista", baseado na apropriação coletiva e na planificação estatal da economia. A vitória da democracia liberal foi também o triunfo da economia de mercado. Não por acaso...
4. Tal como a economia de mercado, também a democracia liberal apresenta diferentes versões, quer no seu desenvolvimento histórico que nas geografias em que vigora.
Entre as variáveis relevantes conta-se, para além das diferenças sociológicas e institucionais (tipo de Estado, sistema eleitoral e sistema de partidos, sistema de governo, etc.), o nível de garantia dos serviços de interesse geral e dos direitos sociais, ou seja, as diferentes modalidades do welfare state. Mas, sejam quais forem essas diferenças, há sempre uma matriz comum, que tem a ver com a legitimidade do poder assente na "vontade popular" baseada em eleições pluripartidárias, limitada pelo respeito das liberdades individuais e nos direitos das minorias.