1. Na insólita decisão presidencial de indevida promulgação de três leis da AR que criam nova despesa pública, aliás de montante elevado, à revelia e sob protesto do Governo (que analisei no post anterior), o Presidente da República não se limitou a suspender a "norma-travão" orçamental; suspendeu também os principais parâmetros constitucionais que balizam a sua ação.
Pela sua gravidade, esta decisão ficará seguramente a assinalar um momento crítico no entendimento e na prática do mandato presidencial entre nós.
2. Em primeiro lugar, uma das tarefas constitucionais do Presidente, a cumprir justamente através do poder de promulgação, é a salvaguarda da separação de poderes -- uma das traves-mestras do Estado de direito constitucional, desde a sua origem --, ou seja, no nosso caso, a separação de poderes entre a AR e o Governo, impedindo a primeira de invadir o território da segundo e vice-versa.
Ora, no caso concreto, o Presidente desconsiderou uma das mais estritas normas constitucionais de separação de poderes, que é a reserva governamental de criação de novas despesas além do orçamento em vigor, como penhor da disciplina orçamental, pela qual o Governo é politicamente responsável.
Ou seja, o Presidente coonestou deliberadamente o confisco parlamentar de um poder constitucionalmente exclusivo do Governo.
3. No nosso sistema constitucional, sendo a presidência da República um cargo partidariamente independente, não integrado no poder executivo, é suposto o Presidente da República ser neutral na disputa entre o Governo e a oposição, sem prejuízo de fazer respeitar os direitos constitucionais de um e de outra.
Ora, no caso concreto, o Presidente tomou explicitamente partido pela posição dos partidos da oposição contra a do Governo, sacrificando a norma-travão, que exluía à partida qualquer ponderação presidencial do mérito das soluções contidas nas leis sujeitas a promulgação.
4. No sistema político desenhado na CRP, o Presidente não governa nem é eleito para governar nem para se ingerir na esfera governativa, que é competência exclusiva do Governo, pela qual responde politicamente perante o Parlameto e perante os eleitores nas próximas eleições legislativas. Por isso, ressalvada a sua "magistratura de influência" sobre o Governo e demais decisores políticos, o Presidente não pode fazer prevalecer as suas próprias opinioes políticas nas suas decisões institucionais.
Ora, na justificação da promulgação das três referidas leis, o Presidente deixa claramente entender que optou pela promulgação, ignorando a lei-travão, porque concorda com a solução política das leis em causa, assim sobrepondo abusivamente o seu juízo de mérito político ao do Governo.