domingo, 28 de março de 2021

O que o Presidente não deve fazer (27): Ficção constitucional

1. Independentemente da sua leitura política, a promulgação das leis da AR sobre apoios sociais assenta num exercício de ficção constitucional. Por duas razões.

Primeiro, não compete ao PR fazer "interpretação conforme à Constituição" e refazer o alcance normativo das leis que lhe são submetidas para promulgação; em caso de dúvida séria sobre a conformidade constitucional de um diploma (e no caso é mais do que dúvida...), é obrigação do Presidente suscitar a fiscalização preventiva, no cumprimento da sua missão de fazer respeitar a Constituição. 

Em segundo lugar, é absurdo dizer, como decorre do § 9 da justificação presidencial, que o Governo pode executar aquelas leis até onde o orçamento permita, deixando o resto por executar, pela simples razão de que num Estado de Direito, baseado no princípio da legalidade, o Governo está obrigado a cumprir integralmente as leis, mesmo se inconstitucionais, enquanto elas não forem declaradas como tais pelo órgão competente.

2.duas vítimas principais neste lamentável epsisódio.

A primeira é a noção de disciplina orçamental, que inclui a segurança de que o Governo, uma vez aprovado o orçamento, está livre de ver aprovada nova despesa pública, obrigado-o a aumentar a despesa global ou a cortar noutra despesa para realizar aquela. Tal é a função da lei-travão, agora ingloriamente sacrificada pelo próprio PR.

A segunda vítima são os governos minoritários, que veem inutilizada a única defesa constitucional contra o oportunismo político das oposições coligadas. A partir de agora vai ser mais difícil ainda governar em minoria, visto que já nem sequer a despesa orçamentada é intocável. Ora, como as condições para governos de maioria não existem, a governação vai tornar-se ainda mais imprevisível.

Adenda
Um leitor pergunta se a "interpretação" dada pelo Presidente às leis promulgadas - no sentido de elas só obrigarem o Goveno a executá-las até onde houver orçamento - salva ou não a sua constitucionaliade. A meu ver, não, visto que essa pseudointerpretação assenta num equívoco e não salvaguarda o essencial da lei-travão, que consiste em proibir a AR de criar novas despesas no ano orçamental em curso, mesmo que elas possam ser financiadas, seja mediante sacrifício de outras despesas, seja por recurso a alguma folga orçamental. Uma vez aprovado o orçamento, o Governo tem direito a não ver criada nova despesa à sua revelia. É uma questão de confiança, de estabilidade e de disciplina orçamental, que o Presidente da República deveria ser o primeiro a salvaguardar.

Adenda 2
Outro leitor observa que com a promulgação o PR poupou o Governo a ter de pagar os custos políticos da falta dos apoios sociais em causa. Não acompanho este argumento. Primeiro, não sei se o propósito do Presidente foi poupar o Governo ou poupar-se a si mesmo. Segundo, e mais importante, o Governo tem todo o direito de gerir os recursos de que dipõe e de pagar os custos políticos por isso, sem precisar da tutela presidencial. É por isso que ele é políticamente responsável pelos seus atos perante a AR, nomeadamente pela gestão orçamental (o que não acontece com o Presidente...)

Adenda 3
Um leitor observa, com malícia, que afinal o estado de emegência não serve somente para o PR suspender o exercicio de alguns direitos fundamentais, mas também para suspender partes da Constituição, como a norma-travão orçamental... 

Adenda 4
Outro leitor pergunta se, podendo o Governo impugnar essas leis no Tribunal Constitucional, isso não resolve o problema. A resposta é não, porque na fiscalização sucessiva o Tribunal pode demorar meses a decidir e costuma salvaguardar os efeitos já produzidos pelas normas declaradas inconstitucionais, pelo que seria praticamente inútil, pois a despesa já teria sido feita. Ao contrário, a fiscalização preventiva tem prazo de decisão curto (25 dias, suscetíveis de encurtamenro em caso de urgência) e, em caso de pronúncia pela inconstitucionalidade, as leis não chegam a ser publicadas.