segunda-feira, 2 de junho de 2025

Sistema eleitoral (14): Duas mudanças inviáveis

1. Num artigo hoje publicado no Jornal de Notícias, o Professor Manuel Vilares apresenta duas hipóteses de solução para a atual assimetria de representação eleitoral do interior do País face ao litoral, a saber: (i) criar uma segunda câmara parlamentar de representação territorial, ao lado da AR, ou (ii) adicionar o fator território para efeitos de cálculo dos deputados a atribuir a cada círculo eleitoral, deixando estes de depender somente do número de eleitores, como é hoje.

Sucede, porém, que nenhuma desssas vias tem cabimento constitucional. E, a meu ver, nenhuma delas é politicamente convincente: 

   - a 1ª, porque um parlamento bicamaral complicaria ainda mais o funcionamento do sistema político e uma 2ª câmara de representação territorial dar-lhe-ia uma vertente protofederalista, que não deixaria de criar fortes engulhos políticos; 

   - a 2ª, porque a teoria do poder político representativo (representative government) foi construída desde o início na base da representação da coletividade dos cidadãos em geral e da igualdade do voto, onde não cabe a ponderação do valor do voto em função do território de residência dos eleitores.

Julgo, por isso, que nenhuma dessas soluções deve ser seriamente equacionada.

2. A apontada "assimetria de representação" não se deve somente à rarefação populacional do interior, mas também ao facto de a escolha dos antigos distritos como circunscrição eleitoral resultar em círculos eleitorais enormemente díspares quanto número de deputados (rácio de 1:24 na relação entre Portalegre e Lisboa!).

Para atenuar em muito essa assimetria, tenho defendido duas medidas, nenhuma das quais carece de revisão constitucional: (i) fundir os círculos mais pequenos, de modo que nenhum tivesse menos de 5 deputados (salvo os círculos da emigração) e cindir os maiores círculos, de modo que nenhum tivesse mais de 11 deputados (o que reduziria drasticamente a assimetria da relação deputado-votos); (ii) criar um círculo nacional sobreposto aos atuais círculos territoriais, elegendo 1/10 dos deputados, com base nos votos emitidos em todo o território nacional (o que reduziria enormemente o número de votos desperdiçados).

O problema é que os maiores partidos, ou seja, os que ganham alternadamente as eleições, receiam que estas duas mudanças lhes retirem duas coisas de que são beneficiários: o "voto útil" e a mais-valia dos pequenos círculos (onde só eles elegem deputados).

Adenda 
Um leitor não vê «razão para excetuar os círculos da emigração, que podem perfeitamente ser fundidos num só círculo com 5 deputados, pois não faz sentido nenhum a divisão entre emigrantes na Europa e fora dela». Concordando com a fusão, eles, porém, elegem 4 deputados e não 5, e a meu ver não devem eleger mais, pelo que a exceção se impõe.

Adenda 2
Um leitor objeta que  a solução do "círculo de compensação" nos Açores «veio dificultar a obtenção de maioria absoluta pelo partido vencedor das eleições regionais e complicar a governabilidade na região». Concordo, mas eu não defendo nenhum "círculo de compensação" na eleição da AR, ideia que sempre critiquei, pois no círculo nacional que proponho os mandatos seriam apurados e atribuídos autonomamente, não se destinando, como nos Açores, a atenuar o desvio da proporcionalidade causado pelos pequenos círculos eleitorais.

Adenda 3
Outro leitor acusa-me de procurar reduzir o número de partidos com representação parlamentar, pois «mesmo no círculo nacional seria necessário alcançar cerca de 4% para eleger um deputado». Sim, embora pense que o desempenho eleitoral dos pequenos partidos poderia melhorar com o fim da pressão para o "voto útil" e com negociação de coligações eleitorais (entre si ou com outros partidos), trata-se, porém, de uma opção deliberada, que há muito defendo - a de reduzir a fragmentação parlamentar e melhorar a governabilidade