quinta-feira, 13 de julho de 2023

Laicidade (11): Despautério

Parece que com a Jornada Mundial da Juventude entre nós o princípio constitucional da separação entre o Estado e as igrejas foi mandado de férias, perante a complacência geral. 

Mas quem julgava que o pico da violação da laicidade constitucional tinha sido atingido com a decisão da CM de Lisboa de mandar edificar o palco-altar, com cruz e tudo, para a principal cerimónia religiosa - caso que aqui denunciei -, eis que o Presidente da CM de Cascais, possuído de zelo confessional, resolveu levar a melhor, com o anúncio entusiasmado de que o município vai gastar meio milhão de euros para comprar paramentos para os sacerdotes e outras alfaias religiosas

E ninguém se escandaliza com este inconcebível despautério? Os partidos laicos vão deixar prevalecer cinicamente o silêncio cúmplice? O Ministério Público não vai impugnar o abusivo gasto de dinheiro público, em manifesto desvio de poder? O Tribunal de Contas vai depois aprovar as contas do município?

terça-feira, 11 de julho de 2023

Concordo (28): O ministro da Cultura excedeu-se

Tal como Adão e Silva, também tenho uma péssima opinião sobre o baixo nível de muitos momentos da CPI da Tap. Mas eu posso exprimir tal opinião, como cidadão comum que sou, para mais sem filiação partidária; mas ele, sendo ministro de um Governo que é responsável perante o AR, obviamente não pode. 

Ministro não é comentador político, pelo menos sobre assuntos alheios ao seu pelouro, e ainda menos para emitir juízos sobre outros órgãos de soberania. Ao contrário do que defende o ministro, o facto de o ser constrange necessariamente a sua liberdade de emissão de opiniões políticas, que comprometem o Governo a que pertence. É um dos custos da função!

Causa espanto que governantes cultos e com sentido de Estado possam incorrer em lapsos destes, pisando os limites da mais elementar discrição política que é de esperar deles...

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Era o que faltava (11): Uma questão de decência

1. Discordo em absoluto desta opinião que defende o regresso da subvenção orçamental à ADSE, como sucedia no passado e contra qual me manifestei há muito, até à sua abolição.

Como seguro de saúde voluntário dos funcionários públicos, a ADSE deve ser financiada exclusivamente pelos seus beneficiários e não pelos contribuintes em geral, que já financiam o SNS, a que todos têm acesso. É um sofisma a comparação com os seguros de saúde proporcionados por algumas empresas aos seus trabalhadores, os quais obviamente não são financiadas com os impostos de todos.

2. Sendo em si mesmo um privilégio da função pública, seria inadmissível que tal privilégio fosse suportado pelos contribuintes em geral, que dele não beneficiam, aumentando a despesa pública com a saúde, à margem do SNS, quando este sofre os conhecidos constrangimentos financeiros. 

Infelizmente, enquanto a ADSE se mantiver indevidamente na esfera da gestão pública - ao contrário do que defendo há muito (e o PS tambem ja defendeu) -, esta tentação de regresso ao cofinanciamento orçamental, para aliviar os encargos dos beneficiários, será recorrente. Mas espero que nenhum Ministro das Finanças pense em reequacinar a questão!

Adenda 
Um leitor pergunta se não sou beneficiário da ADSE e se não gostaria de ver aliviada a minha contribuição. Sim, sou beneficiário, mas sempre faço questão de não deixar que o meu interesse pessoal determine as minhas opiniões políticas. Se não fosse assim, várias das minhas posições no Causa Nossa, ao longo destas duas décadas, não existiriam.

domingo, 9 de julho de 2023

Pobre língua (26): "Adição" em vez de "adicção"?!

Se se diz e se escreve "adicto" e "adictivo" (devidamente registados no Vocabulário da Academia), porque é que se há de dizer e escrever "adição", em vez de "adicção", confundindo a noção de dependência (drogas, etc.) com a de soma (ato de adicionar)? 

Ao contrário do que parecem julgar distraidamente algumas pessoas, os c antes de ç só desapareceram com o Acordo Ortográfico quando não eram pronunciados (como em ação, infeção e tantas outras palavras), o que não sucede no caso acima, salvo por efeito de contaminação descuidada. Pelo que tenho visto, porém, tudo indica que se trata de um desvio fonético e ortográfico em vias de difusão acelerada.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Não concordo (39): Fundamentalismo paritário

Discordo da imposição da paridade de género no Tribunal Constitucional por via legislativa, como alguns defendem.

Em primeiro lugar, falta a necessária base constitucional para essa "ação afirmativa". A Constituição só admite a promoção do equilíbrio de género para a participação na vida política - o que permitiu as quotas eleitorais e afins -, onde não cabe manifestamente o Tribunal Constitucional.

Em segundo lugar, não dá para perceber a necessidade de impor a paridade no Tribunal Constitucional por via legislativa, quando a AR o pode fazer sem necessidade de qualquer lei.  Cabendo-lhe a designação de 10 dos 13 juízes, está nas suas mãos assegurar a paridade em cada processo de designação. Qualquer desvio por efeito da cooptação dos três restantes juízes poderia ser corrigido na designação parlamentar subsequente.

Em terceiro lugar, não se vê razão para estipular a paridade no TC, excluindo os demais tribunais superiores, onde o desequilíbrio de género é muito mais pronunciado. Uma solução manifestamente seletiva.

Por último, seria politicamente incongruente que o parlamento avançasse para uma paridade efetiva no TC, quando mantém quotas eleitorais e outras de apenas 40%, sem sequer alternância obrigatória de género nos dois primeiros lugares das listas, que é a principal razão para o desequilíbrio que se mantém na AR e demais assembleias representativas.

O fundamentalismo ideológico raramente é bom conselheiro

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quarta-feira, 5 de julho de 2023

Assim vai a economia (3): O caso dos automóveis

«Automóveis com melhor semestre em quatro anos», assim titula o Jornal de Negócios a notícia sobre as estatísticas agora conhecidas sobre as vendas de automóveis. 

terça-feira, 4 de julho de 2023

Assim, não (5): Maus fígados

Depois de a Bastonária da Ordem dos Advogados - que é uma entidade pública com poderes conferidos pelo Estado - ter vindo ameaçar com a "paralisação da justiça" na sua luta contra a reforma das ordens profissionais, agora foi a vez de o Presidente da Câmara Municipal de Coimbra, falando em evento oficial do município, sugerir o "corte da A1", como forma de protesto contra o prolongado impasse da A3 entre Coimbra e Viseu (o que não fica longe do incitamento ao crime).

Mesmo que os dois referidos titulares de cargos públicos tivessem razão nos seus agravos contra o Estado - como é o caso do Presidente da CMC -, é evidente que eles não gozam da liberdade de eleger formas de protesto como as referidas. Ao contrário das entidades privadas, os dirigentes das entidades públicas não têm direito a maus fígados no desempenho das suas missões.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Amanhã vou estar aqui (18): Uma homenagem devida

Amanhã vou estar no Convento de São Francisco, o espaço cultural do município de Coimbra, para fazer o elogio do Mário de Araújo Torres, juiz-conselheiro jubilado, por ocasião da atribuição da medalha de ouro de mérito cultural pela CMC, no dia da cidade.

É com grande júbilo que participo na cerimónia: primeiro, porque sou amigo e admirador de Mário Torres, de quem fui condiscípulo em Direito na UC, nos anos 60 do século passado; segundo, porque é uma homenagem inteiramente merecida, mercê do seu impressionante investimento, nos últimos anos, na meticulosa investigação e na cuidadosa edição de numerosas obras sobre a história de Coimbra, umas esquecidas, muitas praticamente inacessíveis, incluindo sobre as intervenções do "batalhão académico" da Universidade de Coimbra, em momentos cruciais da história nacional, desde a guerra da Restauração contra Castela até à Patuleia. Não é pequena a dívida de gratidão da cidade.

Na investigação e na divulgação da história da cidade do Mondego, há um antes e um depois de Mário Torres. 

Campos Elíseos (12): Uma nação fraturada

1. É impossível exagerar a gravidade da violência destrutiva nas ruas de França (incluindo incêndios, pilhagens e agressões), na sequência da morte a tiro de um jovem condutor numa operação policial. 

Depois dos "coletes amarelos" e dos protestos contra a elevação da idade da aposentação para os 64 anos, esta é a terceira vaga de protestos sociais, e a mais violenta, mostrando a profundidade das clivagens sociais e políticas em França.

2. A radicalização social e política reflete-se não apenas no crescente isolamento do Governo centrista de Macron, mas também na grande contração do apoio dos dois partidos democráticos que alternaram no poder em França nas últimas décadas, nomeadamnte o centro-direita (hoje, os Republicanos) e o centro-esquerda (o PSF), em favor da extrema-direta (Le Pen) e da extrema-esquerda (a France Insubmissa). 

Como a história mostra, a violência nas ruas e a insegurança social só revertem em favor da extrema-direita. 

domingo, 2 de julho de 2023

Stars & Stripes (11): A contrarreforma judicial

1. Acertou quem temia que a reversão do direito ao aborto, há um ano, era apenas o começo de uma contrarreforma conservadora do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. 

As recentes decisões sobre a inconstitucionalidade da política de "ação positiva" a favor dos negros no acesso às universidades, e sobre a liberdade de uma fornecedora de serviços matrimoniais de se recusar a prestar serviços a casamentos de pessoas do mesmo sexo, por razões religiosas, vêm mostrar que a maioria conservadora no Supremo, alcançada com as nomeações sectárias do Presidente Trump, não vai deixar pedra sobre pedra na proteção dos direitos das minorias, sejam étnicas ou sexuais.

2. Ora, sendo os mandatos vitalícios, há poucas perspetivas de mudança de orientação do Tribunal num futuro prevísivel. 

Como se não bastasse a deriva de direita fundamentalista do Partido Republicano desde Trump, que hoje tem a maioria na Câmara dos Deputados e governa numerosos estados da União, a orientação do Supremo Tribunal transforma-o num aríete contra as conquistas progressistas do passado nos Estados Unidos, incluindo as que o próprio Tribunal tinha assegurado.

sábado, 1 de julho de 2023

SNS em questão (25): A contradição da ADSE

Sendo óbvio que a ADSE é um dos fatores do crescimento da procura de cuidados de saúde privados, como veio recordar o antigo Ministro da Saúde, A. Correia de Campos, parece evidente que os Governos agradecem, sem o dizerem, porque essa procura alivia a pressão sobre o SNS e sobre a sua despesa.

O risco, porém, é que a consolidação da ADSE - gerida pelo próprio Estado, embora financiada  pelos próprios beneficiários - contribui para minar a legitimidade do SNS como serviço constitucionalmente universal e gratuito (financiado por impostos) e para configurar um sistema alternativo de prestação de cuidados de saúde "convencionado", que os adversários do SNS podem vir a propor como modelo geral de substituição deste.

Adenda (4/7)
Não foi preciso esperar muito para o PSD vir propor a universalização da ADSE, como acima se antecipou. Porém, para ser coerente, o PSD deveria simultaneamente propor a extinção do atual SNS, o que, aliás, decretou há quatro décadas, nessa altura sem propor nenhuma alternativa.