1. Menos de 6% dos advogados portugueses (2000 em mais de 35 000), muitos deles votando por representação, aprovaram, por maioria, uma moção de repúdio contra a aplicação à advocacia da reforma em curso da regulação das profissões liberais e das respetivas ordens profissionais, sendo o principal alvo de contestação a redução da esfera de atos exclusivos da profissão, os chamados "atos próprios".
Pela sua básica motivação protecionista, esta rebelião corporativa dos advogados faz lembrar a revolta há poucos anos dos taxistas contra a admissão da Uber pelo Governo, pondo em causa o monopólio económico daqueles. Mas há duas diferenças essenciais:
- no caso dos taxistas, estava em causa a perda de todo o seu exclusivo profissional, passando a ter a concorrência da Uber e outras plataformas, enquanto que no caso dos advogados não está em causa o núcleo duro do seu exclusivo profissional, o patrocínio judiciário, que ninguém contesta;
- a agremiação dos taxistas é uma associação privada de defesa de interesses profissionais, com ampla liberdade de protesto, enquanto a OA é uma entidade pública, dotada de atribuições oficiais pelo Estado, o que exclui condutas de tipo sindical, como algumas das indicadas no referido manifesto.
Por isso, para além de imprópria da profissão, esta ameaça de rebelião da Ordem dos Advogados é manifestamente ilegítima, não tendo nenhuma sustentação constitucional.
2. Não deixa de ser especialmente censurável que, embora reclamando-se de defensora do Estado de direito e de protetora dos direitos, liberdades e garantias individuais, a Ordem se proponha não somente organizar manifestações à porta dos tribunais, mas também perturbar deliberadamente o funcionamento destes e a prática de atos judiciais, instrumentalizando para fins pessoais o mandato recebido dos clientes, assim como fazer greve a atos urgentes em processo penal, tomando os cidadãos interessados como reféns inocentes da sua ação reivindicativa -, o que é intolerável.
Por mais razão que tivessem os advogados no seu protesto (e, a meu ver, não têm nenhuma...), há certas linhas vermelhas que não podem ser ignoradas por uma entidade pública contra o Estado, ao qual deve, aliás, a sua criação.
3. Para ver a leviandade com que esta moção foi aprovada, basta referir dois pontos.
Em primeiro lugar, a Ordem invoca o direito de resistência, que a Constituição garante aos particulares para defesa dos seus direitos, liberdades e garantias, quando não seja possível recorrer à autoridade pública. Ora, por um lado, nem a Ordem nem os advogados têm nenhum direito fundamental aos "atos próprios" atualmente enunciados na lei (salvo o patrocínio judiciário); pelo contrário, o que está em causa é diminuir a grande restrição da liberdade de profissão que esse excessivo monopólio profissional representa. Por outro lado, é evidente que tanto a Ordem como os advogados individualmente podem impugnar judicialmente os atos de aplicação da nova legislação, invocando a inconstitucionalidade desta -, pelo que também não se verifica o segundo pressuposto do direito de resistência.
Em segundo lugar, a Ordem anuncia a intenção de recorrer ao Tribunal de Justiça da União, por alegada violação de uma Diretiva, quando todo o jurista sabe que isso não faz sentido, pois é aos tribunais nacionais que cabe julgar sobre a conformidade das normas nacionais com o direito da União. De resto, a meu ver, não existe nenhuma desconformidade.
Estas duas pretensões sem base jurídica mostram que a Ordem nem sequer cuidou de defender a sua reputação como representante oficial dos profissionais de consultoria jurídica...