Entrevista no Público com Arnold Kalinin, que foi o primeiro embaixador da antiga União Soviética em Portugal (1974-1982). Nunca o conheci pessoalmente, nem frequentei as habituais recepções da embaixada, mas tive com ele um episódio francamente desagradável, que aqui recordo em público pela primeira vez. Faço-o de memória, por não ter podido procurar os documentos correspondentes (os quais porém guardo algures entre os meus papéis do meu tempo de deputado), e que a seu tempo poderei publicar.
Aí por 1980, era eu há muito vice-presidente da bancada parlamentar do PCP, e porventura o mais conhecido dos seus deputados, dei uma entrevista ao Expresso. A uma pergunta sobre o que pensava da União Soviética, dei a resposta habitual para contornar perguntas desse tipo, dizendo que não conhecia bem a realidade soviética, desde logo porque nunca lá tinha estado. (O que era verdade, tal como em relação a qualquer outro dos países “socialistas”, devendo eu ser um dos poucos membros proeminentes do PCP nessa situação.)
Poucos dias depois recebi na Assembleia uma grande encomenda proveniente da Embaixada soviética. Lá dentro vinha uma colecção de livros e folhetos de propaganda soviética básica. Qual não foi a minha surpresa quando descobri lá dentro uma carta manuscrita em papel timbrado da Embaixada, redigida e assinada pelo próprio embaixador, em Português mascavado, onde se me dirigia como “camarada” e me dizia que, tendo eu “mostrado interesse em conhecer a URSS”, decidira enviar-me aquela literatura onde eu poderia ficar a conhecer melhor a realidade soviética. Não sei se o que me irritou mais foi o abusivo tratamento de “camarada” (dado que ele confundia o seu papel de embaixador com a suposta camaradagem partidária) ou a provocação do envio daquela subliteratura política a pretexto de um interesse que eu não tinha manifestado.
Perante o atarantado João Amaral, que era então chefe de gabinete do Grupo parlamentar do PCP, dei ordens de devolução imediata da encomenda à procedência, enquanto redigia uma indignada carta de resposta, dirigida ao Embaixador da URSS, dizendo-lhe que devolvia o material enviado, que eu não tinha solicitado, e que somente o respeito pelo País “que ele tão mal representava” me impedia de lhe retorquir com o envio de um “manual de boas maneiras diplomáticas” sobre como o embaixador de uma “potência estrangeira” se deveria dirigir aos deputados do “país soberano” em que cumpria a sua missão.
Já depois de escrita e remetida esta carta, dei conhecimento do sucedido, incluindo cópia dos dois documentos, ao presidente do Grupo Parlamentar, Carlos Brito, com explícito pedido de o relatar ao Secretário-Geral do Partido, Álvaro Cunhal. Presumo que isso foi feito. Mas não tive nenhuma reacção nem dele nem do Embaixador Kalinine.
As minhas relações com a União Soviética resumiram-se a este edificante episódio. Quero crer que ninguém perdeu nada com esse desencontro...
Vital Moreira