quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Memórias acidentais (14): Gorbatchev (1931-2022)

1. Gorbatchev não foi somente o dirigente russo que, tendo iniciado em 1985 uma reforma do sistema soviético - baseado no Estado-partido e na economía estatizada, conforme aos cânones  leninistas -, acabou por desencadear um processo que levou à queda do muro de Berlim (1989) e a tudo o que se seguiu, designadamente o fim  da União Soviética e do comunismo na Europa, a independência de várias das antigas repúblicas soviéticas (Países bálticos, Ucrânia, etc) e o termo da "guerra fria". 

Além disso, ele mudou o mundo. Politicamente, o séc. XX termina em 1989, marcando simbolicamente o triunfo da economia de mercado e da democracia liberal sobre as economias coletivizadas e as "democracias populares".

2. As ideias reformistas de Gorbatchev também contribuíram, desde o início, para abalar os partidos comunistas ocidentais, quase todos de filiação soviética, como era o caso do PCP, acabando por fazer implodir o movimento comunista internacional. 

No caso português, a "abertura" de Gorbatchev em Moscovo animou os comunistas portugueses que não compartilhavam da fidelidade aos dogmas do marxismo-leninismo nem se reviam no modelo soviético a saírem a terreiro e a abrirem o debate dentro do Partido. Daí nasceu o "grupo dos seis", de que fiz parte, o qual em 1987, num documento entregue à direção do partido e depois tornado público, apresentou uma visão muito crítica do estado do PCP, ousando propor a abertura de um processo de "reestruturação geral" do partido. Ao "grupo dos seis" seguiu-se a chamada "terceira via". 

Apesar de quase todos os envolvidos nessa contestação da orientação tradicional terem abandonado o Partido (como foi o meu caso) ou terem sido expulsos, o PCP perdeu parte importante da sua elite intelectual e acentuou desde então o seu lento, mas inexorável, declínio como força política em Portugal.

Adenda
O lamentável comunicado do PCP sobre a morte Gorbatchev, condenando-o pela "destruição da URSS", revela a sua  impenitente fidelidade ao antigo modelo soviético e ao dogma marxista-leninista, aliás canonizado por Estáline, e a inerente hostilidade à democracia liberal e à economia de mercado, o que obviamente exclui qualquer aliança governativa com o PS, por manifesta incompatibilidade ideológica, comprovando que a "Geringonça" era uma aliança de circunstância que não podia durar muito, como aqui sempre se argumentou.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Assim vai a política (12): A saída de Marta Temido

1. A prolongada crise das urgências hospitalares e dos serviços de obstetrícia, centrada na região de Lisboa - o que ampliou a sua visibilidade mediática, exploração corporativista e exposição política -, não podia deixar de fazer "rolar cabeças".

Se o SNS tivesse uma direção própria, teria sido a Ministra a demiti-la; como não tem, e a Ministra funciona realmente como diretora do SNS, gerando necessariamente a politização de todos os problemas de gestão, teve de ser ela a demitir-se, passando rapidamente do "Capitólio à Rocha Tarpeia" da política. São os custos da responsabilidade ministerial.

2. Sucede, porém, que as coisas não têm de ser assim. 

O ministros servem para fazer política, preparando e dirigindo a respetiva política setorial e superintendendo na sua execução, e não para tarefas de gestão ou administração, pelo que não devem ser diretos responsáveis pelos serviços públicos sob sua tutela, servindo também de bombeiros em caso de acidentes. Tal como o ministro da Defesa não gere as forças armadas e o ministro da Administração Interna não gere as forças policiais, e assim por diante, também o ministro da Saúde não tem que gerir o SNS, que, aliás, está longe de ter o monopólio da prestação de cuidados de saúde em Portugal. 

O novo Estatuto do SNS veio finalmente criar uma direção executiva própria para o serviço, responsável pela sua gestão (embora naturalmente sob superintendência ministerial). Mas, por culpa própria, para Marta Temido essa separação e desconcentração de tarefas chegou tarde.

Adenda 
Embora pense, como já disse várias vezes, que o SNS não tem futuro na sua atual configuração, julgo que a existência de uma direção própria, responsável pela sua gestão, pode melhorar as coisas, desde que ela tenha poder para nomear e responsabilizar os gestores das suas "unidades de produção", os quais, por sua vez, serão incentivados a velar pelo desempenho dos serviços e do seu pessoal. Com efeito, a meu ver, a grande falha do SNS é a sua baixa eficiência, filha do défice de avaliação e de responsabilidade da gestão e do desempenho dos serviços.

Adenda 2
Um leitor argumenta que MT foi "vítima do continuado subfinanciamento do SNS", que a impediu de resolver os problemas de fundo. Discordo em absoluto. Nos últimos anos o orçamento do SNS aumentou três mil milhões de euros, com um aumento substancial também dos números do pessoal (mais de 20 000), sem que tal substancial acréscimo de recursos se refletisse em correspondente subida de produção.  Ou seja, aumentou a ineficiência e o desperdício - que são a grande falha do SNS (como mostrei AQUI).

Guerra na Ucrânia (46): Insensatez agravada

Depois da estúpida exclusão de russos de provas desportivas e de eventos culturais no início da guerra, agora há quem queira proibir a entrada de turistas russos na UE.

Está visto que a sensatez e a decência não resistem a guerra. Além de ser mais um tiro no próprio pé - como se argumenta neste editorial do Financial Times -, fechar a UE aos civis russos traduz-se numa punição coletiva pela ação bélica do seu governo, que nenhum argumento pode justificar e que os princípios por que se rege a União excluem. 

Espero que o Governo português não embarque nesta política aventureira.

Adenda
Um leitor pergunta se esses países vão também propor a «proibição de os cidadãos europeus visitarem a Rússia e, depois, de lerem Tolstoi e de escutarem de Tchaikovski». Espero que não cheguem aí, mas parece evidente que o agressivo fundamentalismo antirrusso de alguns países do Leste está a contaminar a União e a minar os seus valores de humanismo, cosmopolitismo e universalismo nas relações entre os povos, por sobre os litígios entre os Estados.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Bicentenário da Revolução Liberal (40): O contributo decisivo de José Liberato

1. Acaba de ser publicado na revista História JN um artigo assinado pelo Prof. José Domingues e por mim, evocando os 250 anos do nascimento de José Liberato (1772-1855), um dos "pais intelectuais" da Revolução Liberal.

Lembrando a sua vida e obra política, o artigo sublinha também o contributo decisivo do Campeão Português, por ele editado e redigido a partir do seu exílio em Londres, no período anterior e imediatamente posterior à Revolução Liberal (entre 1819 e 1821), quer pela crítica tenaz do absolutismo, quer pela proposta constitucional que apresentou.

O nosso artigo visa resgatar esse contributo de Liberato, que não tem tido a atenção e o estudo que, a nosso ver, merece.

2. Este artigo é um extrato adaptado de um livro em preparação pelos autores sobre o pensamento político-constitucional de José Liberato nesse período crucial da história nacional, assim como sobre a sua repercussão na Constituição de 1822 e nas constituições seguintes da monarquia constitucional (Carta Constitucional de 1826 e Constituição de 1838).

Sendo acima de tudo um liberal, focado na defesa e garantia dos direitos e liberdades individuais, Liberato (aliás, nome por ele adotado a caminho do exílio), cuidou, porém, de sublinhar o papel essencial das cortes, como representação política nacional, quer na antiga constituição da monarquia pré-absolutista, quer na nova era constitucional inaugurada pela Revolução Liberal.

Aliás, para Liberato, o «direito às Cortes» era o mais decisivo direito político da antiga constituição, que o absolutismo postergara, e cuja repristinação, ainda que em novos moldes, só por si justificava a revolução constitucional.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Stars & Stripes (8): A ameaça autoritária de Trump

1. Impõe-se ler este artigo do credenciado analista político do Financial Times, Martin Wolf, sobre o risco de uma deriva autocrática dos Estados Unidos, caso Trump viesse a retomar a presidência daqui a dois anos.

Wolf afirma rotundamente que o Partido Republicano adotou o "Führer Prinzip", ou princípio do chefe, segundo o qual a autoridade do líder é inquestionável e a fidelidade pessoal ao líder é absoluta, forçando o afastamento de todos os que ousem questioná-la, como sucedeu agora com a "defenestração" da deputada Liz Cheney, nas eleições primárias do Partido Republicano do seu Estado, por ter ousado contrariar a conspiração de Trump contra as eleições presidenciais que perdeu.

2. Sendo certo que Trump continua a liderar confortavelmente o apoio dos Republicanos (como mostra o quadro acima) e que - salvo acusação penal por causa do incentivo à invasão do Capitólio por apoiantes seus em 6 de janeiro de 2020 - virá a ser de novo o seu candidato presidencial, a única maneira de afastar o risco da deriva autocrática reside numa nova vitória dos Democratas, o que neste momento é temerário prever.

A possível derrota Democrata nas eleições intercalares de outubro deste ano pode anunciar dois anos de preocupante incerteza política quanto ao desfecho do desafio autocrático na disputa da Casa Branca em 2024.

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Guerra na Ucrânia (45): Ao contrário do previsto, a economia russa aguenta

Quando o Ocidente reagiu à invasão russa da Ucrânia com um maciço programa de sanções económicas e financeiras (incluindo a captura das substanciais reservas de divisas russas em bancos ocidentais), o objetivo era levar a Rússia a um rápido colapso económico (incluindo um default de pagamentos), obrigando-a a recuar. Nove em cada dez analistas prognosticaram uma devastadora crise económica!

Seis meses depois, a situação económica russa está longe de ir ao encontro de tais previsões. A respeitada revista britânica The Economist diz que poucos previam que a economia aguentasse e explica por que razões é que ela continua a desmentir as previsões, entre as quais se contam a considerável autossuficiência económica da Rússia, o facto de muitos países não terem alinhado nas sanções e de o próprio ocidente continuar a importar energia russa e a circunstância de a guerra e as sanções terem valorizado as principais exportações russas.

Seja como for, uma coisa parece óbvia: não será por asfixia económica da Rússia que a guerra vai acabar. E uma vez que a Ucrânia também não está disponível para se dar por vencida, preparemo-nos para um conflito duradouro (como, aliás, desde o início aqui se alertou). 

Adenda
Segundo esta notícia, «Moscovo fatura agora quase mais 90 por cento do que há um ano [nas suas exportações de energia para os 27 países da UE]», mercê do aumento de preço, que mais do que compensa a redução da quantidade. Ou seja, as sanções funcionam em benefício do sancionado, que se dá mesmo ao luxo de ameaçar com redução das suas exportações! Uma gritante contradição.

domingo, 21 de agosto de 2022

Não dá para entender (25): Estranha ausência


Realizou-se ontem a inauguração da restaurada "catedral velha" de Quelimane (Moçambique), um importante legado histórico do património arquitetónico luso-moçambicano, edificada no século XVIII, que se encontrava à beira da total ruína, sendo a recuperação devida a uma bem-sucedida iniciativa cívica de moçambicanos e portugueses. 
No entanto, apesar dessa ligação especial do referido monumento a Portugal e de termos sido um dos países doadores de contribuições financeiras que permitiram custear a realização da obra, a embaixada portuguesa em Moçambique não se fez representar no festivo evento, ao contrário dos embaixadores de outros países doadores, como a Noruega e os Estados Unidos. Ora, a sua presença impunha-se tanto mais quanto é certo que a visita dos presidentes de Portugal e de Moçambique, que chegou a ser anunciada, não pôde concretizar-se.

O MNE em Lisboa deve uma explicação sobre esta estranha ausência.

Adenda
Sobre o restauro da velha catedral ver este artigo que, junto com Maria Manuel Leitão Marques, escrevi para o Público - e que torna ainda mais incompreensível a ausência do nosso embaixador da inauguração

O que o Presidente não deve fazer (31): Interferência nos partidos

Não é de saudar a ida do Presidente da Repúblicaa a uma realização política do PSD, pelo contrário.

No nosso sistema cosntitucional, o PR não é eleito com base em candidaturas partidárias e, uma vez eleito, representa a República, ou seja, a coletividade política no seu conjunto, na sua expressão política multiforme. Por isso, a participação de MRS na iniciativa do PSD constitui uma manifesta violação da sua obrigação de neutralidade partidária. Muito menos lhe cabe "puxar" por um partido, por sinal aquele de que é oriundo, interferindo no livre jogo partidário, favorecendo-o contra os demais. 

Nenhum partido pode ter o privilégio de beneficiar publicamente dos favores presidenciais.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Pobre língua (22): Banalização do erro

Quando um semanário como o Expresso, num artigo assinado por duas jornalistas, escreve "séniores", em vez de "seniores", ecoando o erro que se vai generalizando nos comentadores desportivos, dá vontade de perguntar se as autoras, seguramente com curso superior, pronunciam a palavra tal como a escrevem, acentuada na primeira sílaba. Provavelmente também dizem e escrevem "júniores"...

Se a língua sofre destes maus tratos na imprensa de referência, é de temer o pior...

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Stars and stripes (7): A imprudência de Washington

Depois de ter provocado a Rússia com a extensão da Nato à Ucrânia, contra o estatuto de neutralidade desta - e criando um excelente pretexto para a invasão russa -, Washington resolveu provocar também a China com a inesperada visita da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, a Taipé, que mesmo a imprensa normalmente amistosa considera incoerente

Não se poderia imaginar melhor meio de solidificar a aliança entre Moscovo e Pequim!

Adenda
Um leitor comenta que «é preciso ser realmente muito arrogante e muito estúpido» e que «hoje à noite, Putin abre uma garrafa do melhor champanhe que tenha por lá». Concordo.

Adenda 2
Um leitor pergunta se a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, também vai a Taipé, na peugada de Nancy Pelosi, e comenta que o «alinhamento acrítico da UE com a política externa dos Estados Unidos torna a ideia de autonomia estratégia da União uma verdadeira farsa». Concordo!