sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Ética republicana (3): Um caso indecente

1. Como é que a gestora de uma empresa pública em oneroso processo de recuperação - à custa de mais de 3000 milhões de dinheiro dos contribuintes, de redução de pessoal e de diminuição salarial - consegue obter uma indemnização de meio milhão à conta de fim da relação contratual, por incompatibilidade (talvez deliberada) com a administração, e pouco depois é premiada, primeiro com a nomeação para gestora de outra empresa pública na mesma área e sob a mesma tutela, e depois com a nomeação para secretária de Estado no sensível ministério das Finanças?

Pior do que falta de escrúpulos da beneficiária é a indecência política da sua imediata nomeação para outra empresa pública e, pior ainda, para o Governo

2. Impõe-se claramente instituir um teste de ética republicana antes de todas as nomeações políticas, quer através do adequado escrutínio do CV dos indigitados, quer requerendo a todos eles uma declaração pessoal de isenção de envolvimento em qualquer ato ou omissão suscetível de pôr em causa a ética política. 

Numa república bem governada não basta a legalidade dos procedimentos políticos, mas também a sua conformidade com os princípios da integridade e da ética republicana.

No bicentenário da Revolução Liberal (44): Quando o grande protagonista do constitucionalismo "vintista" morreu

 

1. No passado dia 19 de novembro passaram 200 anos sobre a morte de Manuel Fernandes Tomás (1771-1822), figura maior da Revolução liberal e constitucional em Portugal, desde o Sinédrio (1818) às primeiras eleições parlamentares (verão de 1822), passando pela revolução, o governo provisório, as Cortes Constituintes e a elaboração da Constituição de 1822.

No artigo acima referenciado - coautoria do meu colega Professor José Domingues e minha, na revista JN História, hoje publicada -, coligimos os principais testemunhos coevos sobre a sua morte, desde as cerimónias fúnebres em Lisboa e no Porto, passando pelos relatos na imprensa, até aos discursos na homenagem que lhe foi prestada poucos dias depois na Sociedade Literária Patriótica, nomeadamente de Almeida Garrett e Xavier de Araújo.

Nestas impressionantes manifestações de pesar e admiração sobressai devidamente a grandeza e a integridade política e moral do "patriarca" do constitucionalismo em Portugal.

2. Ninguém como Fernandes Tomás encarnou os ideais do vintismo na supressão do despotismo absolutista e na sua substituição por um regime constitucional baseado na liberdade individual, na cidadania, na soberania da Nação, na separação de poderes (legislativo, executivo, judicial), no governo representativo assente num parlamento eleito como titular exclusivo do poder legislativo e na submissão do governo à lei.

A sua morte prematura, que já não lhe permitiu iniciar o mandato de deputado às Cortes ordinárias, para que foi eleito em vários círculos eleitorais, anuncia simbolicamente a aproximação do fim do breve triénio vintista (1820-1823). Mas o seu legado de fundador da moderna era constitucional em Portugal, de que somos herdeiros, merece o nosso eterno tributo.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

50 anos do 25 de Abril (1): Comemorar e refletir

Quando se aproxima o meio século da revolução democrática do 25 de Abril de 1974 - que pôs fim à longa ditadura do chamado Estado Novo e à guerra colonial e instituiu o Estado de direito constitucional, a democracia liberal e o Estado social de que hoje usufruimos -, importa não somente preparar as merecidas celebrações, mas também refletir aprofundamente tanto sobre os êxitos alcançados como sobre os desafios subsistentes.

Nessa última perspetiva, cabe naturalmente às universidades uma especial responsabilidade. Cumpre, por isso, saudar a iniciativa da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC), sob a dinâmica direção do Professor Gouveia Monteiro, de organizar nos primeiros meses do ano que vem uma série de conferências a duas vozes sobre um conjunto dos temas da maior atualidade.

É um bom começo!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

No bicentenário da Revolução Liberal (44): As primeiras eleições parlamentares, 1822.

1. Assinalando os 200 anos das primeiras eleições parlamentares em Portugal (1822), acaba de sair do prelo, por conta das edições da Assembleia da República, o livro acima apresentado, mais um produto da minha coautoria com o meu colega José Domingues, no campo da história política e constitucional nacional. 

Até agora pouco conhecidas, por carência de documentação, a investigação que gerou este livro  deve-se à descoberta de um espólio até aqui desconhecido, relativo ao círculo eleitoral de Arcos de Valdevez (que abrangia todo o Alto Minho), que foi salvo, por feliz acaso, da sanha destruidora da contrarrevolução anticonstitucional, que mandou queimar toda a documentação oficial sobre as eleições vintistas.

2. Realizadas em agosto e setembro de 1822, ainda a Constituição não estava concluída, segundo lei eleitoral aprovada pelas próprias Cortes Constituintes, as eleições parlamentares de 1822 representaram uma notável mudança em relação às eleições constituintes de 1820, nomeadamente quanto à adoção da eleição direta dos deputados, em círculos eleitorais plurinominais, em vez da eleição indireta em quatro graus das eleições precedentes, tal como em Espanha.

Tendo-se mantido, apenas com ligeiras alterações, o direito de sufrágio (masculino) alargado de 1820, sem requisitos de rendimento ou literacia, as nossas primeiras eleições parlamentares não só comparam positivamente com os sistemas eleitorais coevos - em que a opção pela eleição direta, quando existia, era contrabalançada pelo sufrágio mais ou menos restrito -, mas também permaneceram sem seguimento na nossa história eleitoral praticamente até às eleiçoes constituintes de 1975, as primeiras por sufrágio universal!

3. Embora as eleições para as Cortes ordinárias de 1822 se tenham saldado por uma vitória política do "partido constitucional", apesar da ofensiva das correntes reacionárias, a verdade é que o campo parlamentar vintista se viu desfalcado da núcleo duro dos membros do Sinédrio, nomeadamente das suas figuras mais eminentes, como Fernandes Tomás (que faleceu prematuramente e não chegou a tomar posse do mandato) e Ferreira Borges (que não conseguiu ser eleito no seu Porto natal).

Privado da liderança política e moral dos "pais da revolução constitucional", o parlamento vintista não teve força suficiente para contrariar a redução da base social de apoio da revolução, designadamente entre os militares, nem para obtar à conspiração e sublevação miguelista.

Mas a brevidade da experiência vintista em nada diminui a importância dessas primeiras eleições parlamentares na nossa história eleitoral, parlamentar e constitucional.



sábado, 17 de dezembro de 2022

Corporativismo (39): Usurpação de funções

1. Começa mal o seu mandato a nova bastonária da Ordem dos Advogados, ao defender como prioridade da sua ação a revisão do regime de segurança social dos advogados.

Sucede que tal matéria não consta das atribuições legais da Ordem e que as entidades públicas só podem usar os seus poderes para a prossecução das suas atribuições legais. É certo que no mandato cessante houve um referendo sobre o assunto promovido pela OA, o qual, porém, tem de se considerar nulo, justamente por versar sobre matéria alheia às suas atribuições.

É óbvio que a CPAS não é um organismo da Ordem nem depende dela, sendo uma entidade pública autónoma, que aliás abrange também os solicitadores. É no âmbito desta que os respetivos beneficiários devem discutir o seu regime de segurança social.

Este ato de usurpação de funções da OA não pode prevalecer, só podendo ser rejeitado pelo Governo e devidamente impugnado pelo Ministério Público.

2. No atual regime constitucional, as ordens profissionais só devem poder ser instituídas por lei para efeitos de regulação e disciplina profissional, por delegação de poderes do Estado. Não existe nenhuma razão para lhes serem reconhecidos privilégios adicionais, de que as demais profissões não podem usufruir.

Embora se tenham mantido no novo regime constitucional, as ordens profissionais provindas do "Estado Novo" perderam necessariamente as funções no domínio das relações de trabalho e da saúde e segurança social que tinham no antigo regime corporativo. A OA não pode constituir exceção e regressar ao antigamente.

A deriva corporativista das ordens não pode continuar a vingar, desde logo quanto à expansão das suas funções.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Um pouco mais de rigor sff (71): Hipótese absurda

1. Tomada à letra, a manchete de hoje do Público é um enganador contrassenso, pois é geralmente sabido, contra o que nela se lê, que nenhum veto político presidencial resiste a uma maioria parlamentar de 2/3, bastando em geral a maioria absoluta.

Lendo a notícia subsequente, vê-se que o jornal se refere a um eventual "veto por inconstitucionalidade", que é coisa bem distinta, sendo a recusa de publicação obrigatória para o PR, caso o Tribunal Constitucional se tenha pronunciado pela inconstitucionalidade de um diploma em "fiscalização preventiva". Mas é evidente que nesse caso, a hipótese de reaprovação parlamentar do diploma vetado por inconstitucionalidade não está, nem poderia estar politicamente em cima da mesa.

2. Tal nunca sucedeu, e compreende-se bem porquê: (i) porque não se vê como é que se poderia reunir 2/3 de deputados, mesmo entre os que tenham votado a lei, para desafiar o juízo de inconstitucionalidade do TC; (ii) porque, mesmo que, por absurdo, tal decisão viesse a ser adotada, o PR seguramente não promulgaria o diploma, como guardião da Constituição que deve ser; (iii) porque, mesmo que o diploma viesse a ser promulgado, por deslealdade constitucional de Belém, ele continuaria a ser inconstitucional, podendo ser judicialmente impugnado ato contínuo, não chegando a ser aplicado.

Resta saber porque é que se fazem manchetes jornalísticas em "jornais de referência" com hipóteses politicamente absurdas.

Assim não vamos lá: Insuficiente inovação

Nesta classificação mundial da inovação económica, Portugal figura num modesto 32º lugar, muito abaixo das economias mais dinâmicas. 

A acrescentar aos conhecidos fatores da ineficiência económica nacional - excessiva fragmentação empresarial, insuficiência de capital, de competências de gestão e de mão de obra qualificada, barreiras legais à entrada no mercado e à concorrência, protecionismo profisssional, enquadramento fiscal adverso, etc. -, este défice de inovação contribui para o fraco desempenho da economia.

Assim, apesar da maciça ajuda dos fundos da UE, vamos continuar sem progredir na escala da produtividade e da competitividade económica internacional.