quarta-feira, 21 de maio de 2025

Conferências & colóquios (10): O papel dos parlamentos locais


Quando se aproxima a renovação eleitoral quadrienal dos órgãos do poder local, lá para finais de setembro, este colóquio, em boa hora promovido pela prestigiada AEDREL, propõe-se revisitar e debater o estado da nossa democracia local.

Pela minha parte, proponho-me abordar a situação das assembleias municipais, suscitando a questão do seu quadro jurídico-institucional, que vem desde 1976, e que limita o seu papel como verdadeiros parlamentos municipais, que deveriam ser.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Manifesto dos 50 (13): Apresentação do livro, desta vez em Guimarães

Depois do lançamento em Lisboa e no Porto, eis mais uma sessão de apresentação pública das ideias do «Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça» e do livro entretanto publicado, desta vez em Guimarães, no Tribunal da Relação, numa iniciativa do Professor António Cândido de Oliveira e do Dr. André Coelho Lima, ambos subscritores do Manifesto, a que tenho a oportunidade e o gosto em me associar.

Esperamos não ficar por aqui!

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Eleições parlamentares 2025 (16): E agora, PS?

1. Depois deste desastre eleitoral, numas eleições que podia e devia ter evitado, e que só surpreendeu pelos números, o que deve fazer o PS, além de lamber as feridas e preparar o processo de seleção de nova liderança?

Ocorre-me recordar o que escrevi num post há tempos:

«(...) estando excluída entre nós, pelo menos por agora, a hipótese de governos de grande coligação ao centro (à alemã), não é impossível, porém, equacionar um pacto estável entre os dois tradicionais partidos de governo , no sentido de, em caso de vitória eleitoral sem maioria absoluta, cada um deles deixar governar o outro salvo coligação governamental maioritária alternativa -, viabilizando a constituição do Governo e prescindindo de votar moções de censura, a troco da negociação dos orçamentos (...).

Parecendo-me excluída a repetição de maiorias absolutas monopartidárias - por causa fragmentação da representação parlamentar - e também pouco provável a hipótese de coligações maioritárias, quer do PSD com a sua direita (excluindo obviamente o Chega), quer do PS com a sua esquerda (excluindo o Bloco e o PCP), este acordo entre os dois partidos de governo faz todo o sentido, para ambos, agora e no futuro.

Um acordo desta natureza era obviamente inviável para o PS sob a liderança de PNS - refém daquilo que eu chamo há muito a "ala bloquista" do PS -, mas não vejo como pode deixar de ser equacionado por uma nova direção, necessariamente menos radical e mais racional.

2. Julgo que, além da estabilidade governativa que um acordo destes geraria, bem como do quadro favorável aos necessários "acordos de regime" entre ambos os partidos (na reforma da justiça, da lei eleitoral, do SNS, etc.), ele torna-se neste momento essencial para assegurar ao PS um seguro contra o risco de tentação do PSD de utilizar a maioria de 2/3 dos deputados que a nova AR confere ao conjunto dos partidos de direita, para fazer aprovar contra o PS, não somente alterações às leis que carecem daquela maioria (entre as quais a lei eleitoral) e a designação de cargos públicos de topo (como os juízes do Tribunal Constitucional), mas também a própria revisão constitucional.

Ou seja, além da estabilidade governativa, o que está em causa é também a própria estabilidade do regime constitucional vigente, o que, nas vésperas da celebração dos seus 50 anos, devia estar entre as prioridades políticas de ambos os partidos, e em especial do PS.

Adenda
Um leitor acusa-me de propor a «reedição do bloco central» (que foi o nome dado ao governo de coligação entre PS e PSD em 1983-85), mas sem nenhuma razão, pois essa solução está explicitamente afastado no meu texto. Nem sequer proponho a negociação do programa de governo nem um compromisso sobre políticas públicas. Penso que o PS deve assumir-se como oposição. Como digo acima, entendo que pode e deve haver entendimentos para os chamados "acordos de regime", desde logo porque a Constituição exige maioria de 2/3 para as respetivas leis. E, embora possa haver espaço para entendimentos com o Governo quanto a algumas políticas sectoriais, penso que o espaço para isso é limitado. O que proponho, desde há muito, é um pacto entre PS e PSD quanto à sustentação recíproca dos seus governos minoritários, e penso que tal pacto é essencial no atual quadro parlamentar, pelas razões que indico no final do meu post. Sem um compromisso como o que proponho, que consolide o afastamento a do PSD em relação ao Chega, ficaremos sempre sob a chantagem de ver posto em causa o próprio regime constitucional vigente, que assenta, desde a origem, num compromisso do PS e do PSD quanto aos seus pilares.


domingo, 18 de maio de 2025

Eleições parlamentares 2025 (15): PS: uma derrota histórica

 1. O grande derrotado destas eleições é indubitavelmente o PS, que conseguiu fazer muito pior do que no ano passado, com a maior derrota desde há 38 anos (1ª maioria absoluta de Cavaco Silva, em 1987), agora, porém, politicamente agravada pelo comprometedor empate com o Chega (ainda sem os deputados da emigração...). 

Entre as razões por que defendi que o PS devia ter evitado estes eleições, não caindo na armadilha montada por Montenegro, esteve o alerta para um novo resultado desfavorável. No post de 17 de março, escrevi:

«A seu favor o PS tem o golpe na credibilidade do líder do PSD, por causa do caso Spinumviva e da fuga para eleições, bem como as dificuldades governamentais em várias áreas, como a saúde e a cultura. Contra ele, porém, tem a boa situação económica e social, que favorece o Governo, e a distribuição de benesses prodigalizadas, ao longo destes meses, a várias constituencies eleitorais importantes, mercê do excedente orçamental que recebeu dos governos do PS. Ora, não há memória de a oposição ganhar eleições quando a economia e as finanças correm bem ao Governo...

Acresce que, apesar do louvável exercício de moderação e responsabilidade de que deu provas ao viabilizar o Governo da AD e, depois, ao recusar-se a derrubá-lo, mediante a abstenção na votação de moções de censura, a liderança de PNS continua sem se conseguir afirmar para fora do Partido (o que os projetados Estados gerais poderiam ter permitido) e sem que o seu estilo de comunicação política consiga gerar a necessária adesão e empatia no eleitor comum. Ora, nas eleições parlamentares, a disputa também envolve os líderes dos partidos candidatos ao Governo, como potenciais primeiros-ministros, o que estabelece especiais exigências ao challenger... 

Em suma, nada indica que vá ser fácil a aposta do PS nestas eleições, que poderia ter travado.»

O líder e a direção do PS preferiram ignorar este alerta, que não fui o único a exprimir, e o PS pagou cara a imprudência, com o desastre eleitoral de hoje

2. De facto, a derrota do PS só surpreende pelos números, muito mais gravosos do que o antecipado. 

Pela primeira vez, o PS repete duas derrotas consecutivas com menos, bastante menos, de 30%, o que só tinha ocorrido em 1985 e 1987, com o nascimento do PRD e ascenção do cavaquismo. Para agravar a dimensão da derrota, as esquerdas no seu conjunto, apesar da subida do Livre, não chegam aos 35%, ainda menos do que no ano passado - um resultado calamitoso.

Creio que PNS e a atual direção socialista devem assumir, sem demora, a inteira responsabilidade por este severo desenlace, gerado pelo seu leviano caprichismo político, apesar dos riscos óbvios e dos avisos recebidos, a que se seguiu um processo em que nada correu bem: o programa eleitoral, as listas, a campanha. 

O PS não deve enfrentar as próximas batalhas políticas - eleições autárquicas e presidenciais - com uma liderança claramente desautorizada nas urnas e que mostrou não estar à altura dos desafios. Impõe-se abrir imediatamente o processo de renovação, para alimentar a esperança da recuperação, que não vai ser fácil, nem rápida.

Adenda
O SG do PS acaba de anunciar a sua demissão, como devia. Penso que nunca devia ter chegado a ocupar o cargo, para o qual não estava devidamente apetrechado.

Adenda 2
Para agravar profundamente a derrota do PS e das esquerdas, os partidos de direita somados têm mais de 2/3 dos deputados (AD-89+Chega-58+IL -9), mesmo sem contar os da emigração, o que dá para alterar, sem o PS, as leis que requerem tal maioria qualificada (como as leis eleitorais) e proceder à revisão da Consttituição - o que até gora nunca tinha sucedido.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Eleições parlamentares 2025 (14): Irresponsabilidade da AD

 

Este gráfico do jornal Público, baseado num estudo do Iscte sobre os custos dos programas eleitorais, mostra que, para além da tradicional incontinência e falta de seriedade política do PCP e do Chega, a AD também revela uma inaceitável demagogia política, sobretudo quando comparado com a responsável contenção do programa do PS, o que, em partidos que pretendem a renovação do mandato governativo, é de uma supina irresponsabilidade orçamental. 

É evidente que eles não contam cumprir as promessas que fazem e que incorrem numa operação não séria de compra de votos.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Free and fair trade (23): O acordo UE-Mercosul

Amanhã, quarta-feira, vou estar aqui, para falar do Acordo comercial UE-Mercosul, cuja demorada e difícil negociação segui desde que fui presidente da Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu, no mandato 2009-2014, que incluiu a visita de uma delegação oficial a Brasília (Câmara dos Deputados e Itamaraty) e a São Paulo (FIESP).

Celebrando a feliz conclusão do Acordo no ano passado, resta-me agora confiar que ele vai ser ratificado pelas duas partes sem mais demora, para vantagem mútua, e como resposta positiva à saída dos EUA da ordem económica internacional sujeita a regras - as da OMC e as dos acordos preferenciais livremente celebrados, como este.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Eleições parlamentares 2025 (14): Não a partidos regionais na AR

Parece que um partido apenas radicado na Madeira, o Juntos pelo Povo (JPP), e que só apresentou candidaturas em metade dos círculos eleitorais (onde, aliás, é invisível), pode vir a obter um mandato na AR por aquele círculo eleitoral, mesmo sendo ínfima a sua votação a nível nacional.

No entanto, a Constituição proíbe a existência de «partidos regionais» e determina que «os deputados representam todo o País, e não os círculos por que são eleitos». Ora, como pode representar todo o País o deputado de um partido que só goza de apoio eleitoral significativo num círculo eleitoral (que representa 2,5% da população do País) e cuja votação a nível nacional vai ser irrisória? E como se respeita a regra constitucional da igualdade do valor dos votos e da representação parlamentar («sufrágio igual», diz a Constituição), se tal partido vai muito provavelmente obter, a nível ancional, votação inferior à de outros partidos nacionais que não vão eleger deputados?

Além de manifesta "regionalização" da representação política nacional, trata-se de um situação politicamente iníqua, que não não condiz nem com a letra nem com o espírito da Constituição.

Adenda
Um leitor objeta que seria «antidemocrático» impedir a representação parlamentar de tal partido, por limitar a sua expressão política. Mas o que me parece pouco ou nada democrático é que um partido de expressão política localizada obtenha representação na AR, que visa representar todo o País, sem votação relevante a nível nacional, quando outros partidos com maior votação o não conseguem.  

Adenda 2
Outro leitor observa que o único modo de impedir situações dessas seria a adoção de uma "cláusula-barreira" eleitoral (ou seja, um limiar de votação a nível nacional como condição para obter representação parlamentar), tal como existe em vários países (Espanha, Alemanha, etc.), mas que a nossa Constituição exclui expressamente. É verdade, mas, mesmo sem remover esse preceito constitucional, não é impossível obter um efeito semelhante, exigindo que os partidos obtenham uma votação mínima num certo número de círculos eleitorais, como prova de que não têm expressão exclusivamente regional.

domingo, 11 de maio de 2025

História constitucional (13): As assembleias constituintes de 1911 e de 1975-76

 


Neste número da JN História, que acaba de sair, é publicado o 2º artigo da minha coautoria como Prof. José Domingues, que conclui o que foi publicado no nº anterior, completando um breve panorama histórico sobre as quatro assembleias constituintes nacionais, correspondentes a outras tantas revoluções políticas e constitucionais (1820-22, 1836-38, 1910-11 e 1974-76.

Neste segundo artigo, abordamos as duas assembleias constituintes do século XX - ou seja, as de 1911 e de 1975-76, que aprovaram respetivamente a Constituição de 1911 e a CRP de 1976 - e concluimos com uma breve síntese comparativa das quatro constituintes, destacando as principais semelhanças e diferenças entre elas (modo de eleição, poderes, duração, procedimento constituinte, etc.).

Assinalando o 50º aniversário das eleições constituintes de 1975 - as mais democráticas de sempre -, o nosso objetivo é facultar a um público mais vasto do que os círculos académicos uma introdução às experiências de poder constituinte democrático em Portugal.

Corrigenda
Por lapso de paginação da revista, o 1º parágrafo da peça impressa, acima reproduzida, não pertence ao nosso texto, que, portanto, só começa no 2º parágrafo. As nossas desculpas.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Não é bem assim (20): Podem os naturalizados ser candidatos a PR?

Neste comentário do Polígrafo do Sapo, corrigindo o disparate de um candidato de extrema-direita, sobre a pretensa possibilidade de um imigrante naturalizado ser candidato a PR, lê-se o seguinte: 
«É absolutamente falso que um cidadão com dupla nacionalidade possa ser Presidente da República em Portugal. Na Parte III da Constituição, relativa à organização do poder político, o artigo 122.º, sobre a elegibilidade do Presidente da República, dita que só são elegíveis os cidadãos eleitores, portugueses de origem, maiores de 35 anos.»

Há aqui uma confusão: os imigrantes naturalizados não podem efetivamente ser candidatos a PR, não por terem dupla nacionalidade, como se escreve no comentário transcrito (que até podem não ter), mas sim por não serem portugueses de origem, como diz a referida norma constitucional. Com efeito, a Constituição não impede que um cidadão português de origem que tenha outra nacionalidade - por exemplo, filho de portugueses nascido no Brasil - possa ser candidato a PR.

O que se pode discutir é se esta solução não devia ser corrigida, como defendo, mudando a norma constitucional, para impedir a candidatura de cidadãos binacionais a PR (e a outros cargos políticos, como PM), por risco de conflito de interesses entre as duas nacionalidades.

[texto revisto]

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Stars & Stripes (21): Tiro pela culatra

Boas notícias: economia dos EUA no negativo, apesar do aumento do consumo e do investimento, devido à redução da despesa pública e ao agravamento da balança comercial, por efeito do aumento das importações, por antecipação dos consumidores e das empresas à subida das tarifas aduaneiras. 
Bem feito! A únicas coisas que podem virar os cidadãos americanos contra Trump são os anunciados cortes orçamentais nos programas sociais e a degradação da economia, que, pelos vistos, já começa a fazer o seu serviço.

sábado, 3 de maio de 2025

Rasto no tempo (3): Uma homenagem devida


Aplauso para esta homenagem de uma prestigiosa instituição de Coimbra a um ilustríssimo cidadão da cidade - o Professor J. J. Gomes Canotilho -, uma pessoa de caráter e integridade moral sem mácula, um académico prestigiado que honra a Universidade de Coimba, um constitucionalista de topo, dentro e fora de portas, um intelectual inquieto e um homem culto (honrado pelo prémio Pessoa), um humanista solidário com as causas da humanidade e um conimbricense adotivo que não tem perdido ocasião para prestigiar a cidade. 

Não pondendo estar pessoalmente presente, por motivo de ausência de Coimbra, não quero de deixar de me associar a esta justíssima homenagem. Aqui ficam o meu testemunho e as minhas felicitações pessoais: parabéns, Joaquim!

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Eleições parlamentares 2025 (15): Montenegro "apanhado"

1. Esta estória da correção da declaração de interesses de Montenegro, por intimação da Entidade da Transparência, contada AQUI, mostra duas coisas muito importantes: (i) que ele faltava à verdade ao garantir que tinha declarado tudo o que era legalmente necessário, quando afinal tinha omitido vários clientes da sua empresa pessoal de prestação de serviços, a Spinumviva;  (ii) que o PS tinha toda a razão, ao incluir no seu requerimento de inquérito parlamentar justamente o controlo da veracidade da declaração de interesses do Primeiro-Ministro. 

Mas esta estória mostra mais: que Montenegro optou por esgotar o prazo de 30 dias dado pela Entidade da Transparência para a correção da falta, a fim de adiar ao máximo o seu conhecimento público, como é devido, quiçá para depois das eleições. Não é propriamente uma conduta digna de um líder partidário que se propõe renovar o seu mandato na chefia do Governo.

2. Todavia, a notícia da correção que lhe foi exigida veio destruir a sua laboriosa tentativa de meter o caso da sua empresa pessoal "debaixo do tapete" durante a campanha eleitoral e reavivar a suspeita, bem mais grave, sobre a violação da exclusividade como governante, que também era objeto do inquérito parlamentar do PS, e cujo esclarecimento Montenegro persiste em recusar, não exibindo os documentos que provem que não continuou a ser o verdadeiro responsável pela prestação de serviços da sua empresa, nem a beneficiar das respetivas avenças.

É de novo a dúvida sobre o cumprimento das obrigações legais (e não somente éticas) quanto a transparência e a incompatibilidades do PM cessante que está de novo na praça pública.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Amanhã vou estar aqui (21): Nos 199 anos da Carta Constitucional de 1826

Para melhor compreender uma peça essencial da nossa história constitucional - que amanhã perfaz 199 anos e que, até agora, foi a mais duradoura das nossas seis constituições -, que tambem é uma fonte importante para o entendimento do sistema político na CRP de 1976.

sábado, 26 de abril de 2025

Memórias acidentais (27): Deputado constituinte (1975-76)

1. A passagem, ontem assinalada, dos 50 anos das eleições constituintes de 25/4/1975 trouxe-me à memória alguns aspetos da minha atividade como deputado constituinte, em 1975-76, que culminou na aprovação da Constituição de 1976.

Ainda não tinha 30 anos, era assistente da Faculdade de Direito da UC e, por causa da revolução, interrompera a preparação do doutoramento em teoria da Constituição que estava a preparar em Londres, tendo regressado logo a Portugal, envolvendo-me em pleno na atividade política.

Comecei por não ser diretamente eleito, pois o PCP só elegeu um deputado no círculo eleitoral de Coimbra, e eu era o 2º candidato, a seguir ao dirigente nacional do partido, Blanqui Teixeira. Mas não tardei a rumar para Lisboa, pois logo no início dos trabalhos da Constituinte ele pediu a renúncia ao mandato para me fazer entrar, desde logo porque só havia outro jurista no grupo de deputados (o advogado José Lopes de Almeida) e eu era o único que tinha algum conhecimento de direito constitucional, tendo defendido a minha tese de pós-graduação nessa área, pelo que integrava o grupo de trabalho encarregado da elaboração do projeto de Constituição do partido, juntamente com os meus amigos e colegas da FDUC, J. J. Gomes Canotilho e Aníbal Almeida.

Por essa razão, e por poder suspender a atividade profissional e não ter responsabilidades partidárias, como muitos outros deputados, pude entregar-me em dedicação plena à minha nova tarefa, com a consciência de que era para mim uma oportunidade histórica de participar no desenho de uma nova Constituição do País.

2. Acresce que no chamado "verão quente" de 1975, o PCP estava mais empenhado na revolução do que na Constituição, o que se refletia no relativo desinteresse que os dirigentes do partido, incluindo o presidente do grupo parlamentar, Otávio Pato, dedicavam ao Palácio de São Bento, em especial no que se referia à preparação da Constituição.

Nessas circunsbtâncias, acabei por assumir informalmente o papel de principal porta-voz do partido na Constituinte, quer nos debates no plenário, quer no trabalho de várias comissões, nomeadamente na principal delas, a V Comissão, encarregada da organização do poder político, ou seja, de grande parte da Constituição, mas também nas comissões de princípios fundamentais, do poder local, das disposições finais e transitórias e na comissão de redação final (de que tive a honra de ser relator perante o plenário da Constituinte). Durante grande parte do tempo, não recebia e raramente pedia instruções à direção do partido sobre as questões constituintes, limitando-me a enviar um relatório semanal sobre o andamento dos trabalhos e sobre as posições por nós adotadas (relatórios que ainda devo ter guardados algures). 

Não admira, por isso, que, como mostra a figura abaixo (colhida num livro sobre a Assembleia Constituinte referido em post anterior), eu tenha sido o deputado mais interventivo, o que, ressalvados alguns dispensáveis excessos oratórios, revela o meu profundo empenho e a minha dedicação absoluta à tarefa constituinte.

3. Entre as minhas preocupações políticas em São Bento avultava uma, que era a de manter o PCP efetivamente comprometido com a elaboração da Constituição, de modo a não alimentar a impressão de que ele era hostil à Constituinte, como podia resultar de alguma imprensa que lhe era afeta, pois essa perceção contrariava a genuína preocupação partidária de garantir proteção constitucional para as chamadas "conquistas revolucionárias" (descolonização, democracia, liberdades públicas e direitos dos trabalhadores, "organizações populares de base", nacionalizações e reforma agrária). Julgo que tive alguma responsabilidade em «encostar a Constituição à esquerda», como alguém já escreveu.

Não foi por acaso que, depois do fim do ciclo revolucionário, com o Termidor do 25 de novembro de 1975, o PCP tivesse passado a dar uma nova atenção à Constituinte, acabando por saudar e votar de bom-grado a Constituição, justamente por esta ter salvaguardado o acquis revolucionário e, em alguns casos, ter ido além dele (por exemplo, nos direitos sociais, como o SNS, e até no capítulo da organização económica). 

Sem falsa modéstia, julgo ter contribuído para essa relação de amizade constitucional do PCP, que foi decisiva para manter o compromisso do partido com o regime democrático-constitucional, sem quebras ao longo dos anos.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

História política (4): As eleições constituintes de há 50 anos


1. Duas exposições assinalam em Lisboa as eleições constituintes de 25 de abril de 1975: uma na Fundação Gulbenkian, inaugurada há dias, que é uma iniciativa da Comissão de comemoração dos 50 anos do 25A, e outra na AR, hoje inaugurada, logo após a sessão comemorativa do 25 de Abril, este ano também comemorativa dos 50 anos das eleições, com a presença de vários deputados constituintes, convidados para o efeito.

Justifica-se plenamente esta atenção a essas eleições, por várias razões:
    - por a sua realização ter representado o cumprimento de um dos principais compromissos do MFA, logo anunciado no seu primeiro comunicado público, no próprio dia 25 de abril de 1974;
    - por elas terem sido eleições sem precedente nossa história política em diversos aspetos: primeiras eleições por sufrágio universal, pela primeira vez por voto genuinamente pessoal e secreto (expresso pelos próprio eleitores em cabine na própria assembleia eleitoral), em competição pluripartidária, com atribuição proporcional de mandatos (que em 1911 só tinha sido aplicada nos círculos eleitorais de Lisboa e do Porto) e com representação dos residentes no estrangeiro (embora só com um deputado);
    - pela excecional afluência de mais de 90% dos eleitores, nunca antes nem depois repetida;
    - por terem sido fundadoras ao atual regime constitucional, ao elegerem os partidos e os deputados que fizeram a Constituição de 1976, em tantos aspetos também uma Lei Fundamental sem precedentes, mesmo quanto às três constituições anteriores também saídas de revoluções populares (1822, 1838, 1911).

As mais democráticas eleições, portanto, que deram origem também à mais democrática Constituição.

2. A mais ambiciosa das duas referidas exposições, a da Gulbenkian, começa por recordar a ficção das eleições (presidenciais e legislativas) durante a ditadura do chamado "Estado Novo" e as tentativas da oposição democrática, na sua diversidade, de as aproveitar para denunciar o regime e mobilizar o combate contra ele, com destaque para a épica campanha presidencial de Humberto Delgado em 1958 e a animada campanha das eleições legislativas de 1969. 

Quanto às eleições de 1975, a exposição fornece notável informação histórica, quer documental quer visual, sobre a sua preparação e a sua realização, incluindo profusa ilustração da campanha eleitoral e sobre a noite eleitoral e os resultados, com recurso a registos televisivos da época. Uma notável evocação!

Lamentavelmente, a exposição não é acompanhada de catálogo que perpetue o grande acervo informativo nela disponibilizado.

3. No entanto, nesta exposição não sufrago três aspetos históricos
     - primeiro, é de estranhar a simples referência de passagem à grave tentativa de violar o programa do MFA quanto às eleições constituintes, que foi a proposta de Spínola e de Palma Carlos - respetivamente, o primeiro PR e e o primeiro PM a seguir à Revolução -, logo em julho de 1974, para a convocação imediata de eleições presidenciais e de plebiscito de uma "Constituição provisória", o que teria matado a revolução à nascença;
     - segundo, não compartilho a ideia de que em 1975, a seguir ao 11 de março, as eleições estiveram em sério risco de não se realizarem ou de serem indefinidamente adiadas, pois só estavam contra elas os micropartidos de extrema-esquerda, com escasso peso político, apesar da sua visibilidade política nas ruas de Lisboa e em alguns jornais, e uma pequena fação radical do MFA, sem eco, porém, na direção do movimento;
     - por último, considero excessiva a ideia de ter sido uma "campanha eleitoral violenta", pois, além de isso não se sentir no terreno na época (eu estive lá, e até tive uma "sessão de esclarecimento" boicotada), os casos de violência foram pontuais entre os milhares de iniciativas de campanha, e raramente envolveram militantes dos principais partidos.

A história deste período fundador do atual regime democrático não beneficia com a veiculação de perceções que, embora tendo existido em alguns círculos políticos da época, não tinham substrato suficiente para vingar. 


terça-feira, 22 de abril de 2025

Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça (12): Um livro para agitar as águas


Amanhã vou estar aqui, na minha qualidade de copromotor do Manifesto (que pode ser lido AQUI, bem como a lista dos seus signatários) e de coautor deste livro. Todos são bem-vindos!

segunda-feira, 21 de abril de 2025

História política (3): Meio século depois do 25A


Participei hoje na conferência organizada pelo Banco de Portugal, sob o lema "Falar em Liberdade", para comemorar os 50 anos do 25 de Abril (programa AQUI). Sendo ele próprio um "filho da Revolução" enquanto banco nacional, pois lhe deve a nacionalização logo em setembro de 1974, bem como o relevo público e a legitimidade de que hoje goza, justifica-se plenamente este iniciativa institucional.

Acompanhada pelo livro cuja capa se reproduz acima, notavelmente ilustrado com fotos e gráficos, onde se podem verificar os avanços económicos e sociais alcançadas ao fim deste meio século da história nacional (que também se podem consultar on-line AQUI), a conferência, aberta pelo Governador do Banco, Mário Centeno, seguido de Paul Krugman, e encerrada pela escritora Lídia Jorge, foi dedicada, nos seus vários painéis, à leitura histórico-política das principais motivos da Revolução, nomeadamente a liberdade (em cujo painel intervim), a democracia e a descolonização. 

Se é possível retirar uma conclusão geral desta conferência e do livro que a acompanhou, podemos dizer que, depois de várias experiências revolucionárias falhadas ao longo de século e meio, desde 1820 (o vintismo, o setembrismo e o republicanismo), desta vez conseguimos ser bem-sucedidos na construção de um Estado constitucional solidamente baseado na liberdade, na democracia e na solidariedade social, e capaz de vencer o teste do tempo e das adversidades do mundo de hoje.


sexta-feira, 18 de abril de 2025

Este País não tem emenda (37): Grau zero de civismo


1. Estas duas fotos no mesmo local da minha rua - a de cima foi tirada hoje e a de baixo tem poucas semanas - revelam, mais uma vez, o aberrante défice de civismo que impera entre nós, em que as pessoas deitam para a rua e os passeios os "monos" lá de casa, que lá ficam dias e dias a ocupar os passeios e a poluir o ambiente visual, em vez de utilizarem, com uma simples chamada telefónica, o serviço que o município disponibiliza para o efeito.

O facto de se tratar de uma zona de considerável status social, onde uma grande maioria deve ter educação superior - e, logo, devia ser mais zelosa em matéria de responsabilidade cívica -, torna este flagrante desprezo pela qualidade do espaço público ainda mais censurável.

2. Não se tratando, infelizmente, de atos isolados - pois vejo que se verificam com relativa frequência na cidade -, estas situações suscitam duas questões: (i) saber se estamos a levar a sério a educação cívica, na escola e fora dela, quanto ao respeito pelo patrimómio comum, e (ii) saber se estas infrações devem continuar impunes, ou se os municípios não devem começar a identificar os responsáveis, criando para o efeito uma linha de denúncia semelhante à que existe para estacionamentos irregulares, e aplicar-lhe as devidas coimas.

Passado meio século de sermos um país livre, conseguimos alcançar elevada classsificação quanto à qualidade da nossa democracia, como mostram os rankings internacionais - que nos colocam a par com os países escandinavos -, mas evoluímos muito pouco em matéria de responsabilidade cívica e de respeito pelos outros, onde devemos estar nos últimos lugares, a léguas deles. 

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Manifesto dos 50 pela reforma da Justiça (11): O Ministério Público não tem emenda

Será que basta um denúncia anónima, sem nenhum indício conhecido, para que o Ministério Público inicie uma suposta "averiguação preventiva" contra o líder de um partido (neste caso, o líder do PS) e a anuncie publicamente em pleno debate eleitoral, sabendo que isso vai causar automaticamente especulações sobre a integridade do visado e prejudicar a sua campanha?

Para além da falta de base legal - que criminalistas credenciados contestam (como se pode ver convincentemente AQUI) -, será que o PGR não se dá conta de que, ao entrar por aí, utilizando seletivamente esse mecanismo, abre a porta a denúncias oportunistas, sem nenhuma relevância penal, como arma letal de combate eleitoral, hoje contra o líder do PS, e amanhã contra qualquer outro? 

Decididamente, o MP não tem emenda, nem um módico de prudência, na sua tentação de instrumentalização da investigação penal para efeitos de perseguição política.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

A teimosia dos factos (2): O século chinês?


Vale a pena ver esta entrevista de Jeffrey Sachs, sobre a notória ascensão económica e tecnológica da China, para antecipar que a guerra comercial desencadeada pelos EUA contra Pequim (e não só) está condenada a falhar, e que o isolacionismo protecionista de Washington, sob a liderança de Trump, só vai contribuir para acelerar a perda de posições norte-americanas na economia internacional, em favor da China.

Tal como o século XX foi norte-americano, quanto ao poder económico e político; o século XIX, britânico; o século XVIII, francês; o século XVII, espanhol -, tudo indica que o século XXI vai ser chinês!

sábado, 12 de abril de 2025

Eleições presidenciais 2026 (15): O Presidente mediador

1. Na sua recente entrevista ao Diário de Notícias, o candidato presidencial Marques Mendes, veio defender para o PR um papel de mediador entre o Governo e a oposição (ou seja, por princípio, entre o PS e o PSD, que são os principais partidos de governo), quanto aos temas que dependem politicamente de um acordo entre ambos, como é o caso da justiça.

Embora a noção de mediação presidencial não seja inédita, e seja compreendida na noção genérica corrente de "Presidente-árbitro", não deixa de ser interessante vê-la coerentemente utilizada e defendida por um candidato presidencial que, até agora, se tem distanciado das visões "semipresidencialistas" da cotitularidade do PR no poder executivo ou de tutela presidencial sobre o Governo. Bem compreendida, a ideia de mediação presidencial cabe perfeitamente na noção do PR como "quarto poder", exterior ao poder legislativo e ao poder executivo, titular de um "poder moderador" de supervisão do regular funcionamento do sistema político, da separação de poderes entre a AR e o Governo, de garantia dos direitos da oposição, de arbitragem de conflitos político-institucionais e de promotor da estabilidade política.

2. A ideia de mediação presidencial entre o(s) partido(s) de Governo e o(s) de oposição é especialmente interessante entre nós, por três razões: (i) porque ele quadra bem com o estatuto do PR no nosso sistema constitucional, como "poder neutro", independente e imparcial, entre ambos; (ii) porque o nosso sistema eleitoral não favorece maiorias parlamentares e, além disso, a Constituição exige maioria de 2/3 para a legislação sobre certos temas politicamente mais sensíveis, designadamente a legislação eleitoral, o sistema de governo das autarquais locais ou a competência legislativa das regiões autónomas e (iii) porque os dois partidos de governo têm revelado nas últimas décadas pouca propensão para a negociação e o compromisso entre eles, mesmo quando ambos estão de acordo na necesidade de reformas.

Mas para que a ideia de mediação não seja pervertida em ingerência, é necessário que o PR respeite duas condições básicas: (i) que ela seja solicitada pelas duas partes políticas intessadas sobre temas em que ambos estejam de acordo sobre a necessidade de reforma, e não "imposta" pelo PR sobre reformas acerca das quais não existe tal consenso mínimo de partida; (ii) que as duas partes se mantenham como "donos" da negociação, à margem de qualquer tentativa do PR para impor a sua própria agenda quanto às soluções.

O que nada tem a ver com mediação são os "pactos" indevidamente promovidos pelo PR entre os "stakeholders" institucionais ou profissionais, à margem dos decisores políticos, como sucedeu com o chamado Pacto da Justiça, indevidamente citado por Mendes. Pressionar Governo e oposição com pactos intercorporativos, usualmente em benefício próprio, é o contrário de mediação.

3.  O risco de uma mediação presidencial mal-entendida fica patente do exemplo da justiça mencionado pelo candidato, em que ele próprio avança com as soluções que tem por óbvias, mas que podem ser deveras controversas, como sucede com certas medidas para a celeridade processual no processo-crime, quando seja à custa das garantias de defesa, e que num caso é manifestamente inconstitucional, como é a proposta de cumprimento de pena criminal ainda na pendência de recurso para o STJ, quando a CRP é clara sobre a presunção de inocência «até ao trânsito em julgado da sentença de condenação».

As boas intenções não bastam para acautelar contra a atávica tentação de intervencionismo político por parte dos inquilinos do Palácio de Belém, ou dos candidatos a irem para lá, mesmo sabendo bem que não são eleitos para legislar nem para governar, nem têm legitimidade para tal... 

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Nos 50 anos da CRP (2): Recordando a Assembleia Constituinte

1. Foi muito agradável e proveitoso participar hoje na sessão pública de lançamento de um número da Revista do IDL (o instituto de estudos do CDS) dedicado ao cinquentenário da Assembleia Constituinte de 1975-76, onde se inclui, entre numerosas outras reflexões, uma conversa entre o Professor Jorge Miranda e eu próprio, sobre a nossa experiência de deputados constituintes, por sinal entre os mais ativos e empenhados. A revista está on-line AQUI.

Presidida pelo Presidente da República, ele próprio deputado constituinte, a numerosa assistência incluiu alguns outros deputados constituintes de vários partidos, que tive a alegria de rever. Além da fala de Marcelo Rebelo de Sousa, que recordou com vivacidade o ambiente político da época, a sessão contou também com uma intervenção de Jorge Miranda, que descreveu o labor da Constituinte e os traços da Constituição que dela resultou, e outra minha, onde procurei explicar porque é que a Constituição de 1976 escapou à "maldição" das anteriores constituições revolucionárias e democráticas portuguesas (1822, 1838 e 1911), que falharam todas o teste do tempo.

2. Apraz-me felicitar publicamente o diretor do IDL, Professor Manuel Monteiro, por esta iniciativa de memória e reflexão plural sobre a formação da nossa Lei Fundamental, o que é tanto mais de elogiar quanto o CDS foi o único partido da Constituinte que votou contra a CRP em 1976, por não poder subscrever o compromisso socialista da versão originária da Constituição, vindo depois a alinhar no "arco constitucional" após a 1ª revisão, em 1982, que removeu essa barreira política e doutrinária.

Mas a verdade é que era de esperar que, por maioria de razão, também as fundações e institutos dos partidos que desde o início se identificam com a Constituição (PS, PSD e PCP) aproveitassem a oportunidade para celebrar as eleições constituintes - democráticas e participadas como nenhumas outras antes -, que há meio século legitimaram a Revolução democrática e deram início à tarefa histórica de a traduzir em letra de Lei Fundamental.    

terça-feira, 8 de abril de 2025

Barbárie tauromáquica (18): Era o que faltava!

Como se não bastasse a tolerância oficial com a organização e a frequência de espetáculos tauromáquicos para gáudio público com o sofrimento animal, ainda há quem pretenda elevá-los à honra de "património cultural imaterial", como neste caso das "vacas das cordas", em Ponte de Lima.

Confiando em que a UNESCO não iria aceitar tal provocação, espero também que as autoridades nacionais responsáveis pelo património cultural rejeitem essa pretensão, que seria um primeiro passo para idêntica glorificação das touradas propriamente ditas. Por definição, a noção de património cultural deve identificar-se com valores geralmente compartilhados pela comunidade nacional, ou, pelo menos, não rejeitados por boa parte dela, como é o caso. Ser uma "tradição" local ou regional não pode bastar; a história está cheia de tradições populares baseadas na crueldade animal. 

Se uma tal "condecoração" oficial da barbárie tauromáquica fosse para a frente, indo ao encontro do poderoso lobby taurino, eu estaria entre os muitos portugueses a repeli-la como um grave atentado ao conceito de Portugal como país decente e civilizado.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Retratos de Portugal (8): Mosteiro de Seiça

Gostei de voltar ao Convento de Seiça (município da Figueira da Foz, a sul do Mondego), para ver o resultado da recuperação das ruínas, que visitei há poucos anos (como deixei registado AQUI), e aproveitar para ver a exposição de trabalhos de Vieira da Silva, que neste momento lá se encontra patente.

Apesar da enorme destruição provocada pelo abandono e posterior uso fabril do Convento - vítima de um dos grandes desastres da história nacional, ou seja, a guerra civil entre liberais e absolutistas (1832-34) e a subsequente extinção e confisco das ordens religiosas, pelo seu apoio à usurpação miguelista -, não deixa de ser impressionante o que restou e que foi agora recuperado.

Para ver a diferença entre o antes e o depois das obras, basta comparar este vídeo de antes e as duas fotos que hoje publico, uma das ruínas da igreja e outra do claustro do convento. Um velho retrato de Portugal restaurado!




domingo, 6 de abril de 2025

Eleições parlamentares 2025 (14): O programa do PS

1. Num longo documento de 235 páginas, o PS veio apresentar o seu programa eleitoral, que, por isso, pouco gente vai ler, ficando pelas leituras seletivas dos jornais, nem sempre equilibradas.

Entre as ideias que merecem atenção estão a atribuição a cada nova criança de um pé-de-meia em certificados de aforro, a redução faseada do horário semanal de trabalho para as 37 horas e meia, ou a participação dos trabalhadores na gestão das grandes empresas (o que defendo há muitos anos).

Quanto às várias propostas de aumento de prestações e de serviços sociais (por exemplo, no SNS e no abono de família) e outras tantas de redução de encargos tributários (como a isenção do IVA nos produtos alimentares e de eliminação das propinas no ensino superior), não se compreende que um partido de vocação governamental responsável como o PS não apresente uma estimativa dos custos orçamentais do programa.

De pouco vale jurar pelo equilíbrio das contas públicas e depois apresentar medidas que, muito provavelmente, o poriam em risco.

2. Em todo o caso, não posso sufragar algumas das medidas propostas, como as já referidas quanto à eliminação do IVA sobre produtos alimentares ou das propinas do ensino superior, por não compreender porque é que se deve beneficiar toda a gente, independentemente dos meios económicos, isentando também os mais ricos do seu pagamento.

Pelo contrário, como muitas vezes já argumentei, a solução mais justa é manter essa receita pública e depois aproveitar o IVA e as propinas pagos pelos mais ricos para subsidiar o rendimento dos mais pobres, mais do que compensando as importâncias pagas por estes. Além disso, no caso das propinas não está em causa somente financiar mais bolsas de estudo, mas também sustentar a autonomia financeira das instituições de ensino superior públicas, sobretudo as do interior, que não usufruem dos contratos de investigação e de prestação de serviços de que tiram partido as instituições de Lisboa e do Porto.

Beneficiar seletivamente somente as pessoas de menores rendimentos fica mais barato, tem menos impacto sobre as contas públicas e é socialmente mais justo.

3. Uma proposta que acho de todo injustificável é a de continuar a abolir portagens em autoestradas, como se prevê em relação a vários troços, incluindo em zonas das mais prósperas do País, como é o caso do segmento da A25 entre Aveiro e Albergaria.

Para além de não comprender a isenção de pagamento de serviços de valor acrescentado, como este, que devem ser pagos pelos seus beneficiários (sob pena de serem os contribuintes em geral a pagá-los, mesmo os que não beneficiam deles), não entendo a lógica de embaretecer o transporte rodoviário, incluindo de mercadorias, apesar das pesadas "externalidades negativas" que ele tem sobre o ambiente. Não seria melhor pensar em reduzir as "portagens" de uso das linhas ferroviárias, a fim de embaretecer o transporte ferroviário, e torná-lo mais competitivo?

Um pouco mais de coerência política em matéria de transportes e embiente era bem-vinda.

[Acrescentado o nº 3.]

sábado, 5 de abril de 2025

Direito à habitação (7): Cidades-fantasma


1. Concordando com o artigo de Ricardo Reis, no Expresso desta semana, também entendo que os preços da habitação estão a subir porque a oferta não acompanha a procura, pelo que, face à dificuldade (ou mesmo impossibilidade) em travar a segunda, a única solução consiste em aumentar a primeira, colocando mais casas no mercado.

No entanto, julgo que o aumento acentuado da procura (para compra ou arrendamento), que incide sobretudo em Lisboa e no Porto, obedece a razões específicas, como a crescente concentração de atividade económica e da oferta de ensino superior nas duas principais cidades, o desvio da habitação para alojamento turístico e o aumento da procura imobiliária por estrangeiros, a que se veio somar o imprudente incentivo do atual Governo à habitação para jovens (ou seus pais), mediante a garantia de crédito. 

Ora, em vez de travar a concentração económica e urbana nas duas principais cidades e de incentivar a procura noutras cidades - desde logo por obrigação constitucional de descentralização territorial e de garantia da coesão económica e social do País -, os governos têm feito o contrário, continuando a concentrar os serviços públicos e o investimento público em Lisboa. 

Ora, é óbvio que o incentivo à procura só torna mais instante a necessidade de aumentar a oferta de habitação

2. Quanto à oferta, parece evidente que o aumento da habitação pública - que deve incumbir aos municípios, e não ao Estado, por respeito do princípio constitucional da subsidiariedade - devia focar-se na garantia do direito à habitação das famílias de menores rendimentos, pelo que a resposta à demais procura de habitação deve ser deixada à oferta privada, como é próprio de uma economia de mercado, embora com os incentivos públicos justificáveis, em vez dos desincentivos ao investimento, como foi a política de congelamento das rendas.

Uma das políticas públicas incontornáveis nesse sentido deveria ser a de obrigar a trazer para o mercado os muitos milhares de edifícios privados (sem esquecer os públicos...) que, em todas as cidades, se encontram abandonados e em vários graus de deterioração, ou mesmo de ruína (na imagem acima, dois casos entre as centenas, em Coimbra), por os proprietários não terem vontade de (ou condições para) as colocarem no mercado, e não serem levados a fazerem-no, como deviam, quer por razões ambientais e de segurança, quer justamente para aumentar significativamente a oferta de habitação.

Ora, está visto que as respostas até agora ensaiadas contra este risco de "cidades-fantasma" - como o agravamento do IMI, a notificação dos proprietários para obras de reabilitação, ou mesmo as obras e o arrendamento compulsivo por via dos municípios - não funcionam, sendo necessários remédios mais eficazes, que, a meu ver, passam pelo seguinte: dar legalmente aos municípios um poder de injunção aos proprietários, acompanhada de incentivos apropriados, para, num certo prazo razoável, tornarem os prédios habitáveis, ou venderem-nos, sob pena de "sanção pecuniária compulsória", por cada mês de atraso. 

Trata-se de um instrumento que tem revelado a sua grande valia em vários ramos do direito, incluindo a regulação económica e a defesa da concorrência, não havendo nenhuma razão para abdicar dele na esfera urbanística e na gestão da oferta  habitacional, em particular.

3. Por razões urbanísticas, económicas e sociais, são reprováveis as situações de abandono de prédios de uso habitacional, ou suscetíveis dele. 

Numa "economia social de mercado" (conceito do Tratado da UE), a propriedade imobiliária impõe obrigações, não sendo admissível um direito de propriedade absoluto, que inclua o direito ao abandono, o qual, aliás, é objeto de expressa censura constitucional entre nós. No seu art. 88º, a nossa Lei Fundamental prevê meios assaz intrusivos no direito de propriedade em relação a ativos em abandono, como o arrendamento compulsivo ou mesmo a expropriação, mas a experiência mostra que tais soluções são pouco viáveis e que é preferível o poder público incentivar e, em última instância, compelir, os proprietários a cumprir as suas obrigações.

Embora legitimando a intervenção supletiva do poder público, as obrigações decorrentes da "função social da propriedade" devem recair, em princípio, sobre os próprios proprietários, cabendo aos poderes públicos fazê-las cumprir -, e é tempo de o fazerem!

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Free & fair trade (22): USexit

1. Com a substancial subida unilateral generalizada das tarifas de importação, ontem anunciada por  Trump, violando flagrantemente as suas obrigações perante a OMC e perante os parceiros comerciais com quem tem acordos preferenciais, como o Canadá e o México (aliás assinados pelo próprio Trump no seu 1º mandato), os EUA fazem uma declaração de guerra ao sistema económico internacional, com inevitáveis reflexos na situação económica de muitos países.

É evidente que, sendo impostos sobre as importações, o aumento das tarifas vai, antes de mais, afetar os consumidores e a própria economia norte-americana, por causa da subida dos preços dos produtos importados. Mas, uma vez que o mercado norte-americano é destino importante para as exportações de muitos países, esta subida dos preços dos produtos atingidos vai reduzir a sua importação e afetar a economia dos países exportadores. Além disso, o protecionismo de Washington pode levar grandes empresas estrangeiras a mudar a sua produção para os Estados Unidos (objetivo declarado de Trump), reduzindo o investimento e a criação de emprego nos respetivos países. 

Com este ataque selvagem, em nome da "independência económica", os EUA saem efetivamente do sistema internacional de comércio regulado que ajudaram a edificar, desde o GATT (Acordo Geral de Taxas Aduaneiras e de Comércio) de 1947, e depois a profundar, desde a criação da Organização Mundial de Comércio (OMC), em 1995. É o fim inesperado de uma era de progressiva liberalização das trocas internacionais e da prosperidade que ela trouxe aos países que nela se empenharam.

2. Embora não podendo responder na mesma moeda, as demais potências comerciais vítimas deste ataque desleal de Washington, a começar pela UE, não podem deixar de retaliar seletivamente contra as importações norte-americanas, lá onde pode doer mais (incluindo a tributação de serviços tecnológicos, maciçamente importados dos EUA) e onde afete menos as empresas e os consumidores europeus. Ataques desleais destes não podem ficar impunes.

Porém, acima de tudo, a UE deve aproveitar esta saída dos EUA do sistema de comércio mundial, para se assumir como líder do sistema comercial internacional regulado sob a égide da OMC (por sinal, sediada na Europa) e para avançar na busca de novos parcerias comerciais por esse mundo fora, começando pela ratificação de acordos comerciais já concluídos (nomeadamente com o Mercosul) e na conclusão de outros com grandes economias dinâmicas, como a Índia e a Indonésia. 

Como única grande potência comercial confiável e fiel ao mandato da OMC, só a UE pode preencher o vazio deixado pelo lamentável exit de cena dos EUA.

Adenda
O vice-presidente sombra, Elon Musk, veio sugerir um acordo de comércio livre entre os EUA e a Europa. Mas era esse o objetivo das negociações do TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership), que foi metido na gaveta por Trump logo no início do seu primeiro mandato, não somente por razões protecionistas, mas também por ódio à UE, que ele considera ser uma conspiração contra os EUA.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Manifesto dos 50 pela Reforma da Justiça (10): Eis o livro!

1. Por iniciativa do grupo promotor do Manifesto dos 50 - publicado há quase um ano (que pode ser lido AQUI) e entretanto subscrito por dezenas de juristas e outras pessoas dos mais variados interesses intelectuais e profissionais e de um amplo espectro político -, vai ser publicado um livro que colige um grande número de textos publicados ao longo destes meses por subscritores do Manifesto, em jornais e noutros veículos (entre eles dois comentários meus, publicados aqui, no Causa Nossa).

Além de consubstanciarem e reforçarem as razões que motivaram o Manifesto, muitos dos textos adiantam propostas concretas para a reforma da justiça em diversas áreas (como é o caso das minhas, sobre o Ministério Público), o que torna mais interessante a sua leitura e a sua discussão

2. Em edição da Bertrand, o livro vai ser objeto de lançamento público nacional em Lisboa, e depois também noutras cidades (a começar por Porto e Coimbra), proporcionando uma oportunidade de diálogo com um público mais vasto, tanto mais que, no seguimento da publicação do Manifesto e de contactos com vários responsáveis políticos e judiciários, parece estar adquirida na agenda política a necessidade de avançar com a reforma, faltando, porém, definir a sua amplitude e a sua profundidade.

Sendo de esperar que os programas eleitorais dos principais partidos para as eleições parlamentares de maio não esqueçam o assunto, o lançamento do livro pode ser uma ocasião propícia para alargar e aprofundar o debate sobre a reforma da justiça, sobretudo nas suas áreas mais críticas.


quarta-feira, 2 de abril de 2025

Entre os melhores (1): Liberdade de imprensa


Este mapa sobre a liberdade de imprensa nos Estados-membros da UE, com a chancela da prestigiosa organização de jornalistas Repórteres sem Fronteiras, coloca Portugal no pelotão da frente, melhor do que todos os demais países do sul da Europa e muito melhor do que os do leste, só sendo superado por alguns países no norte, com os escandinavos no topo, como sempre. 

Uma vez escrevi que o meu ideal de cidadão era ver Portugal abandonar o mal-cotado "club mediterranée" e tornar-se uma  "Dinamarca do sul", desde logo em matéria de responsabilidade cívica.  Apraz-me registar que, pelo menos quanto a liberdades públicas, estamos no bom caminho. 

Quando celebramos meio século da Revolução do 25 de Abril - feita, antes de mais, em nome da liberdade - e, no próximo ano, meio século da CRP - que a institucionalizou - , é caso para dizermos: conseguimos!

domingo, 30 de março de 2025

O que o Presidente não deve fazer (55): A cumplicidade do silêncio

1. Se há uma marca do atual Presidente da República que vai ficar para a posteridade, é a de "Presidente-falante", tão nutrida tem sido sido a torrente das suas intervenções públicas, muitas delas de puro comentário político - papel que, porém, não integra as funções presidenciais -, em manifesto contraste com os seus antecessores, que nesse aspeto deixaram um registo geral entre a contida moderação (como Soares e Sampaio) e o austero recato (como Eanes e Cavaco Silva), o qual, a meu ver, é bastante mais conforme com o perfil constitucional de "poder neutro" e de "garante das instituições" do inquilino de Belém, como tenho defendido nos artigos desta série.

Há, todavia, situações em que a palavra presidencial se impõe, nomeadamente quando está em causa a infração pelo Governo das suas obrigações de conduta institucional, que não podem ser deixadas em silêncio pelo PR, sob pena de cumplicidade, por falha na sua missão constitucional de supervisão do funcionamento regular das instituições. Nessas situações, a loquacidade habitual de MRS torna esse silêncio ainda mais gritante.

2. Tal é o que sucede com o surpreendente silêncio presidencial sobre a notícia de que o Governo, demitido já há duas semanas, apresentou publicamente na sexta-feira passada, dia 28, às câmaras municipais de ambas as margens do Tejo em Lisboa um grandioso e pormenorizado projeto de investimento público de infraestruturas e de habitação, pomposamente chamado "Parque Cidades do Tejo", incluindo o investimento estimado para cada capítulo, no valor total de muitos milhares de milhões de euros.

Não está em causa aqui, obviamente, a crítica política do megalómano projeto de investimento público para a capital do País - que inclui uma nova travessia do rio, subaquática  - , em violação clara da obrigação constitucional de «promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional» (citando o art. 9º da CRP, sobre as "tarefas fundamentais do Estado"), confirmando o Governo Montenegro como Governo de Lisboa, e não do País, que deixa umas migalhas para a "província", sacrificando ostensivamente a "coesão territorial" (outro conceito constitucional, como se pode ler no art. 81º da CRP). 

Mas essa crítica política da ação governamental deve ser evidentemente assumida pela oposição, e não diretamente pelo PR, apesar da sua prática corrente de comentador político

3. O que é manifestamente do pelouro do PR é a ostensiva violação pelo Governo, com a referida iniciativa, de dois limites constitucionais claros, a saber: (i) a restrição de poderes dos governos demitidos, que só podem praticar os «atos estritamente necessários» à gestão dos negócios públicos (art. 186º, nº 5, da CRP) e (ii) a imparcialidade política das entidades públicas - incluindo, portanto, o Governo - na pendência de atos eleitorais (art. 113º da CRP).

Ora, não se vê porque é que aquele megaprojeto tinha de ser anunciado agora aos beneficiários e não podia esperar pelo novo Governo saído das eleições - até porque não pode avançar na sua concretização -, salvo obviamente para favorecer as candidaturas da AD nas eleições parlamentares de maio e nas eleições autárquicas do outono. Claro abuso de poder, portanto.

Que o Governo de Montenegro não tenha escrúpulos em sede de moral política, já nos vamos habituando, mas o PR não pode ser conivente com ele, quando está em causa também uma dupla violação das obrigações institucionais daquele -, o que, de resto, não é a primeira vez que denuncio. Por isso, MRS deve interromper o silêncio que se impôs como "comentador político", por causa das eleições, justamente porque há uma situação que reclama a sua intervenção a outro título bem mais importante, como garante do regular funcionamento das instituições

Adenda
Na sua página do Facebook, Neto Brandão, deputado por Aveiro (PS), protesta, com toda a razão, contra o facto de o próprio PM, que já anunciou a sua candidatura à AR por esse distrito, ir inaugurar hoje, dia 30, três USF nesse distrito, aliás já abertos há tempo, comentando ser óbvio que não se trata de nenhum ato "estritamente necessário" ao seu funcionamento e que, portanto, as cerimónias só podem ser entendidas por aquilo que são, ou seja, «como despudoradas ações de pré-campanha eleitoral». Com efeito, além do abuso de poder, é uma rasteira instrumentalização política do cargo para efeitos eleitorais!