sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Não concordo (25): Iliteracia constitucional

1. Há comentadores (por exemplo, aqui e aqui) que defendem que o Governo deveria demitir-se ou ser demitido, em consequência da dissolução parlamentar, alegadamente por deixar de estar sujeito a escrutínio da AR.

Trata-se, porém, de uma ideia descabida, constitucional e politicamente. 

Constitucionalmente, nada obriga o Governo a demitir-se em consequência da rejeição do orçamento ou da dissolução da AR; e também nada autoriza o Presidente da República a demitir o Governo, pois se trata de um poder excecionalíssimo, aliás até agora nunca exercido por nenhum Presidente. Um pouco mais de literacia constitucional, precisa-se! 

Politicamente, seria prejudicial para o País que, a somar ao parlamento dissolvido, se viesse acrescentar um governo demitido, limitado a poderes de gestão corrente. Nas atuais circunstâncias, a paralisia governamental é um risco que o País não deve correr.

2. Também não existe nenhuma relação necessária entre dissolução parlamentar e demissão do Governo. É óbvio que Constituição impõe a demissão do Governo, logo que se inicie a nova legislatura resultante das eleições antecipadas, mas, até lá, o Governo mantém-se em funções com os seus poderes ordinários.  

O que tem sucedido na maior parte dos casos é o inverso, ou seja, a dissolução parlamentar em consequência da demissão do Governo (por exemplo, em 2011, 2002, 1987); mas em 2004, houve dissolução parlamentar sem demissão presidencial do Governo (embora se tenha depois demitido).

Também agora a dissolução parlamentar ocorre sem prévia demissão do Governo e não tem de a arrastar.

3. Não procede o argumento de falta de escrutíni0 político do Governo.

Primeiro,  a dissolução parlamentar limita muito os poderes do Governo, privando-o desde logo dos poderes legislativos que dependem daquela, caducando também as autorizações legislativas de que dispunha. Perde igualmente o poder de propor alterações ao orçamento em vigor. Deixa também de poder nomear membros das aurtoridades reguladoras, que depende de parecer prévio do parlamento.

Em segundo lugar, não é verdade que se extinga o escrutínio parlamentar sobre o Governo. Na verdade, na pendência da dissolução parlamentar mantém-se em funções a Comissão Permanente da AR - uma espécie de miniparlamento -, à qual compete exercer o poder parlamentar de «vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e acompanhar a atividade do Governo e da Administração». 

Em terceiro lugar, como defendo no post anterior, há limites implícitos aos Governos cessantes, que decorrem de um princípio constitucional de lealdade institucional.

Por último, na pendência da dissolução parlamentar, mantém-se em pleno o poder "moderador" do Presidente da República, para frear os abuso dos Governos cessantes, incluindo o poder de veto legislativo (e de outros decretos do Governo), e em última instância o poder de demissão, em caso de estar em causa o «regular funcionamento das instituições».

Também aqui, um pouco mais literacia constitucional ajudaria à análise política.

[revisto]

Não concordo (24): Limites do Governo cessante

1. Há quem defenda que apesar da rejeição parlamentar do orçamento, o Governo poderia decretar a subida extraordinária das pensões que aquele previa, se para tal houver margem na verba das pensões do orçamento em vigor, que vai ser transitoriamente prorrogado, por duodécimos mensais.

Discordo em absoluto.

Primeiro, o Governo não pode desafiar a rejeição parlamentar do orçamento, decretando à revelia dela uma medida prevista naquele. Isso vale para a subida extraordinária das pensões e para o aumento das remunerações dos funcionários públicos e outras medidas semelhantes, num montante superior a mil milhões de euros. 

Num sistema de governo de tipo parlamentar, como o nosso, o contempt of Parliament, mesmo estando este dissolvido, é politicamente muito grave!

2. Em segundo lugar, embora a dissolução do Parlamento não arraste consigo a demissão do  Governo, a verdade é que este se tornou um "Governo cessante", terminando automaticamente o seu mandato com a tomada de posse do novo parlamento após eleições. Por isso, não é politicamente admissível que um Governo à beira do fim e sem controlo parlamentar dos seus atos legislativos, possa criar nova despesa pública, para cativar eleitorado, encargo que recairá imediatamente sobre o Governo que lhe suceder na elaboração de novo orçamento. Eis uma "herança" que o Governo cessante não pode deixar ao próximo (mesmo que previsivelmente possa ser do mesmo partido...)!

Se o Governo ousasse oportunisticamente ir por aí, só poderia encontrar pela frente uma justificadíssimo veto presidencial.

[Nota: foi alterado o título do post]

Adenda
Um leitor duvida que o Governo resista à tentação de dar uma "chapada" política ao Bloco e o PC, dando aos pensionistas e funcionários públicos (muitos milhares de votos...) aquilo que lhes era oferecido no orçamento que eles rejeitaram. Podendo concordar que ambos os partidos merecem ser devidamente punidos pela sua irresponsabilidade política, entendo, porém, que o Governo não deve expor-se a críticas justificadas de não respeitar a rejeição parlamentar do orçamento.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Não dá para entender (30): Uma "geringonça" reforçada ?!

1. Há quem equacione a hipótese de que uma das soluções de governo pós-eleitorais, se o PS ganhar sem maioria absoluta, como em 2019, é ressuscitar a "Geringonça", através de um acordo formal de legislatura com o BE e/ou o PCP. Mas custa tomar a sério esta ideia.

Então não é evidente que, com a rejeição do orçamento, ambos os partidos mostraram, mais uma vez, que não aceitam a disciplina orçamental e a sustentabilidade da dívida pública, como obstáculo intransponível  aos seus projetos maximalistas, e que o PS não poderia negociar nenhum acordo de governo de legislatura sem metas vinculativas nessa matéria?  

Depois do que se passou, não vale a pena especular com hipóteses que supõem a transformação dos partidos extrema-esquerda em parceiros leais de uma governação responsável no quadro da União Europeia, que eles claramente rejeitam.

2. Há outra objeção contra essa hipótese: depois da derrota política infligida ao Governo pelos dois partidos da extrema-esquerda, interrompendo a legislatura, não se vê que vantagem pode ter o PS em admitir que o voto nesses partidos ainda pode contribuir para uma solução estável de governo à esquerda. Pelo contrário: a mensagem política do PS deveria ser a de que, depois de mais esta desfeita da extrema-esquerda, o único voto que garante um governo de esquerda é no PS.

Só por masoquismo político é que o PS pode premiar a irresponsabilidade política do BE e do PCP no derrube do Governo, em aliança com a direita, com uma proposta de "casamento" governamental duradouro com quem mostrou não ser parceiro político confiável.

Decididamente, a alternativa para o falhanço da "geringonça" não é a sua reedição em versão reforçada. A "Geringonça" já foi!

[revisto]

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Concordo (19): O Presidente e o analista político

1. Não acompanho as críticas de alguns comentadores (por exemplo, aqui e aqui) quanto à decisão presidencial de dissolução parlamentar e convocação de eleições antecipadas. No seu lugar, eu teria decidido do mesmo modo.

Primeiro, dados os termos bélicos da rejeição do orçamento na AR, não haveria a mínima hipótese de obter a aprovação de um segundo orçamento. Em segundo lugar, sem orçamento, o Governo não pode executar os investimentos do PRR (ao contrario que alguns defendem infundadamente), estando limitado ao plafond das despesas efetuadas sob o atual orçamento, com graves prejuízos para o País. Terceiro, e mais importante, o chumbo do orçamento socialista às mãos da extrema-esquerda parlamentar implica obviamente o fim da fórmula governativa vigente nesta legislatura (governo minoritário do PS sustentado, em última instância, pela demais esquerda parlamentar), não havendo manifestamente nenhuma solução de governo alternativa no atual quadro parlamentar.

Embora o Governo não se demita (nem tenha de fazê-lo), ficamos, portanto, num situação de crise governativa. Dados os prejuízos desta situação para o País, quanto mais depressa houver novas eleições, novo governo e novo orçamento, melhor.

2. Cumpre reconhecer, aliás, que, tendo advertido desde cedo que, no seu entendimento, uma hipotética rejeição do orçamento implicava a dissolução paramentar, o Presidente definiu claramente o quadro institucional para decisão dos partidos no Parlamento, nomeadamente dos que mais poderiam ser mais penalizados eleitoralmente, se rejeitassem o orçamento, justamente o BE e o PCP.

É óbvio, porém, que MRS não receava seriamente a rejeição do orçamento e contava que o seu pré-aviso de dissolução parlamentar inibisse o aventureirismo do PCP e do BE, para mais tendo em conta as importantes cedências governamentais. É manifesto que se enganou, não tendo previsto devidamente a que grau de irresponsabilidade e de masoquismo político pode descer a extrema-esquerda. 

Se o Presidente andou bem institucionalmente, falhou rotundamente o analista político que com ele coabita em Belém.

Adenda
Também não subscrevo o comentário de um leitor, que acusa MRS de ter "explorado uma oportunidade para afastar um Governo de esquerda e dar chances à direita de regresso ao Governo". Parece-me indiscutível que (i) o PR fez tudo (talvez demais) para "forçar" a aprovação do orçamento e que (ii) a direita, liderada pelo PSD, não dá ainda sinais de poder oferecer a "alternativa forte" que MRS vem defendendo e que claramente antecipava somente para 2023. Infelizmente, estas são umas eleições que ninguém desejava e cujas consequências ninguém pode antecipar.

Adenda 2 
Outro leitor objeta que há uma alternativa de governo no atual quadro parlamentar, que seria uma coligação PS-PSD. Mas trata-se obviamente de uma hipótese politicamente inviável e, mesmo, ilegítima, pois o PS travou a disputa eleitoral de 2019, cuja vitória lhe deu o Governo, na base da rejeição absoluta de qualquer solução de "bloco central". Não havendo uma situação de emergência nacional que justificasse a quebra desse compromisso, seria o total descrédito da política e dos partidos em causa. Não é por acaso que ninguém aventou essa hipótese...

Adenda 3
Um leitor pergunta porque é que o PR não deixa o Governo do PS a governar em duodécimos, prescindindo de orçamento para 2022. Embora tal hipótese tenha sido admitida por alguns comentadores pouco informados, ela não tem base constitucional nem teria legitimidade democrática.  A extensão do orçamento de um ano ao ano seguinte em duodécimos é uma solução de recurso, em caso de atraso do orçamento ou da sua rejeição, tendo neste caso o Governo obrigação de apresentar novo orçamento ato contínuo, salvo demissão ou dissolução parlamentar, em que essa obrigação passa para o Governo seguinte. Ora, como se mostrou acima, a hipótese de aprovação de novo orçamento no atual quadro parlamentar está fora de causa.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Assim vai a política (10): RIP


Fonte da imagem AQUI,

1.  Les jex sont faits! 

Juntando-se ao Bloco na rejeição do orçamento, e apesar das cedências enormes que conseguira obter do PS, o PCP derruba inapelavelmente o Governo e abre uma crise política de resultados imprevisíveis, mas em qualquer caso com graves prejuízos para recuperação económica do País, pela incerteza política criada e pelo atraso no lançamento dos investimentos financiados pelo PRR da UE. Isto sem falar na interrupção das importantes reformas legislativas em curso, como, por exemplo, a despenalização da eutanásia ou a reforma das ordens profissionais.  

Mais uma legislatura que não chega ao fim, agravando as estatísticas da instabilidade política em Portugal, com a agravante que esta crise exclui uma opção de governação que parecia estar aberta desde 2015

2. Tal como em 2011, os dois partidos da esquerda radical juntam-se a toda a direita para negar ao Governo do PS um instrumento essencial de governação, apesar de deste vez denegarem a muitos portugueses cujos interesses dizem defender (pensionistas, funcionários públicos, pessoas de baixos rendimentos) uma substancial melhoria das suas condições de vida, que decorria das propostas iniciais e das cedências posteriores do Governo a ambos os partidos.

Mais uma vez, porém, prevaleceu o radicalismo doutrinário e o atavismo "antissocial-democrata" da esquerda radical. 

3. Acresce que nada indica que ambos os partidos venham a ser politicamente premiados por esta opção nas eleições subsequentes, pelo contrário. Os cidadãos em geral não gostam de crises políticas e o eleitorado de esquerda em especial deve penalizar quem o privou de alguma conquistas que o orçamento lhe assegurava.

O PCP, em especial vai seguramente dar mais um passo em direção ao declínio eleitoral que há muito o corrói. Mas, aparentemente, prefere o suicídio à asfixia eleitoral que erradamente atribui à aliança com o PS. 

Decididamente, está-lhes "na massa do sangue". Mas, ao porem fim abruptamente à solução governativa que os comprometia e ao regressarem ao estatuto de "partidos de protesto", o Bloco e o PCP desobrigam o PS do desvio à esquerda que ensaiou em 2015, em homenagem à "geringonça". RIP!

Adenda 
Um leitor acusa-me de "preconceito antigeringonça". Mas não se trata de nenhum preconceito. Ao longo destes anos expus reiteradamente neste blogue (por exemplo AQUI e AQUI) as razões por que entendia que a aliança privilegiada do PS com os partidos à sua esquerda carecia de bases políticas minimamente sólidas, não somente por causa das profundas diferenças ideológico-programáticas, mas também pela compulsiva irresponsabilidade política da esquerda radical (como agora se confirma). A sua longevidade foi conseguida à custa (i) da renúncia do PS a reformas políticas necessárias (sistema eleitoral, justiça, sistema fiscal, governo das autarquias locais, carreiras especiais na função pública, "condição de recursos" nas prestações sociais não contributivas, etc.) e (ii) do continuado aumento da despesa pública corrente (salários, pensões, etc.), à custa do investimento público e da manutenção de uma carga fiscal excessiva, limitando o crescimento económico e pondo em risco a sustentabilidade das finanças públicas. Era curioso averiguar os custos orçamentais imputáveis à "Geringonça" acumulados neste seis anos...

Adenda (2) 
Num artigo no Público, Boaventura de Sousa Santos - que não pode ser acusado de preconceito contra a "Geringonça" -, observa pertinentemente que os dois partidos à esquerda do PS se sentem «sempre mais confortáveis na oposição contra a direita [e contra o PS, poderia acrescentar-se] do que na construção de políticas de esquerda». Aí está o busílis da questão...

domingo, 24 de outubro de 2021

Assim vai a política (9): O fim de uma ilusão

1. Depois das substanciais cedências adicionais do Governo, o PCP só pode manter o seu propósito de chumbar o orçamento, se já o tinha decidido antecipadamente, qualquer que ele fosse, e só manteve a aparência de negociações com "reserva mental" (o BE, esse, desde cedo que se pôs de fora...).

Em qualquer caso, o PCP será o grande vencedor do processo orçamental: viabilizando o orçamento, obtém importantes ganhos políticos, impensáveis à partida, impondo um claro revés político ao Governo, que sairá debilitado desta provação, vencido pela chantagem política comunista; chumbando o orçamento, derruba inexoravelmente o Governo e pode alterar o xadrez político nacional, abrindo um ciclo de imprevisível instabilidade política.  

Depois de ter sido o grande derrotado das recentes eleições autárquicas, acelerando o seu declínio, o PCP torna-se inesperadamente o principal protagonista da vida política naci0nal. Chapeau!

2. Em qualquer caso, quem perde sempre é o País. 

Havendo orçamento nos termos oferecidos ao PCP, teremos mais despesa pública e mais rigidez do mercado laboral, sacrificando a consolidação das contas públicas e  a competitividade da economia, respetivamente, e isto sem contar com as novas alterações que a votação na especialidade pode trazer. 

Havendo rejeição do orçamento, teremos crise política e convocação de eleições antecipadas, com uma prolongada fase de governação com capacidade política e orçamental diminuída, incapaz de fruir plenamente do Programa de Recuperação e de Resiliência, até à formação de novo Governo (não se sabe com que base partidária e com que orientação política) e à aprovação de novo orçamento (não se sabe com que maioria), num prazo incerto.

Se é de evitar a incerteza política imediata da segunda opção, não podem, porém, desvalorizar-se os custos duradouros de um mau orçamento. 

3. Em qualquer das hipóteses, tudo parece indicar o fim da solução governativa de governo minoritário do PS, baseada na aliança privilegiada com os partidos da sua esquerda parlamentar, incluindo em matéria orçamental, prescindindo de alianças de geometria parlamentar variável, como era tradicional nos governos minoritários do PS antes da experiência da "Geringonça" de 2015. 

Se as divergências político-ideológicas de fundo (União Europeia, alianças internacionais, economia de mercado, disciplina das finanças públicas, etc.) impedem uma verdadeira coligação de governo do PS com os partidos da "esquerda da esquerda", esta provação orçamental vem mostrar que uma tal aliança também não é possível em termos de gestão económica e orçamental sustentável, frustrando a tentativa de os trazer para o "arco da governação". 

Ao optar, à partida, por negociar exclusivamente com a sua esquerda parlamentar, o Governo tornou-se inapelavelmente refém do seu sectarismo doutrinário e do seu oportunismo político, expondo a sua própria vulnerabilidade política. 

Adenda 
No parecer do Conselho das Finanças Públicas sobre a proposta do orçamento lê-se que «uma comparação com o ano de 2019 revela que mesmo removendo da despesa os efeitos das one-off, o impacto do PRR e as “medidas de emergência”, a despesa primária prevista para 2022 situar-se-á 3,4 p.p. do PIB acima do valor pré-pandemia.» Ora, com a despesa adicional resultante das cedências do Governo ao PCP, o excesso será ainda maior. Um tal ritmo de crescimento da despesa primária, em grande parte despesa corrente, é pura e simplesmente insustentável.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Ai o défice (15): O sorvedouro do SNS

1. Penso que entre as piores cedências que o Governo pode fazer para tentar assegurar a passagem do orçamento para 2022 estão as que aumentam estruturalmente a despesa pública, comprometendo orçamentos futuros, como é o caso da criação de novas carreiras nos serviços públicos, nomeadamente a carreira de "técnico auxiliar de saúde" no SNS, a instância do BE, com toda a despesa pública adicional que isso comporta, sem nenhuma avaliação prévia da necessidade dessa nova carreira.

Surpreende-me que o Ministro das Finanças tenha validado essa cedência, mesmo que conte limitar os seus efeitos financeiros no ano que vem. O problema é o que vem depois. Duvido que esta medida avançasse com Mário Centeno...

2. Conto-me entre os que entendem que os problemas do SNS são menos os do seu sempre referido subfinanciamento do que os problemas de organização e de gestão que não permitem utilizar os recursos disponíveis de forma eficiente, desde logo por falta de mecanismos de avaliação de desempenho de profissionais e de instituições e de remuneração de acordo com o desempenho.

Seria bom acreditar nas palavras da Ministra da Saúde quando declara que «cada euro investido no SNS significa mais cuidados de saúde». A verdade é que não parece haver correspondência direta entre o avultado aumento do orçamento do SNS desde 2015 e um acréscimo côngruo de prestações de saúde (consultas, exames, cirurgias, etc.). O SNS não tem deixado de perder quota de cuidados de saúde para a medicina privada.

Julgo, por isso, que se justifica um profundo spending review do SNS, com vista a identificar os fatores de ineficiência e a inventariar os possíveis ganhos de eficiência. Despejar mais milhões de euros, mantendo tudo na mesma, não constitui solução.

3. Também não percebo por que é que é preciso criar uma nova categoria remuneratória, sob o título enganador de "dedicação plena",  para assegurar que os médicos do SNS não podem desempenhar cargos de direção em instituições de saúde privados e para limitar o envolvimento de médicos com responsabilidades de direção no SNS nas instituições privadas em que acumulam. 

Tais incompatibilidades há muito deveriam estar instituídas por lei, como decurso normal do óbvio conflito de interesses que elas envolvem, em prejuízo do SNS. Pagar para as assegurar, aliás incompletamente, é um contrassenso!...

Adenda
Um leitor comenta que a redução do horário semanal de trabalho para 35 horas, decidida pelo Governo do PS em 2015, foi altamente prejudicial para o SNS, não somente pelo aumento de custos em novo pessoal e em horas extraordinárias para compensar essa medida, mas também por ter facilitado a acumulação do pessoal do SNS com tarefas privadas, onde são remunerados em função do desempenho. Não podia concordar mais, como tenho dito desde o início (por exemplo, AQUI e AQUI).

Adenda (2)
Outro leitor denuncia aquilo que qualifica como o "cinismo institucionalizado" do elogio oficial do SNS, quando a adesão generalizada à ADSE (um subsistema público paralelo ao SNS...) e a seguros de saúde privados, apesar de ambos serem financiados pelos utentes, revela uma "fuga generalizada" ao SNS por parte de quem tem meios para o fazer, o que, a prazo, pode levar muita gente, que deixou de depender do SNS, a rebelar-se contra o fardo fiscal do seu elevado custo orçamental. Penso que é um risco real.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Sim, mas (7): O mau exemplo da ANACOM

1. António Costa tem toda a razão quando denuncia publicamente o escandaloso arrastamento do concurso sobre as redes de telecomunicações de 5G,  mal lançado e mal gerido pela ANACOM, que ameaça deixar o país como lanterna vermelha na implementação desta revolução tecnológica na UE, em prejuízo dos operadores e utentes e da economia em geral

Mas o PM já não tem razão, quando invoca este caso para questionar a própria noção de regulação independente, que se tornou dominante na Europa, importada dos Estados Unidos, desde os anos 90 do século passado, como parte integrante dos conceitos de "economia de mercado regulada" e de "Estado regulador", em substituição do precedente "Estado intervencionista".

Um mau regulador não basta para matar a regulação independente.

2. Antes de mais, as autoridades reguladoras independentes são autoridades puramente administrativas, pelo que só têm os poderes que lhe são confiados por lei (ou decreto-lei) e têm de respeitar as opções de política regulatória setorial definidas pelo Governo. 

Ora, no caso concreto, começa por ser questionável se, à face da lei das telecomunicações de 2004, o concurso das redes 5G era da competência da ANACOM ou do Governo, sendo certo que na sua Resolução de 2020 sobre o assunto, o atual Governo remeteu essa competência para a autoridade reguladora, sem questionar.

Acresce que o Governo poderia ter acautelado a questão da celeridade do concurso, na tal Resolução que precedeu o Regulamento da ANACOM, o que não fez. E também não se conhece nenhuma objeção ou advertência levantada pelo Ministério competente aquando da consulta pública do referido Regulamento, o que é tanto mais estranho, quanto é certo que este desrespeitava em vários aspetos a referida Resolução governamental, por exemplo quanto ao calendário e à cobertura da implantação das redes de 5G e quanto à não discriminação dos concorrentes, o que, aliás, tem gerado a contestação judicial do concurso.

Por conseguinte, há em todo este processo uma manifesta incúria governamental na definição e imposição da política regulatória para o setor, deixando "à solta" um regulador incompetente.

3. Há três boas razões para desaconselhar a condenação sumária das autoridades reguladoras independentes (ARI) por parte de um Governo do PS. 

Em primeiro lugar, os governos socialistas têm sido consistentemente responsáveis por essa "revolução regulatória", desde os governos de António Guterres (1995 e 1999), tendo a ANACOM sido criada nessa época como autoridade reguladora independente das telecomunicações (e dos serviços postais), então em vias de liberalização e de privatização.

Em segundo lugar, as autoridades reguladoras independentes fazem parte integrante dos instrumentário da UE para integrar as antigas utilities públicas no "mercado interno" da União, submetendo-as à liberdade de entrada e à concorrência, mas sujeitas à regulação pública necessária para corrigir as "falhas de mercado" e para salvaguardar a sua natureza como "serviços de interesse económico geral" (SIEG).

Por último, este ataque do Governo às ARI corre o risco de dar mais um argumento à direita, no sentido de que os governos socialistas convivem mal com instâncias do poder público que fogem ao controlo governamental, mesmo quando se trata de autoridades estritamente administrativas, que, por definição, só podem atuar no quadro da lei e da política regulatória definida pelos governos.

Cabe, alíás, dizer que este mau exemplo da ANACOM não constitui regra na conduta das ARI entre nós, pelo que não deve servir de pretexto para condenação geral destas. 

Adenda 
Um leitor pergunta se o Governo pode destituir a direção da ANACOM. Nos termos da lei, só pode haver destituição em caso de «falta grave, [de] responsabilidade individual ou coletiva, apurada em inquérito devidamente instruído, por entidade independente do Governo, e precedendo parecer do conselho consultivo, quando exista, da entidade reguladora em causa, e da audição da comissão parlamentar competente». Ora, embora o desrespeito da RCM de 2020 possa ser considerada como motivo justificado, é óbvio que se trata de um processo complexo, litigioso e moroso

Adenda (2)
É certo que, como recorda um leitor, o PS votou contra a lei-quadro das entidades reguladoras de 2013, junto com os demais partidos da esquerda parlamentar. Mas depois não manteve nenhum discurso político ou doutrinário contra ela e não tomou nenhuma iniciativa para a revogar ou reformar, desde que é Governo (2015), havendo maioria parlamentar para o fazer.

Adenda (3)
Sobre o racional das ARI, a que tenho dedicado alguma investigação académica, remeto para um anterior texto AQUI no CN.

domingo, 17 de outubro de 2021

Sim, mas (6): O alerta do Presidente

Não tenho dúvidas sobre a consequência de um eventual chumbo do orçamento, que seria a convocação eleições antecipadas, visto não haver condições políticas nem orçamentais para experimentar um segunda tentativa de fazer passar um novo orçamento nem para manter o País a viver indefinidamente em duodécimos do orçamento em vigor, sobretudo por causa da execução do PRR; e também estou de acordo com os claros alertas do Presidente da República acerca da situação, de modo que ninguém poderá ter dúvidas sobre a referida consequência.

O problema está, porém, em que, sendo de prever que o PS ganhe de novo as eleições sem maioria absoluta (e com menor diferença sobre o PSD), não é fácil antever o tempo que demoraria para formar novo Governo capaz de passar na AR (com que apoios?) e para preparar e fazer aprovar novo orçamento (com que maioria?). O mais provável é que o País tivesse de viver efetivamente sem Governo em plenitude de funções e sem orçamento aprovado por tempo imprevisível, com todos os prejuízos daí resultantes para a recuperação económica e social da crise da pandemia. Penso que esse risco também deveria ser incluído explicitamente no alerta presidencial.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Ai o défice (14): Desbunda da despesa?

1. O Governo prevê agora que em 2022 a economia cresça 5,5%, bem acima dos 4,9% previstos no programa de estabilidade publicado em abril, mas não mexe na meta do défice, que se mantém em 3,2%, tal como antes. 
Há qui algo que não bate certo: se a economia vai crescer mais, isso quer dizer mais receita pública (impostos e contribuições) e menos despesa (encargos sociais), pelo que, ao manter o défice orçamental, e não estando na agenda uma descida de impostos, o Governo encara agora a realização mais despesa do que antes

 2.  Seria de esperar ao menos que o aumento de despesa que a manutenção da meta do défice indicia contemplasse o investimento público e não a despesa corrente, tanto mais que o fim da crise do COVID liberta o orçamento da despesa extraodinária que ela importou. 

Mas, a ter em conta a experiência desde 2015, é de recear que a nova folga na despesa se destine a cobrir mais generosamente os custos da viabilização do orçamento pelo BE e pelo PCP, o que, como é habitual, se traduz em geral num agravamento da despesa corrente (salários, pensões, prestações sociais, etc.), à custa do investimento público, que tem sido a primeira vítima das célebres "cativações" da despesa orçamentada.

Em qualquer caso, não deixa de ser um exagero um tal défice orçamental com a economia a crescer de forma tão robusta, o que torna redundante qualquer estímulo orçamental à economia, tanto mais que há que contar com a cornucópia extraordinária dos fundos do PRR. 

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Praça da República (56): Reordenar as ordens profissionais

1. Existe finalmente uma iniciativa legislativa destinada a reordenar o regime jurídico das ordens profissionais, cujos principais objetivos são quatro: 

- combater a atávica tendência das ordens, tanto para limitar o acesso à profissão (malthusianismo profissional), sobretudo através de exames e estágios à entrada na profissão, como para expandir a esfera das atividades profissionais reservadas aos seus membros (monopólio profissional)

- admitir a prestação integrada de diferentes serviços profissionais (por exemplo, advocacia e consultoria financeira, economia e engenharia), através de escritórios multidisciplinares;

autonomizar e reforçar a função pública de regulação, supervisão e disciplina das ordens, através de uma reformulação da composição e das competências do conselho de supervisão, que o regime vigente já prevê; 

- reforçar os direitos dos destinatários dos serviços profissionais contra abusos ou más práticas profissionais, através da obrigatoriedade do provedor do utente.

É fácil ver que esta iniciativa legislativa ataca os principais pontos críticos da atual regulação jurídica das ordens e das más práticas de quase todas elas, colocando-as ao serviços do interesse público que as justifica. 

É de saudar e de sufragar, portanto, esperando a sua aprovação parlamentar.

2. Todavia, com o tempo, tenho-me tornado cada vez mais crítico da solução tradicional das ordens profissionais, propendendo cada vez mais para suprimir as suas funções corporativas de representação e defesa de interesse profissionais, reduzindo-as a entidades de regulação e disciplina da profissão, em substituição do Estado. 

Entendo que que num Estado de direito liberal, baseado na separação entre o Estado e a sociedade civil, não compete a entidades públicas, como as ordens são, a tarefa de representação e defesa oficial e unicitária de interesse profissionais, a qual deve caber exclusivamente a sindicatos e associações profissionais de livre iniciativa dos interessados.

Não existe nenhuma razão para conferir a certas profissões o privilégio de ter a representação de defesa dos seus interesses profissionais a cargo de entidades públicas, de inscrição e quotização obrigatórias e de representação unicitária, quando as outras profissões têm de recorrer a sindicatos e associações voluntárias, desprovidas de estatuto e de poderes públicos.

Sem enveredar por essa revolução, é evidente que esta iniciativa legislativa, pelo menos, autonomiza e reforça a função de supervisão e de disciplina profissional,  atenuando o risco da sua captura pela função corporativa paralela das ordens. Um enorme progresso!

Adenda
Concordando com a reforma proposta, um leitor comenta que "o que está em causa é assegurar a confiança dos consumidores dos serviços profissionais (advogados, médicos, etc.) quanto ao cumprimento das obrigações deontológicas e das boas práticas profissionais, pelo que é essencial acreditar que as ordens supervisionam efetivamente os seus membros e os punem devidamente quando incorrerem em qualquer violação daquelas regras".
Nem mais! Trata-se de serviços profissionais em geral caracterizados pela "assimetria de informação" entre quem os presta e quem os recebe, pelo que tem de haver confiança dos segundos em que as ordens se encarregam de impedir abusos e de punir os que ocorram.

Adenda 2
Uma das linhas de ataque das ordens ao projeto de reforma consiste em acusá-lo de «retirar às Ordens a competência para a defesa dos interesses gerais dos beneficiários dos serviços». Trata-se, porém, de uma acusação de todo infundada, pela simples razão de que as ordens nunca tiverem tal poder. Nada na lei confere, por exemplo à Ordem dos Médicos, o poder de efetuar inspeções aos serviços de saúde públicos ou privados, como por vezes tem sucedido, à margem da lei. As ordens têm, sim, o poder (e o dever) de defender os direitos dos destinários de serviços profissionais contra eventuais abusos dos próprios profissionais. Acontece que, perante a passividade do Governo e do Ministério Público, algumas ordens têm preferido usurpar poderes que não têm, em vez de exercerem os poderes que legalmente têm a abrigação de exercer e que justificam a suaa criação pelo Estado. 

Adenda 3 

Outro argumento na "cruzada" das ordens contra a projetada reforma consiste em acusá-la de instituir a "ingerência" do Governo nas ordens, sacrificando a sua independência e a sua autonomia. Também aqui, sem razão. De facto, o projeto não agrava em nada a tutela governamental sobre a ordens nem prevê qualquer outro tipo de ingerência governamental suscetível de pôr em risco o autogoverno e a autonomia funcional das mesmas. Trata-se de lançar areia para os olhos da opinião pública. Mas não deixa de ser curioso que quem denuncia infundadamente um alegado propósito de ingerência governamental nas ordens seja quem pretenda manter uma ilegítima ingerência destas na esfera administrativa do Governo, a pretexto da defesa dos direitos dos cidadãos. Trata-se de "fazer o mal e a caramunha".

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Sim, mas (5): Tiro pela culatra

1. Parece que, no âmbito das medidas orçamentais para conquistar o voto do PCP, o Governo vai propor o englobamento dos rendimentos patrimoniais, ou pelo menos de alguns deles (nomeadamente os dividendos), para efeitos de cálculo do IRS, deixando de estar sujeitos à "taxa liberatória" de 28% (aliás, comparativamente elevada).

A ideia é atraente sob o ponto de vista dos princípios da equidade fiscal. Mas é de questionar a sua eficácia e os seus "efeitos colaterais". 

2. Como mostra esta reflexão de um especialista e antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no anterior Governo de António Costa, a tributação desses rendimentos pode ter um efeito contrário, pela migração desses rendimentos para a tributação em IRC ou pela sua deslocação para o exterior, além do aumento da evasão fiscal (no caso do arrendamento), levando assim à perda de receita no IRS, e não ao seu aumento.

Ao que se deve acrescentar o provável efeito negativo sobre o mercado de arrendamento e sobre o investimento na bolsa de valores de Lisboa, um e outro a precisarem de estímulo, mais do que de novos encargos...

3. Por último, a ideia de englobar somente alguma espécie de rendimentos patrimoniais, estabelecendo uma discriminação quanto aos demais, leva seguramente a uma distorção na alocação da poupança nacional (por exemplo, entre imobiliário, ações e obrigações), cuja justificação deve ser politicamente explicada e assumida.

[Declaração de interesses: tenho alguns rendimentos provenientes de rendas e de  dividendos, todos devidamente declarados.]

Adenda
Um leitor comenta, com toda a pertinência, que é vergonhosa a passividade do Governo e da Autoridade Tributária perante a grande evasão do IRS quanto às rendas, distorcendo a informação sobre o mercado de arrendamento e penalizando os contribuintes que cumprem as suas obrigações fiscais. Se não houvesse tanta evasão, poderia haver um alívio fiscal para os cumpridores, sem perda de receita.

Adenda 2
Um leitor contesta que a "taxa liberatória" sobre os dividendos entre nós seja "relativamente elevada", argumentado que vários países europeus têm taxas de 35% e 40%. Mas não tem razão. Como se pode ver aqui < https://taxfoundation.org/dividend-tax-rates-europe-2020/ >, a taxa média de imposto sobre dividendos nos países da OCDE é de 23.5%, bem inferior aos nossos 28%. Nos países do sul da Europa, a taxa é de 24% na Espanha, 26% na Itália e 10% na Grécia, sempre inferior à taxa portuguesa.



domingo, 3 de outubro de 2021

Praça da República (55): Irracionalidade política

1. Os resultados das eleições locais em vários municípios do País, a começar por Lisboa, revelam à evidência a irracionalidade do sistema de governo municipal em vigor, em que executivo municipal (câmara municipal) é eleito diretamente em voto de lista e segundo um método proporcional, sendo o presidente da CM  automaticamente o primeiro nome da lista vencedora, qualquer que seja a sua percentagem.

Isso permite que, em caso de vitória com maioria relativa - o que sucede com relativa frequência -, o presidente eleito tenha contra si uma maioria de vereadores da oposição, além de ficar em minoria no "parlamento" municipal.

Como é bom de ver, não serão as melhores as condições de governabilidade desses municípios, estando o presidente da CM sob o risco de veto das oposições ou, até, de coligações contrárias ao seu programa de governo municipal.

2. Ora, não há nenhuma razão para a eleição direta do executivo municipal, para mais sendo um órgão colegial.

A solução mais razoável seria adotar o mesmo sistema de governo das freguesias, em que só a assembleia é diretamente eleita. Quanto à junta de freguesia, ela é composta pelo presidente, indiretamente eleito - pois é o primeiro nome  da lista vencedora para a assembleia de freguesia  -, sendo os vogais eleitos pela assembleia, sob proposta do presidente. Caso o presidente não disponha de maioria na assembleia de freguesia, terá naturalmente de tentar uma coligação com outra força política para obter a eleição dos vogais e o necessário apoio político à sua governação.

Transportado esse sistema para o plano municipal, seria abolida a eleição da CM, a qual seria presidida pelo primeiro nome da lista vencedora para a AM e sendo os vereadores eleitos pelo parlamento municipal sob proposta do presidente.

O confronto entre o governo municipal e a oposição deixaria de travar-se dentro da CM, transferindo-se para a assembleia municipal - a qual teria de ser dotada de meios de que hoje não dispõe  - , como sucede no sistema político a nível nacional e nas regiões autónomas.

3. Ora, o exótico regime em vigor, que vem desde 1976, deixou de ser obrigatório desde a revisão constitucional de 1997, há quase um quarto de século, que permitiu a reforma do sistema de governo municipal, a qual não foi efetuada até agora porque não foi possível um entendimento político-legislativo capaz de obter uma maioria de 2/3 na AR, ou seja, um acordo entre PS e o PSD.

Um tal acordo chegou a ser fechado há umas duas décadas, mas depois foi abandonado pelo PSD, não tendo havido nova tentativa de o reeditar desde então. Parece que ambos os partidos estão mais interessados em controlar por dentro as câmaras municipais alheias do que em dar maior racionalidade política e mais eficácia ao sistema de governo municipal.

Quando volta a falar-se em nova revisão da Constituição e em reforma do sistema político, seria conveniente explorar as reformas que a RC de 1997 veio permitir e que até agora ficaram na gaveta.

Adenda
Um leitor discorda da solução acima proposta, defendendo a opção entre um sistema presidencialista (em que o presidente da CM seria pessoalmente eleito, podendo depois escolher livremente a sua equipa) e um sistema parlamentar, em que o presidente da CM e a sua equipa seriam oriundos do partido ou coligação com maioria na assembleia municipal). Sucede, porém, que nenhuma dessas alternativas é consentida pelo atual regime constitucional.

sábado, 2 de outubro de 2021

Outras causas (5): "Tratar o bife como o carvão"

Nesta peça do The Economist desta semana, mostra-se que a produção de carne de vaca é de longe a que mais CO2 produz entre os alimentos (de origem animal ou vegetal), pelo que deveria ser tratada como o carvão na luta contra as alterações climáticas, ou seja, ser abandonada.

Declaração de interesse: não como habitualmente carne de vaca há um quarto de século (desde a crise das "vacas loucas"), mas todos os dias bebo leite, o que é quase tão mau como o bife em termos ambientais.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Não concordo (23): Contra a "presidencialização" do regime

1. Entre as propostas de Rui Rio para a reforma do sistema político, conta-se a de transferir para o Presidente da República a competência para a nomeação do Governador do Banco de Portugal e dos presidentes das autoridades reguladoras, que são entidades tipicamente administrativas, aliás de criação governamental.

Ora, não há nenhuma justificação para entregar ao PR tarefas administrativas, que devem continuar a caber exclusivamente ao Governo, como órgão superior da Administração Pública, o qual responde perante o Parlamento pelo exercício dessa competência, como estabelece a Constituição. Ora, além do seu mandato longo, o PR é politicamente irresponsável.

Não faz sentido acrescentar ao atual "poder moderador" do PR tarefas de índole político-administrativa, à custa da capacidade do Governo para executar o seu programa.

2. Por razão diversa, também não vejo nenhuma razão para dar ao Presidente o poder de nomeação de alguns juízes do Tribunal Constitucional, desequilibrando a engenhosa solução encontrada em 1982, com a concordância do PSD, e que tem funcionado bem.

Com a solução proposta, a composição e a orientação do Tribunal Constitucional passariam a depender decisivamente do PR em funções.

3. Espero que o PS não dê o seu acordo a nenhuma destas soluções.

Por minha parte, proporia, aliás, algumas limitações dos atuais poderes presidenciais. nomeadamente as seguintes:

- declaração do estado de sítio e do estado de emergência sob proposta do Governo (que é quem tem o poder de os implementar), em vez da atual consulta;

- extinção da promulgação presidencial de decretos regulamentares e da assinatura de outros decretos governamentais (que são atos administrativos ou políticos próprios do Governo);

- sujeição do veto político de leis da AR a parecer prévio do Conselho de Estado, dificultando decisões imponderadas;

- permitir a superação do veto político das leis da AR por maioria a de 3/5, em vez da atual maioria de 2/3;

- submeter a ratificação de tratados e a assinatura de acordos internacionais ao mesmo regime das promulgação / veto dos diplomas legislativos;

- acabar com o indulto e comutação de penas criminais, um resquício do Antigo Regime.