quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Não com os meus impostos (6): Dar benesses com dinheiro dos outros é fácil

1. O semanário Expresso anuncia hoje (acesso exclusivo para assinantes) que, em cumprimento de uma promessa eleitoral, o Presidente da Câmara Muncipial de Lisboa apresentou à edilidade a sua proposta de tornar gratuitos os transportes públicos urbanos em Lisboa para crianças e seniores.

Não sendo munícipe de Lisboa, nada tenho a objetar contra essa medida social, que, aliás, avalio de modo positivo e que considero que deveria ser adotada em outros municípios com a necessária capacidade financeira, incluindo o meu.

2. Sucede, porém, que, se a Carris é hoje uma empresa municipal, outro tanto não acontece com o metropolitano, que continua a ser uma empresa do Estado, sendo os seus investimentos e défices de exploração suportados pelos contribuintes de todo o País, incluindo aqueles que moram onde os transportes coletivos, quando existem, são exclusivamente municipais e não concedem tais benesses sociais.

Por isso, de duas uma: (i) ou o município de Lisboa indemniza o Estado pelo perda de receita decorrente da gratuitidade; (ii) ou o município de Lisboa propõe ao Estado a transferência do metro para a esfera local (munipal ou intermunicipal), como há muito defendo, em nome dos princípios constitucionais da descentralização territorial e da subsidiariedade, manifestamente ignorados neste caso.

3. O que não faz nenhum sentido é pôr os contribuintes do resto do país, incluindo os das regiões mais pobres (que nem transportes coletivos locais têm), a subsidiar as regalias sociais de Lisboa, que devem ser pagas pelo respetivo orçamento municipal. Para iniquidade territorial já basta terem de pagar o metro de Lisboa tal como está.

Pôr as regiões pobres a subsidiar os privilégios da capital é um contrassenso.

Adenda
Sem surpresa, embora anote que o metropolitano de Lisboa pertence ao Estado, a notícia do Expresso não manifesta nenhuma estranheza por o município da capital decretar o seu uso gratuito, como se fosse propriedade municipal. Pelos vistos, em Lisboa toda a gente considera natural ser o Estado a suportar os serviços públicos locais da capital com o dinheiro dos contribuintes em geral. Assim vai o atavismo centralista!...

Adenda 2
Carlos Moedas já veio declarar, como se impunha, que o município indemnizará as empresas de transportes pela perda de receitas, pelo que o problema suscitado no post acima está resolvido. No entanto, quanto ao metropolitano, não há até agora nenhum esclarecimento nem da empresa nem do ministro da tutela. E é pena não se aproveitar esta oportunidade para tranferir finalmente para o município (ou entidade intermunicipal) a titularidade e a responsabilidade por esse serviço público de transporte da capital.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Pandemia (62): Irresponsabilidade moral

1. Sendo evidente que os não-vacinados são, de longe, os que mais precisam de hospitalização e que mais contam no número de vítimas mortais do Covid - por exemplo AQUI e AQUI -, não se percebe porque é que o Governo não explora diariamente esses dados para pressionar as pessoas a vacinarem-se.

Comprovada que está a eficácia da vacina, assim como a ausência geral de efeitos colaterais, sou pessoalmente favorável a torná-la obrigatória, salvo contra indicação médica, pelo menos para as pessoas cuja funções as colocam em contacto frequente com outras (pessoal de saúde e do ensino, polícias, taxistas, empregados de lojas, cabeleireiros e restaurantes, caixas em supermercados, etc.), quer pelo facto de os não-vacinados contaminarem mais, pondo mais em causa a saúde alheia, quer porque sobrecarregam os serviços de saúde, pagos por todos, obrigando a desviar recursos do tratamento de outras doenças

2. A liberdade de não se vacinar ou o direito a morrer na pandemia não podem prevalecer sobre o direito à vida e à saúde dos outros. Como ensinaram os clássicos do liberalismo, a liberdade de uns termina onde começa a liberdade alheia.

Mas se o Governo e os partidos entendem que não há condições políticas para sancionar a recusa da vacinação (com coimas, inibições, etc.), nada justifica que não se "massacre" diariamente os não-vacinados com a evidência da sua irresponsabilidade moral e do abuso provocatório da sua suposta liberdade individual.

Adenda
Penso que, em vez dos atuais esforços e gastos infrutíferos para travar a fulgurante difusão do Omicron - afinal relativamente inofensivo para pessoas vacinadas -, o Governo deveria empenhar todos os recursos e toda a determinação na vacinação. Se, como tudo indica, todos vamos acabar por ser infetados, que todos estejam devidamente protegidos quando calhar a sua vez.

Adenda 2 (29/12)
Segundo este estudo do Prof. Valadares Tavares (reservado a assinantes), «o risco de ser internado no hospital devido à COVID 19 dos não vacinados é cerca de 21 vezes superior ao risco suportado pelos vacinados». É fácil fazer uma ideia dos enormes recursos que o SNS tem de dedicar à irresponsabilidade dos não-vacinados.

Adenda 3 (29/12)

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Eleições parlamentares 2022 (7): E o plano B do PS?

1. Fica agora claro que o PS assume explicitamente o objetivo de alcançar uma maioria parlamentar nas próximas eleições, como condição para um governo estável e para realizar o programa político apresentado aos eleitores. Mas, obviamente, o PS não vai ser poupado à pergunta sobre o que vai fazer se ganhar as eleições sem maioria absoluta, que é a hipótese mais provável segundo as sondagens de opinião. 

Não podendo António Costa furtar-se a responder a essa questão, entendo que deve afastar tanto um governo de coligação (seja à esquerda seja à direita) como um governo minoritário sem garantias minimas de estabilidade e que, portanto, deve defender um acordo parlamentar de viabilização do Governo por quatro anos com o partidos ou partidos que estejam disponíveis para tal acordo, sem preferências nem exclusões prévias, optando pela alternativa que que ofereça melhores condições quanto a três fatores: (i) a viabilização dos orçamentos, de acordo com metas pré-estabelecidas quanto à redução do défice e da dívida pública, (ii) os critérios de seleção dos titulares de cargos de nomeação política e (iii) o menor sacrifício do programa eleitoral do PS.

2. Ao mesmo tempo que entrega aos eleitores a questão fundamental da fórmula governativa (governo de maioria ou governo minoritário), esta opção transfere para os outros partidos elegíveis para possíveis acordos de viabilização parlamentar a escolha das possíveis fórmulas de aliança parlamentar. 

Ou seja, tratar-se-ia de uma espécie de "concurso público" limitado, aberto simultaneamente ao PAN, ao PCP e/ou ao BE e ao PSD, "ganhando" a melhor oferta quanto aos três indicadores acima referidos. A escolha final deveria ser publicamente explicada e deveria ser vertida em compromisso escrito entre as partes envolvidas, a fim de permitir a verificação da sua execução pelos cidadãos.

Adenda
Um leitor pergunta se o PS não deve exluir à partida a hipótese de formar Governo se não ganhar as eleições, mas houver maioria da esquerda na AR, recorrendo ao apoio do BE e do PCP, como sucedeu em 2015 (a verdadeira e própria "Geringonça"). Penso que Costa já respondeu explicitamente a essa questão, ao proclamar que desta vez a questão eleitoral consiste em saber qual dos candidatos a primeiro-ministro (ele ou Rio) ganha as eleiçoes - o que só admite um Governo chefiado por quem as vencer. 
O que resta por saber é se, na hipótese pouco provável de ser o PSD a ganhar, Costa (caso se mantivesse à frente do PS) estaria aberto a um acordo parlamentar para viabilizar um Governo minoritário do PSD para a legislatura (mediante as devidas contrapartidas) ou se "forçaria" Rio a buscar o apoio da demais direita parlamentar.

Adenda 2
Outro leitor pergunta qual seria a solução governativa mais provável, caso o PS vença sem maioria parlamentar. Como já escrevi várias vezes, penso que uma aliança parlamentar à esquerda provou ser demasiado onerosa orçamentalmente e implica o veto de qualquer reforma do sistema político. Além disso, não vejo como é que o PCP ou o BE poderiam algum vez assumir um compromisso político de apoio, por quatro anos, a uma política orçamental apostada na redução do défice e da dívida pública. Neste quadro, afigura-se ser pouco provável um acordo de governo à esquerda. 

Adenda 3
Ao contrário do que me acusa um crítico, não defendo, nem às escondidas nem à descarada, o "bloco central". Na sua versão histórica (1983-85), um governo de bloco central implica um governo de coligação entre o PS e o PSD, com programa comum e posições convergentes em todos os dossiers governamentais e parlamentares. Não defendo nada disso. Nem bloco central nem bloco das esquerdas.


Estado social (10): O tabu nacional

1. Acaba de ser publicado em França um importante estudo sobre o imposto de sucessões, que mostra a inconsequência do atual regime do imposto nesse país, o qual, além de abranger uma muito pequena minoria das sucessões, deixa um série de isenções em aberto, que favorece as maiores heranças.

Curiosamente, enquanto os candidatos de direita às próximas eleições presidenciais propõem uma redução do imposto, embora sem avançarem para a sua abolição, os demais candidatos, incluindo o favorito Macron e com a exceção do candidato da extrema-esquerda, Melenchon, são omissos sobre o assunto.

Tudo indica, portanto, que em França o topo da pirâmide económica vai continuar a tornar-se, cada vez mais, uma "elite de herdeiros".

2. Em Portugal, a questão tornou-se uma espécie de tabu, depois da abolição do imposto pelo Governo de Durão Barroso (PSDS-CDS). No programa eleitoral de 2015 o PS propunha o restabelecimento do imposto para as sucessões de elevado montante, mas a proposta desapareceu no programa de Governo e não voltaria à agenda em 2019. Não há indicação nenhuma de que a ideia regresse nas próximas eleições.

E eis como, num país que mantém uma elevada carga fiscal para financiar um Estado social orçamentalmente exigente, nem a esquerda defende uma das mais justas peças do cardápio tributário.

Adenda 
Um leitor argumenta que na maior parte dos casos as grandes fortunas são usualmente constituídas por empresas ou conglomerados de empresas, que os herdeiros não podem vender facilmente, e sem prejuízo para as próprias empresas. Trata-se porém, de um pseudoargumento. Está provado que as grandes fortunas não são constituídas somente por empresas, mas também por prédios, aplicações financeiras (ações, obrigações, etc.), joias, quadros, etc. E qual é o problema de vender uma pequena parte da herança por 1 milhão (ou pedir um empréstimo desse montante) para receber 10 milhões. É óbvio que esse pseudoargumento não impede a existência do imposto sucessório em tantos países, incluindo os EUA, onde a taxa é de 40% para heranças acima de 12 milhões de dólares.

Adenda 2
Outro leitor pergunta qual seria a minha proposta de imposto sucessório. Se fosse legislador defenderia a aplicação do imposto não à massa hereditária global, mas sim à quota hereditária de cada herdeiro (pois são estes que vão pagar o imposto); o imposto seria progressivo: ficariam isentas do imposto as heranças inferiores a 250 000 euros; o imposto começaria por uma taxa de 5% até meio milhão, que aumentaria para 10% para o excedente até um milhão, e assim sucessivamente a cada acréscimo de meio milhão, até atingir uma taxa limite de 25% (acréscimos acima de 2 000 milhões). Note-se que os prémios de lotaria estão sujeitos a um imposto autónomo de 30%, independentemente do seu valor; as mais-valias mobiliárias pagam uma "taxa liberatória" de 28% e as mais-valias imobiliárias estão sujeitas a englobamento no IRS por metade do seu valor.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

No bicentenário da Revolução Liberal (36): A consulta de 1820 sobre as Cortes Constituintes

1. Eis mais um produto da minha coautoria com o Prof. José Domingues na investigação da Revolução Liberal de há dois séculos. 

Baseado em documentos em grande parte inéditos, trata-se do estudo de uma consulta pública, até agora pouco conhecida, realizada em outubro de 1820, sobre o tipo e o modo de eleição das Cortes Constituintes, que eram, desde o início, o principal objetivo da Revolução. Mostramos que, ao contrário do que até agora se pensava, considerando os poucos pareceres publicados na época, a opinião dominante nessa consulta se mostrou favorável à convocação de Cortes de novo tipo, em representação unitária da Nação, e não das antigas Cortes, que davam representação privativa ao clero e à nobreza, a par do "terceiro estado".

2. Essa consulta veio, portanto, sufragar a natural opção dos revolucionários liberais pelo modelo de assembleia constituinte seguido na vizinha Espanha em 1810-12, que gerou a Constituição de Cádis (1812) e que se viria a concretizar entre nós nas eleições constituintes de dezembro de 1820.

Um momento singular na nossa história política e constitucional.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Não vale tudo (8): Os réprobos

Discordo de todo em todo deste ataque à eventual candidatura de Edite Estrela a presidente da Assembleia da República, de que aliás já é vice-presidente.  

Em primeiro lugar, o facto de ter colaborado politicamente com José Sócrates ou de ter tido uma relação de amizade com ele não a torna politicamente réproba, como suposta coautora ou cúmplice das malfeitorias de que ele veio depois a ser acusado (e por que tarda a ser julgado, para vergonha do sistema judicial). Em segundo lugar, não vejo quem possa ombrear com o seu brilhante currículo político de autarca, de deputada, de eurodeputada, de vice-presidente da AR e de membro da assembleia parlamentar do Conselho da Europa, aliando competência, seriedade, empenho e integridade no exercício de todos esses cargos públicos, como é geralmente reconhecido.

A AR merece uma presidente assim.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Sim, mas (7): Voluntarismo oneroso

1. Sendo desde há muito um firme defensor, incluindo por razões ambientais, do resgate da ferrovia de décadas de abandono político, entendo, porém, que num país que não abunda em recursos financeiros todos os investimentos públicos têm de obedecer a parâmetros de racionalidade económica em termos de custos e benefícios coletivos, não podendo ser o resultado de volutarismo orçamentalmente irresponsável.

É por isso que não pode deixar de supreender o anúncio, que a Ministra da Coesão Territorial acaba de fazer, do restabelecimento da linha do Douro no troço Pocinho -Barca de Alva, há muito abandonado, sem invocar e sem, muito menos, disponiblizar os estudos que mostram a viabilidade financeira desse pesado investimento.

Eis algumas perguntas que têm de ser respondidas pelo Ministro das Infraestruturas: Essa ligação quanto custará? E serviria para transportar quantas pessoas por dia? E qual seria o défice de exploração?

2. Se se acha que faz sentido restaurar um troço ferroviário em território de baixa densidade populacional, encerrado há anos por falta de procura, será que igual reivindicação não vai surgir em relação a outras linhas encerradas, como os vários ramais do Douro, a linha do Vouga, o ramal Viseu-Santa Comba Dão, o troço da linha da Beira Alta entre Pampilhosa e Figueira da Foz, as várias linhas do Alentejo? 

E se só aquela linha é restaurada, qual o fundamento para o privilégio?

Denunciando há muito tempo o défice de investimento público em Portugal, há, porém, uma coisa que tenho por certa: pior que a falta de investimento público é o investimento público ruinoso, delapidando os escassos recursos existentes.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Eleições parlamentares 2022 (7): O PSD dividido

1. Convencidos de que os ventos sopravam a seu favor e de que, apostando em Rangel, podiam afastar Rui Rio nas eleições diretas e modelar em seu proveito as listas eleitorais do PSD e o próximo grupo parlamentar, os seus opositores foram surpreendidos com a vitória convincente do Presidente do partido, que, ato contínuo, não hesitou em "limpá-los" das listas, aproveitando a legitimidade reforçada que os adversários internos lhe proporcionaram.

É o que se chama "ir à ã e vir tosquiado".

2. Embora legítima e, porventura justificada nas circunstâncias, a operação de "depuração" política das listas eleitorais do PSD levanta, porém dois problemas, um de teoria política e outro mais prático: (i) até onde é que, num partido de vocação governamental, não ideológico, como o PSD (ou o PS), o grupo parlamentar há de ser composto apenas por seguidores do líder do momento, inorando a diversidade política interna, com o risco adicional de grave disfunção política interna, se vier a haver mudança de líder no decurso da legislatura; (ii) se é possível realizar uma campanha eleitoral bem-sucedida, defrontado o ressabiamento, se não a a hostilidade, de muitas estruturas distritais e locais e dos seus seguidores.

Pode um general ganhar batalhas, dispensando uma parte das suas tropas?

sábado, 4 de dezembro de 2021

Campos Elíseos (5): Boas perspetivas para Macron

Definido o quadro de candidaturas às eleições presidenciais francesas de abril do ano que vem - com as "primárias" deste fim-de-semana dos Republicanos, que deram a vitória a Valérie Pécresse -, as sondagens indicam que o Presidente Macron tem boas hipóteses de renovar o seu mandato por mais cinco anos, batendo mais uma vez a candidatura da extrema-direita (Le Pen), visto que a dos Republicanos (Pécresse) não parece ter fôlego para ir à segunda-volta, onde poderia eventualmente fazer melhor do que aquela, federando toda a direta. Sem surpresa, as candidaturas da esquerda somadas não excedem os 20%!

A confirmar-se a reeleição de Macron, uma boa notícia para a França e para a União Europeia.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Estado social (9): Receita para o desastre

Este relatório do Conselho de Finanças Públicas vem suscitar mais uma vez a questão da sustentabilidade do Estado social, em especial o sistema de segurança social, mostrando a gravidade do problema num futuro não muito longínquo, face ao envelhecimento da população e redução da população ativa, por um aldo, e ao insuficiente crescimento da produtividade e do crescimento económico, por outro lado. 
O risco óbvio consiste em não termos economia bastante para o nível de Estado social existente, pelo que as contínuas propostas de reforço deste sem assegurar um melhor desempenho daquela constituem uma receita para o desastre.
Era bom que este tema fosse incluído na agenda do debate político da próxima campanha eleitoral, em vez de ser remetido mais uma vez para debaixo do tapete, como é típico entre nós.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Ai o défice (15): Degradação da balança comercial

Além do défice das contas públicas (excesso da despesa sobre a receita), que gera aumento da dívida pública, há também o défice da balança comercial (menos exportações do que importações), que gera aumento do endividamento externo. Ora, a pandemia também trouxe a degradação do défice comercial

Há dois fatores que explicam, pelo menos em parte, esta degradação: do lado das importações, a subida da cotação internacional do petróleo e do gás; do lado das exportações, a quebra do turismo, uma das principais exportações nacionais. A presente retoma do crescimento económico interno, estimulada sobretudo pelo consumo, pode também estar a ajudar ao crescimento das importações e à travagem das exportações.

Vai ser preciso esperar pela superação da crise económica provocada pela pandemia e pelo regresso da economia aos níveis de 2019 - o que se espera venha a ocorrer na primeira metade do ano que vem -, para saber se o agravamento de défice comercial externo não se deve somente a esses fatores conjunturais, mas também, como é de recear, a uma continuada degradação estrutural da competitividade externa da economia portuguesa.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Eleições parlamentares 2022 (6): A economia "vota" PS

As previsões favoráveis da OCDE para o crescimento económico em Portugal para o corrente ano e para o ano que vem não podiam ser mais lisonjeiras para o Governo do PS. 

Além de permitir superar a recessão económica da pandemia, o robusto crescimento económico previsto, sem paralelo há muito tempo, significa mais emprego, mais receita pública, menos despesa social, menos défice, menor endividamento público -, tudo isto com o bónus de uma taxa de inflação contida, longe do nível que está a atingir noutros países europeus

Cereja em cima do bolo, o relatório não deixa de mencionar o êxito na vacinação anti-Covid entre os fatores adjuvantes deste bom desempenho económico.

Não se podia ter melhor cartão de apresentação para a disputa eleitoral que se aproxima!

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Não concordo (27): Sobre o veto presidencial da despenalização da eutanásia

1. Embora lamentando o veto presidencial do novo diploma da despenalização da morte medicamente assistida (abreviadamente conhecida como eutanásia), não consigo acompanhar os protestos contra ele. Na verdade, ainda que se possa discutir se as razões invocadas pelo PR (aliás, nem todas pertinentes) bastam para justificar o veto legislativo, ele tem, porém, razão quanto à inconsistência conceptual do diploma

De facto, apesar de o art. 2º conter supostamente a definição das noções depois utilizadas, assim não sucede, todavia. O preceito-chave do diploma, que é o art. 3º, despenaliza a morte medicamente assistida, a pedido do interessado quando «em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença incurável e fatal» [negrito acrescentado]. Ora, o conceito de "doença incurável e fatal" não consta do art. 2º  (que define o conceito de "doença grave ou incurável", o que não é a mesma coisa). Acima de tudo, não faz sentido na intenção do diploma o requisito de "doença fatal", quando tal não se requere no caso de "lesão definitiva de gravidade extrema"; de resto, no nº 3 do mesmo artigo já se prescinde do requisito da "doença fatal". Em que ficamos?

Não dá para entender esta falha de rigor num diploma destes, já em segunda edição.

2. É certo que estas incongruências conceptuais poderiam não resistir a uma cuidada tarefa de interpretação jurídica e judiciária, pelo que o PR as utilizou como pretexto para um veto político, de fundo claramente ideológico, indo ao encontro da direita mais conservadora e travando a despenalização da eutanásia durante mais algum tempo.

Mas não deixa de ser igualmente evidente que os deputados que reformularam o diploma depois do juízo de inconstitucionalidade do TC deveriam saber que não podiam deixar margem ou pretexto a Belém para se prevalecer ostentatoriamente do poder de veto (que o atual Presidente tem exercido de forma assaz discricionária). Pouco cuidadosos foram e só de si mesmos se podem queixar.

Adenda
Um leitor pergunta o que vai a AR fazer do veto. Embora teoricamente o parlamento pudesse superar o veto, confirmando a lei por maioria absoluta, entendo que, dadas as razões do veto, se impõe a correção do diploma, aprovando uma terceira versão. Tudo depende evidentemente de se manter uma maioria favorável às despenalização da eutanásia no próximo parlamento -, o que nada faz temer que não aconteça.

Adenda 2
Saúde-se a reação da bancada parlamentar do PS, a dar a mão à palmatória presidencial.

Adenda 3 (1/12)
No seu editorial do Público de hoje, Manuel Carvalho destaca no veto a "astúcia" do PR; eu preferiria destacar a imperdoável incúria dos deputados.

Lisbon first (26): Circuito fechado

Todos os membros da direção agora nomeada para a CReSAP (o presidente e os três vogais permanentes) provêm da universidades de Lisboa (2 do ISCTE e 2 da FDUL), apesar de se tratar de uma resolução do Conselho de Ministros e de ter havido uma audição da AR. 

É fatal como o destino, esta tendência para as nomeações governamentais em circuito fechado dentro do universo universitário de Lisboa, como se houvesse "universidades do regime" com exclusivo de acesso a cargos públicos de nomeação. É somente mais uma vertente da atávica concentração do poder em Lisboa, como se o resto do País não existisse.

É tempo de começar a pensar em estabelecer quotas territoriais para as nomeações governamentais!

Eleições parlamentares 2022 (5): Os objetivos de Rio

1. Em relação ao último post, um leitor, que se declara do PSD, entende que Rui Rio ganhou por dizer ter melhores condições para ser primeiro-ministro e que, por isso, se terá de demitir, se não conseguir chegar ao poder, perdendo as eleições parlamentares em janeiro. Com o partido dividido quase a meio, só a vitória eleitoral o resguardará da revolta interna. 

Discordo deste argumento. Deixando de lado a questão de saber o que é que esteve por detrás da surpreendente vitória de Rio, penso ele está em melhores condições políticas do que Rangel para atingir dois objetivos importantes para o PSD: (i) impedir uma maioria absoluta do PS e (ii) apresentar uma alternativa política à reconstituição da aliança do PS com a esquerda radical.

Não é pouca coisa!

2. Penso que Rangel se desacreditou ao apontar um objetivo completamente irrealista (vitória nas próximas eleições parlamentares com maioria absoluta), recusando-se a dizer o que faria no caso de isso não se verificar e rejeitando liminarmente qualquer entendimento com o PS, enquanto Rio foi mais sério, ao admitir acordos com o PS (salvo coligação governamental), no caso de vitória de qualquer dos partidos sem maioria absoluta, assegurando a governação minoritária de qualquer deles sem ficarem reféns da extrema-esquerda ou da extrema-direita, respetivamente. 

Portanto, mesmo que o PS ganhe as eleições, como é mais provável, Rio atingirá um dos seus objetivos, se conseguir um acordo que afaste Costa da dependência em relação à extrema-esquerda e que abra caminho para algumas das reformas por ele defendidas (sistema eleitoral, justiça, SNS, etc.).

domingo, 28 de novembro de 2021

Eleições parlamentares 2022 (4): Combate ao centro

Com a surpreendente reeleição de Rui Rio à frente do PSD - o que lhe permite arrancar com mais força para as eleições de finais de janeiro -, o objetivo eleitoral do partido deixa de ser marcado pela polarização eleitoral da direita contra o PS (como seria com Rangel), para ser a conquista do centro, disputando-o ao PS. 

Este desfecho não é sem consequências quanto ao resultado eleitoral. Por um lado, a improvável hipótese de maioria absoluta do PS torna-se ainda mais distante. Por outro lado, a insistência do PS em privilegiar à partida uma aliança pós-eleitoral com o Bloco e/ou o PCP, ressuscitando a solução governativa a que o chumbo do orçamento pela esquerda radical parecia ter posto fim, dá um bom argumento político ao PSD nesse combate ao centro em que as eleições se vão tornar.

domingo, 21 de novembro de 2021

Eleiçoes parlamentares 2022 (3): Voltar ao mesmo?

1. Não dá compreender a ideia de que, se o PS ganhar as eleições sem maioria parlamentar, dará prioridade a um entendimento à sua esquerda, ou seja, com o BE e/ou o PCP.

Há dois argumentos contra essa opção de partida para as próximas eleições:

        - primeiro, depois das fundas divergências que motivaram o "chumbo" do orçamento que levou a esta crise política, não é sério admitir que um acordo de legislatura com esses dois partidos seria possível, sem cedências suscetíveis de pôr em causa o crescimento económico e a consolidação das finanças públicas;

        - em segundo lugar, uma aliança parlamentar com a extrema-esquerda implica necessariamente, como estes seis anos testemunharam, o seu veto a imprescindíveis reformas institucionais e políticas, desde a lei eleitoral ao SNS, passando pela justiça e pela economia, cujo adiamento penaliza o futuro do País.

Ou seja, mesmo que não fosse politicamente impossível, uma nova "geringonça" seria politicamente nociva.

2. Acresce que essa estratégia antecipadamente anunciada em favor de uma aliança pós-eleitoral à esquerda só prejudica as perspetivas eleitorais do PS, quer porque o priva do argumento do voto útil em relação ao eleitorado de esquerda, quer porque o pré-anúncio dessa preferência afasta o eleitorado de centro - que decide as eleições! -, que associa uma reedição da "Geringonça" a aumento contínuo da despesa pública corrente, carga fiscal elevada, medíocre crescimento económico, salário médio  baixo e congelamento das necessárias reformas.

Com uma mensagem destas, ao mesmo tempo que desiste implicitamente da luta pela maioria absoluta, o PS arrisca-se a dar sentido ao voto na extrema-esquerda e a alienar para a abstenção ou, mesmo, para o PSD muitos votos suscetíveis de serem atraídos por uma aposta convicta numa vitória robusta capaz de assegurar a estabilidade governativa de que o País precisa para a superação sustentada dos estragos da crise pandémica.

sábado, 20 de novembro de 2021

Corporativismo (22): Captura do Estado


Por larga maioria, incluindo os votos do PS e do PSD, a Assembleia da República rejeitou um projeto de integração da Caixa de Previdência de Advogados e Solicitadores (CPAS) no sistema geral de segurança social.

Ora, sabendo-se que a CPAS constitui uma sobrevivência corporativista do Estado Novo (como desde há muito tenho mostrado, por exemplo AQUI) e tendo as demais caixas profissionais e sindicais do antigo regime sido integradas no sistema geral de segurança social estabelecido na Constituição - que, aliás, estipula que se trata de um sistema «único» -, o que é que justifica que os advogados mantenham, à margem da Constituição, o privilégio exclusivo de uma caixa de pensões própria, 45 anos depois da CRP e do fim do corporativismo?

A resposta é simples: porque, como é notório, se trata de um grupo profissional politicamente muito influente, com forte presença nos partidos políticos, no Governo e no parlamento, influenciando por dentro, pese embora o manifesto conflito de interesses, as decisões políticas que os afetam.  

Um caso manifesto de captura do Estado por um grupo profissional poderoso!

Adenda
Numa entrevista no recente nº 31 da revista Sollicitare da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, o antigo ministro da Segurança Social, Paulo Pedroso, afirma, com toda a razão, que «a CPAS é um entorse corporativo no sistema de segurança social português». Pelos vistos, porém, os principais partidos e as instituições da República convivem bem com esse entorse corporativo no sistema democrático vigente...

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Praça da República (59): Enriquecimento injustificado

Com a aprovação parlamentar, por unanimidade, da lei que pune a falta de declaração e de justificação de acréscimos patrimonais significativos por parte dos titulares de cargos públicos, termina bem a longa novela política da punição do chamado "enriquecimento ilícito" , na qual a direita e a extrema-esquerda parlamentar insistiram durante muito tempo na punição penal direta do enriquecimento injustificado, liminarmente presumido de ilícito, solução que acabou por ser declarada inconstitucional, como não podia deixar de ser.

A solução agora adotada, desta vez sem atropelo do princípios do Estado de direito, segue a linha que defendi AQUI há uma década: 

«Tal como propôs o PS, o que se pode considerar como crime é a falta de declaração oficial do património, quando obrigatória (titulares de cargos políticos). Mas também pode criar-se para os servidores públicos uma obrigação de indicar a fonte de qualquer acréscimo patrimonial significativo, cuja justificação pode e deve ser exigida pelo menos a todos os titulares de cargos políticos, durante o exercício do cargo e após o seu final, durante um ou dois anos. Depois, se houver incumprimento dessa obrigação, ele pode ser criminalizado e punido. Mas primeiro têm de ser criada a obrigação de justificação. Nesse caso não é o suposto enriquecimento ilícito que é crime, mas sim a violação de um dever legal de justificar os acréscimos patrimoniais - o que é muito diferente[negrito acrescentado]

Foi pena terem-se desperdiçado 10 anos de debate fútil, com muita tralha populista à mistura.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Outras causas (8): Muito a desejar


Se é verdade que, no que se refere às energias renováveis no seu conjunto (hídrica, eólica, solar, etc.), Portugal não faz má figura a nível europeu, como se pode ver AQUI, já no que respeita à energia solar em particular a posição de Portugal, segundo o quadro acima (extraído DAQUI) é surpreendentemente modesta, limitando-se a ficar em 33º lugar no ranking mundial da produção de energia per capita, ficando muito abaixo de outros países com condições bem menos favoráveis do que nós.

Na exigente corrida relativa à "transição climática" e à neutralidade carbónica, esse handicap quanto à energia solar é muito penalizador do desempenho do País. 

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Praça da República (58): Estado de emergência sem convocação da AR dissolvida?

1. Suscita-se a questão de saber se, na pendência da dissolução parlamentar (que vai ser decretada daqui a duas semanas), seria possível o PR decretar o estado de emergência apenas com a autorização da Comissão Permanente da AR, sem necessidade de convocar uma reunião plenária da própria AR para confirmar essa autorização, como a Constituição ordena.

Considerando o disposto na Constituição, tenho por certas duas coisas: (i) que o estado de emergência, que aliás ninguém antecipa, pode ser decretado pelo AR com a AR dissolvida, mas que (ii) não basta a autorização inicial da Comissão Permanente, devendo ser imediatamente convocada uma reunião da própria AR, apesar de dissolvida, para confirmar a autorização. 

Tal é a opinião desde há muito sustentada na CRP Anotada de que sou coautor, junto com J. J. Gomes Canotilho.

2. As razões para esta solução são duas:

   - primeiro, a dissolução parlamentar não extingue o mandato dos deputados, que por isso podem ser convocados em situações excecionais, quando a Constituição imponha a reunião da AR, visto que a Comissão Permanente só substitui o plenário no exercício dos poderes expressamente enunciados na Constituição e nos termos nela previstos;

   - segundo, e mais importante, o estado de emergência só se justifica quando seja necessário suspender o exercício de direitos, liberdades e garantias constitucionais; ora, se para restringir o seu exercício se exige sempre uma decisão ou autorização legislativa da AR, por maioria de razão ela se impõe no caso, muito mais grave, de suspensão de direitos.

Por isso, mesmo que a Comissão Permanente da AR não convocasse tal reunião, caberia ao PR fazê-lo, aliás no uso de uma faculdade constitucional.

domingo, 14 de novembro de 2021

Eleições parlamentares 2022 (2): Fundamentalismo

Sem prejuízo dos limites próprios dos "governos cessantes" com orçamento rejeitado (AQUI referidos), não concordo com a tese de que, uma vez marcadas eleições parlamentares - e mesmo antes de iniciada a campanha eleitoral - o Governo em funções, apesar de não estar demitido, fica impedido de fazer inaugurações de obras ou dar notícia das medidas tomadas para resolver as questões que se lhe deparem. Parece que o Governo se prepara para tal autorrestrição.  Mas a norma legal sobre neutralidade e imparcialidade eleitoral das entidades públicas não pode ser interpretada do modo radical com que tem sido pela Comissão Nacional de Eleições.

O que essa norma quer dizer é que o Governo e os seus membros, enquanto tais, não podem intervir no debate eleitoral nem tomar posição pública sobre as eleições ou sobre as candidaturas. Quando muito, além disso, se forem candidatos a deputados, os membros do Governo também devem suspender a sua atividade governativa pública. Tudo o mais é, a meu ver, uma limitação ilegítima da atividade governativa. Salvo se demitido, a convocação de eleições não manda o Governo para um convento...

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Ai Portugal (8): Assim não vamos lá

1. Este gráfico, colhido AQUI, evidencia uma das razões pelas quais Portugal vai perdendo posições no ranking do PIB dos países da União -, que é o baixo nível do investimento público.

É certo que segundo o rejeitado orçamento para 2022 se previa um aumento significativo do investimento público em relação a 2019, não somente do que é financiado por fundos da UE (nomeadamente o FRR), mas também do que é financiado com recursos nacionais. Mas, mesmo que o investimento projetado venha a ter lugar apesar da rejeição do orçamento, Portugal, embora deixando a posição de "lanterna vermelha" que tinha em 2019, apenas passará a ser o quarto País com menor investimento público em percentagem do PIB, muito abaixo da média da União, e muitíssmo abaixo da generalidade dos países do Leste europeu, que assim vão continuar a ultrapassar-nos na corrida da convergência dentro da UE

2. Ora, sendo notório que Portugal não tem uma carga fiscal propriamente baixa e tem um nível comparativamente alto de despesa pública, o défice de investimento público só pode dever-se ao facto de haver uma proporção demasiado elevada de despesa corrente (salários, pensões e outras tranferências, etc.). O que se gasta a mais em despesa corrente não sobra para investimento.

Assim não vamos lá. Nem o FRR nos vale...

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Praça da República (57): Reformas em prol da estabilidade governamental

1. É quase certo que o partido que vencer as próximas eleições antecipadas, previsivelmente o PS, não vai obter maioria parlamentar por si só ("maioria absoluta"). Até agora, um partido sozinho só conseguiu maioria parlamentar em três das quinze eleições parlamentares (1987, 1991 e 2005).

Ora, sendo claro que a extrema-esquerda não aceita os compromissos necessários para assegurar finanças públicas e economia sãs (como mostrou a sua rejeição do orçamento e a interrupção da legislatura) e sendo igualmente claro o afastamento de uma "grande coligação" com o PSD, parece que estamos condenados a um novo governo minoritário do PS. 

O mesmo se poderia dizer de uma eventual vitória do PSD, com maioria relativa - visto que uma maioria absoluta se apresenta ainda mais longínqua do que no caso do PS -, igualmente sem possilidade de alianças para um goveno maioritário, agora que o CDS está em vias de desaparecimento, a IL ainda é pequeno e o Chega não é aliado recomendável.

São más, portanto, as perspetivas sobre estabilidade governamental, fator importante da estabilidade das finanças públicas e do desempenho da economia. Podemos estar em risco de um novo período de governos de curta duração e de escassa capacidade governativa.

2. De facto, o fado dos governos minoritários sem acordos de apoio parlamentar consistentes é o de serem incapazes de realizar o seu programa, serem forçados a cumprir leis aprovadas contra a sua vontade, de acordo com a agenda política das oposições e correrem o risco de verem rejeitado o principal instrumento de governação (o orçamento) ou vê-lo estropeado pelas oposições reunidas, para não falar da hipótese extrema de moção de censura.

Que reformas do sistema político poderiam favorecer a estabilidade governativa, permitindo que os governos cumpram os seus programas e submetendo-os, sem desculpas, ao julgamento eleitoral no final do mandato?

3. A primeira reforma deveria consistir em tornar menos rara a possibilidade de maiorias absolutas, baixando o seu limiar eleitoral para cerca de 40% (em vez dos atuais 44-45%), através da divisão dos atuais megacírculos eleitorais (Lisboa, Braga, Porto, Aveiro, Setúbal), de tal modo que nenhum círculo pudesse eleger mais do que uma dezena de deputados. Um círculo eleitoral nacional de um décimo dos deputados (23) permitiria dar utilidade aos votos nos partidos menores em qualquer parte do território nacional (o que hoje não sucede) e assegurar-lhes um mínimo de representatividade parlamentar.

É tempo de acabar com uma situação em que os dois maiores círculos eleitorais elegem muito mais de um terço dos deputados e que no maior deles (Lisboa), baste menos de 2% para eleger um deputado, mesmo sem indêntica votação a nível nacional. Dada a tentência de aumento dos deputados desses dois círculos, por causa da deslocação populacional, é um convite para uma crescente fragmentação parlamentar

4. Não bastando essa refoma, obviamente, para garantir governos de maioria, importa também conferir aos governos minoritários melhores condições de governabilidade e durabilidade do que as que dispõem hoje, reduzindo a possibilidade de serem vítimas de alianças oportunísticas das oposições ("coligações negativas").

Par esse fim, poderiam ser pensadas as seguintes soluções:

    - moção de censura "construtiva", afastando moções de censura que não apresentem uma alternativa quanto ao novo governo e ao seu programa, destinadas somente a derrubar o governo em funções, mediante aliança das oposições sem nada em comum entre si;

    - necesidade de assentimento governamental para aprovação das propostas de alteração parlamentar do orçamento que aumentem a despesa pública prevista no proposta de lei do orçamento (ou seja, extensão da atual "lei-travão" à própria aprovação do orçamento);

    - admissão de moção de confiança governamental sobre a votação do orçamento, implicando a sua aprovação a ratificação do orçamento e a sua rejeição, a demissão do Governo, dando assim ao orçamento a importância fulcral que ele tem na condução da política governamental.

5. Todas estas reformas carecem de maioria especialmente qualificada (2/3) e, salvo a primeira, exigem revisão constitucional. Por enquanto, os dois maiores partidos (PS e PSD) ainda somam mais de 2/3 no parlamento - o que não é comum nos demais países da União -, mas a tendência para a fragmentação parlamentar pode pôr em causa essa situação, dificultanto a possibilidade de tais reformas, se adiadas. 

Era conveniente que os dois principais partidos refletissem sobre o assunto, em prol da estabilidade e da responsablidade política no País, cada vez mais um "bem público" de elevado valor.

As atuais circunstâncias são propícias a essa reflexão, dado não se saber que solução governativa vai sair das próximas eleições e não havendo possibilidade de veto político dos partidos menores, como condição de entendimento governativo com um dos dois partidos centrais (como tem sucedido até agora com a reforma do sistema eleitoral). 

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Bicentenário da Revolução Liberal (35): Apresentação de resultados

1. Assinalando a recente publicação do III volume da série de monografias sobre a Revolução Liberal, de Vital Moreira e José Domingues, sobre a vida e obra de José Ferreira Borges (Porto Editora), a Universidade Lusíada / Porto, em cujo programa de investigação a obra se integra (com apoio da C. M. Porto), vai proceder à apresentação conjunta da trilogia no próximo dia 11, quinta-feira, pelas 11:30, no novo campus da Universidade (Rua de Moçambique, Aldoar).

Além dos autores, vão intervir na sessão o Prof . J. Adelino Maltez (Universidade de Lisboa), apresentando a referida obra sobre Ferreira Borges, o diretor da revista JN /História, Pedro Olavo Simões, o Reitor da Universidade Lusíada, A. de Oliveira Martins, e o presidente da Comissão Nacional para as Comemorações do Bicentenário do Constitucionalismo, Guilherme de Oliveira Martins.

A entrada é livre. 

2. Não se limitou a esta trilogia bibliográfica a nossa contribuição para o bicentenário da Revolução Liberal, a qual passou também - como se pode ver nos cartazes abaixo - pela organização de dois colóquios no âmbito das comemorações municipais do Porto em 2020 - cujas atas já foram (num caso) ou vão ser (noutro caso) publicadas - e pela publicação de vários estudos em revistas especializadas (na Espanha e no Brasil) e de outros artigos de divulgação na revista História do Jornal de Notíciais, tarefa que, aliás, contamos prosseguir.

Apraz-nos apresentar os resultados do compromisso de honrar, pela investigação, a Revolução Liberal de há 2o0 anos, em que desde 2017 nos empenhámos, como académicos e como cidadãos.


sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Eleições parlamentares 2022 (1): O dilema eleitoral do PS

1. A principal questão a que o PS vai ter de responder nos próximos quatro meses, até às eleições - e quanto mais cedo, melhor -, é a seguinte: depois do falhanço da "Geringonça" como fórmula de governo - pois foram os próprios "aliados" que deliberada e friamente derrubaram o Governo -, e caso as eleições não alterem substancialmente o atual quadro parlamentar (como as primeiras sondagens deixam entender), vai o PS insistir nessa fórmula, tornando-se de novo refém do BE e do PCP quanto à duração do mandato, ou vai optar por alianças de geometria variável com outros partidos, conforme os temas em causa, incluindo quanto ao orçamento, como era tradicional nos governos minoritários do PS? 
A resposta antecipada a esta questão pode ser importante para os próprios resultados eleitorais do PS, pois a opção de muitos eleitores vai depender da perspetiva de recondução, ou não, da aliança privilegiada à esquerda e do consequente "afunilamento" ou abertura das opções governamentais
 
2. No campo socialista há observadores que defendem que o PS integra o mesmo "campo político" que o PCP e o BE, ou seja, a esquerda, com a qual deve governar (como defende hoje Pedro Adão e Silva, no Expresso), em oposição ao campo da direita, liderado pelo PSD. 
Só que até 2015 prevalecia no PS o entendimento de haver três campos políticos: a extrema-esquerda (BE e PCP), o centro-esquerda ou esquerda moderada (PS) e a direita (PSD e CDS). O previsto crescimento substancial do Chega nas próximas eleições - provavelmente o principal beneficiário da antecipação das eleições - vai, aliás, dar lugar a um quarto campo político, a extrema-direita, tão diferenciada da direita moderada como a extrema-esquerda do PS. 
Neste quadro político, reduzir o espectro partidário à bipolarização entre Esquerda e Direita, no singular, constitui uma simplificação grosseira da realidade política. Em Portugal, a chamada Esquerda declina-se no plural (as esquerdas), e existem mais profundas diferenças políticas e programáticas entre o PS e as demais esquerdas do que entre o PS e o centro-direita. 
Se se considera má solução uma grande coligação de governo ao centro - opinião de que compartilho, pois entendo que deve haver sempre uma alternativa de governo na oposição -, com que lógica se defendem soluções que implicam coligações ou protocoligações à esquerda, onde há muito menos convergência de posições e que, aliás, põem em causa a autonomia estratégica do PS, como mostrou a experiência destes anos?

Adenda
Um leitor dá uma solução: o PS anunciar que só encara uma nova aliança política à esquerda com base num compromisso assinado - que provavelmente o próprio PR vai exigir - , segundo o qual não seria posto em causa nem o rigor das finanças públicas nem a competitividade da economia, «deixando ao Bloco e ao PCP o ónus de recusar essa fórmula governativa». Não é mal pensado...

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Assim vai a politica (9): Supina irresponsabilidade política

1. Na reunião do Conselho de Estado que deu parecer favoravel à dissolução parlamentar, só os representantes do BE e do PCP (Francisco Louçã e Domingos Abrantes, respetivamente) votaram contra. Ora, foram esses mesmos partidos que "decretaram" a dissolução, ao rejeitarem o orçamento, quando o PR tinha repetidamente advertido que a rejeição do orçamento implicava dissolução parlamentar, por abrir uma crise política sem outra saída viável. 

Esta flagrante contradição, recusando aceitar as consequências necessárias das suas opções,  revela mais uma vez a supina irresponsabilidade política da esquerda radical.

2. É certo que provavelmente (e desejavelmente!) vão ser eleitoralmente punidos, por se juntarem à direita para rejeitar o orçamento, privando muitos portugueses de menores rendimentos das vantagens que ele lhes trazia. 

Mas se forem os vencidos das eleições, ao mesmo tempo que dão chances eleitorais  à direita e à extrema-direita, a si mesmos o devem. Terão o que levianamente buscaram.

Aplauso (21): Um compromisso oportuno

1. É de saudar este enfático compromissso de António Costa sobre a política orçamental. Parafraseando (em Inglês e tudo!) a célebre proclamação de Mario Draghi, como governador do BCE, sobre a estabilidade do euro, o Primeiro-Ministro, deixou claro que o Governo fará «tudo o necessário para assegurar finanças públicas sãs».

Este compromisso é especialmente relevante quando o Governo viu rejeitado o orçamento pela extrema-esquerda parlamentar (PCP e BE), por não terem conseguido valer alterações orçamentais (e outras) que implicavam um substancial aumento da despesa corrente permanente, nomeadamente em pensões. 

O compromisso de Costa quando à robustês das finanças públicas assinala também implicitamente o esgotamento da fórmula governativa da chamada "Geringonça", pois os referidos partidos jamais poderiam subscrever esse compromisso, que consideram uma imposição "neoliberal" de Bruxelas contra a "soberania orçamental" nacional.

2. Mas as "boas contas" não são o únic0 desafio de um Governo social-democrata a fim de garantir o avanço do Estado social (saúde, pensões e outras prestações sociais, educação, etc.).  

Tão importante quanto isso é o bom desempenho da economia, em termos de criação de emprego qualificado, de melhores salários, de competividade externa, de coesão económica interna, de convergência no seio da União Europeia. Por isso, seria bom que António Costa pudesse também assumir um compromisso de fazer tudo o necessário para assegurar uma economia saudável.

Adenda
Um leitor observa que a frase do líder do PS também é indiretamnte uma resposta à opinião de Pedro Nuno Santos, segundo a qual a "Geringonça" não é uma experiência  esgotada e que a Direita (incluindo certamente o que ele considera a direita do PS...) não deve dá-la como morta. Bem observado!

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Não concordo (25): Iliteracia constitucional

1. Há comentadores (por exemplo, aqui e aqui) que defendem que o Governo deveria demitir-se ou ser demitido, em consequência da dissolução parlamentar, alegadamente por deixar de estar sujeito a escrutínio da AR.

Trata-se, porém, de uma ideia descabida, constitucional e politicamente. 

Constitucionalmente, nada obriga o Governo a demitir-se em consequência da rejeição do orçamento ou da dissolução da AR; e também nada autoriza o Presidente da República a demitir o Governo, pois se trata de um poder excecionalíssimo, aliás até agora nunca exercido por nenhum Presidente. Um pouco mais de literacia constitucional, precisa-se! 

Politicamente, seria prejudicial para o País que, a somar ao parlamento dissolvido, se viesse acrescentar um governo demitido, limitado a poderes de gestão corrente. Nas atuais circunstâncias, a paralisia governamental é um risco que o País não deve correr.

2. Também não existe nenhuma relação necessária entre dissolução parlamentar e demissão do Governo. É óbvio que Constituição impõe a demissão do Governo, logo que se inicie a nova legislatura resultante das eleições antecipadas, mas, até lá, o Governo mantém-se em funções com os seus poderes ordinários.  

O que tem sucedido na maior parte dos casos é o inverso, ou seja, a dissolução parlamentar em consequência da demissão do Governo (por exemplo, em 2011, 2002, 1987); mas em 2004, houve dissolução parlamentar sem demissão presidencial do Governo (embora se tenha depois demitido).

Também agora a dissolução parlamentar ocorre sem prévia demissão do Governo e não tem de a arrastar.

3. Não procede o argumento de falta de escrutíni0 político do Governo.

Primeiro,  a dissolução parlamentar limita muito os poderes do Governo, privando-o desde logo dos poderes legislativos que dependem daquela, caducando também as autorizações legislativas de que dispunha. Perde igualmente o poder de propor alterações ao orçamento em vigor. Deixa também de poder nomear membros das aurtoridades reguladoras, que depende de parecer prévio do parlamento.

Em segundo lugar, não é verdade que se extinga o escrutínio parlamentar sobre o Governo. Na verdade, na pendência da dissolução parlamentar mantém-se em funções a Comissão Permanente da AR - uma espécie de miniparlamento -, à qual compete exercer o poder parlamentar de «vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e acompanhar a atividade do Governo e da Administração». 

Em terceiro lugar, como defendo no post anterior, há limites implícitos aos Governos cessantes, que decorrem de um princípio constitucional de lealdade institucional.

Por último, na pendência da dissolução parlamentar, mantém-se em pleno o poder "moderador" do Presidente da República, para frear os abuso dos Governos cessantes, incluindo o poder de veto legislativo (e de outros decretos do Governo), e em última instância o poder de demissão, em caso de estar em causa o «regular funcionamento das instituições».

Também aqui, um pouco mais literacia constitucional ajudaria à análise política.

[revisto]

Não concordo (24): Limites do Governo cessante

1. Há quem defenda que apesar da rejeição parlamentar do orçamento, o Governo poderia decretar a subida extraordinária das pensões que aquele previa, se para tal houver margem na verba das pensões do orçamento em vigor, que vai ser transitoriamente prorrogado, por duodécimos mensais.

Discordo em absoluto.

Primeiro, o Governo não pode desafiar a rejeição parlamentar do orçamento, decretando à revelia dela uma medida prevista naquele. Isso vale para a subida extraordinária das pensões e para o aumento das remunerações dos funcionários públicos e outras medidas semelhantes, num montante superior a mil milhões de euros. 

Num sistema de governo de tipo parlamentar, como o nosso, o contempt of Parliament, mesmo estando este dissolvido, é politicamente muito grave!

2. Em segundo lugar, embora a dissolução do Parlamento não arraste consigo a demissão do  Governo, a verdade é que este se tornou um "Governo cessante", terminando automaticamente o seu mandato com a tomada de posse do novo parlamento após eleições. Por isso, não é politicamente admissível que um Governo à beira do fim e sem controlo parlamentar dos seus atos legislativos, possa criar nova despesa pública, para cativar eleitorado, encargo que recairá imediatamente sobre o Governo que lhe suceder na elaboração de novo orçamento. Eis uma "herança" que o Governo cessante não pode deixar ao próximo (mesmo que previsivelmente possa ser do mesmo partido...)!

Se o Governo ousasse oportunisticamente ir por aí, só poderia encontrar pela frente uma justificadíssimo veto presidencial.

[Nota: foi alterado o título do post]

Adenda
Um leitor duvida que o Governo resista à tentação de dar uma "chapada" política ao Bloco e o PC, dando aos pensionistas e funcionários públicos (muitos milhares de votos...) aquilo que lhes era oferecido no orçamento que eles rejeitaram. Podendo concordar que ambos os partidos merecem ser devidamente punidos pela sua irresponsabilidade política, entendo, porém, que o Governo não deve expor-se a críticas justificadas de não respeitar a rejeição parlamentar do orçamento.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Não dá para entender (30): Uma "geringonça" reforçada ?!

1. Há quem equacione a hipótese de que uma das soluções de governo pós-eleitorais, se o PS ganhar sem maioria absoluta, como em 2019, é ressuscitar a "Geringonça", através de um acordo formal de legislatura com o BE e/ou o PCP. Mas custa tomar a sério esta ideia.

Então não é evidente que, com a rejeição do orçamento, ambos os partidos mostraram, mais uma vez, que não aceitam a disciplina orçamental e a sustentabilidade da dívida pública, como obstáculo intransponível  aos seus projetos maximalistas, e que o PS não poderia negociar nenhum acordo de governo de legislatura sem metas vinculativas nessa matéria?  

Depois do que se passou, não vale a pena especular com hipóteses que supõem a transformação dos partidos extrema-esquerda em parceiros leais de uma governação responsável no quadro da União Europeia, que eles claramente rejeitam.

2. Há outra objeção contra essa hipótese: depois da derrota política infligida ao Governo pelos dois partidos da extrema-esquerda, interrompendo a legislatura, não se vê que vantagem pode ter o PS em admitir que o voto nesses partidos ainda pode contribuir para uma solução estável de governo à esquerda. Pelo contrário: a mensagem política do PS deveria ser a de que, depois de mais esta desfeita da extrema-esquerda, o único voto que garante um governo de esquerda é no PS.

Só por masoquismo político é que o PS pode premiar a irresponsabilidade política do BE e do PCP no derrube do Governo, em aliança com a direita, com uma proposta de "casamento" governamental duradouro com quem mostrou não ser parceiro político confiável.

Decididamente, a alternativa para o falhanço da "geringonça" não é a sua reedição em versão reforçada. A "Geringonça" já foi!

[revisto]

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Concordo (19): O Presidente e o analista político

1. Não acompanho as críticas de alguns comentadores (por exemplo, aqui e aqui) quanto à decisão presidencial de dissolução parlamentar e convocação de eleições antecipadas. No seu lugar, eu teria decidido do mesmo modo.

Primeiro, dados os termos bélicos da rejeição do orçamento na AR, não haveria a mínima hipótese de obter a aprovação de um segundo orçamento. Em segundo lugar, sem orçamento, o Governo não pode executar os investimentos do PRR (ao contrario que alguns defendem infundadamente), estando limitado ao plafond das despesas efetuadas sob o atual orçamento, com graves prejuízos para o País. Terceiro, e mais importante, o chumbo do orçamento socialista às mãos da extrema-esquerda parlamentar implica obviamente o fim da fórmula governativa vigente nesta legislatura (governo minoritário do PS sustentado, em última instância, pela demais esquerda parlamentar), não havendo manifestamente nenhuma solução de governo alternativa no atual quadro parlamentar.

Embora o Governo não se demita (nem tenha de fazê-lo), ficamos, portanto, num situação de crise governativa. Dados os prejuízos desta situação para o País, quanto mais depressa houver novas eleições, novo governo e novo orçamento, melhor.

2. Cumpre reconhecer, aliás, que, tendo advertido desde cedo que, no seu entendimento, uma hipotética rejeição do orçamento implicava a dissolução paramentar, o Presidente definiu claramente o quadro institucional para decisão dos partidos no Parlamento, nomeadamente dos que mais poderiam ser mais penalizados eleitoralmente, se rejeitassem o orçamento, justamente o BE e o PCP.

É óbvio, porém, que MRS não receava seriamente a rejeição do orçamento e contava que o seu pré-aviso de dissolução parlamentar inibisse o aventureirismo do PCP e do BE, para mais tendo em conta as importantes cedências governamentais. É manifesto que se enganou, não tendo previsto devidamente a que grau de irresponsabilidade e de masoquismo político pode descer a extrema-esquerda. 

Se o Presidente andou bem institucionalmente, falhou rotundamente o analista político que com ele coabita em Belém.

Adenda
Também não subscrevo o comentário de um leitor, que acusa MRS de ter "explorado uma oportunidade para afastar um Governo de esquerda e dar chances à direita de regresso ao Governo". Parece-me indiscutível que (i) o PR fez tudo (talvez demais) para "forçar" a aprovação do orçamento e que (ii) a direita, liderada pelo PSD, não dá ainda sinais de poder oferecer a "alternativa forte" que MRS vem defendendo e que claramente antecipava somente para 2023. Infelizmente, estas são umas eleições que ninguém desejava e cujas consequências ninguém pode antecipar.

Adenda 2 
Outro leitor objeta que há uma alternativa de governo no atual quadro parlamentar, que seria uma coligação PS-PSD. Mas trata-se obviamente de uma hipótese politicamente inviável e, mesmo, ilegítima, pois o PS travou a disputa eleitoral de 2019, cuja vitória lhe deu o Governo, na base da rejeição absoluta de qualquer solução de "bloco central". Não havendo uma situação de emergência nacional que justificasse a quebra desse compromisso, seria o total descrédito da política e dos partidos em causa. Não é por acaso que ninguém aventou essa hipótese...

Adenda 3
Um leitor pergunta porque é que o PR não deixa o Governo do PS a governar em duodécimos, prescindindo de orçamento para 2022. Embora tal hipótese tenha sido admitida por alguns comentadores pouco informados, ela não tem base constitucional nem teria legitimidade democrática.  A extensão do orçamento de um ano ao ano seguinte em duodécimos é uma solução de recurso, em caso de atraso do orçamento ou da sua rejeição, tendo neste caso o Governo obrigação de apresentar novo orçamento ato contínuo, salvo demissão ou dissolução parlamentar, em que essa obrigação passa para o Governo seguinte. Ora, como se mostrou acima, a hipótese de aprovação de novo orçamento no atual quadro parlamentar está fora de causa.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Assim vai a política (10): RIP


Fonte da imagem AQUI,

1.  Les jex sont faits! 

Juntando-se ao Bloco na rejeição do orçamento, e apesar das cedências enormes que conseguira obter do PS, o PCP derruba inapelavelmente o Governo e abre uma crise política de resultados imprevisíveis, mas em qualquer caso com graves prejuízos para recuperação económica do País, pela incerteza política criada e pelo atraso no lançamento dos investimentos financiados pelo PRR da UE. Isto sem falar na interrupção das importantes reformas legislativas em curso, como, por exemplo, a despenalização da eutanásia ou a reforma das ordens profissionais.  

Mais uma legislatura que não chega ao fim, agravando as estatísticas da instabilidade política em Portugal, com a agravante que esta crise exclui uma opção de governação que parecia estar aberta desde 2015

2. Tal como em 2011, os dois partidos da esquerda radical juntam-se a toda a direita para negar ao Governo do PS um instrumento essencial de governação, apesar de deste vez denegarem a muitos portugueses cujos interesses dizem defender (pensionistas, funcionários públicos, pessoas de baixos rendimentos) uma substancial melhoria das suas condições de vida, que decorria das propostas iniciais e das cedências posteriores do Governo a ambos os partidos.

Mais uma vez, porém, prevaleceu o radicalismo doutrinário e o atavismo "antissocial-democrata" da esquerda radical. 

3. Acresce que nada indica que ambos os partidos venham a ser politicamente premiados por esta opção nas eleições subsequentes, pelo contrário. Os cidadãos em geral não gostam de crises políticas e o eleitorado de esquerda em especial deve penalizar quem o privou de alguma conquistas que o orçamento lhe assegurava.

O PCP, em especial vai seguramente dar mais um passo em direção ao declínio eleitoral que há muito o corrói. Mas, aparentemente, prefere o suicídio à asfixia eleitoral que erradamente atribui à aliança com o PS. 

Decididamente, está-lhes "na massa do sangue". Mas, ao porem fim abruptamente à solução governativa que os comprometia e ao regressarem ao estatuto de "partidos de protesto", o Bloco e o PCP desobrigam o PS do desvio à esquerda que ensaiou em 2015, em homenagem à "geringonça". RIP!

Adenda 
Um leitor acusa-me de "preconceito antigeringonça". Mas não se trata de nenhum preconceito. Ao longo destes anos expus reiteradamente neste blogue (por exemplo AQUI e AQUI) as razões por que entendia que a aliança privilegiada do PS com os partidos à sua esquerda carecia de bases políticas minimamente sólidas, não somente por causa das profundas diferenças ideológico-programáticas, mas também pela compulsiva irresponsabilidade política da esquerda radical (como agora se confirma). A sua longevidade foi conseguida à custa (i) da renúncia do PS a reformas políticas necessárias (sistema eleitoral, justiça, sistema fiscal, governo das autarquias locais, carreiras especiais na função pública, "condição de recursos" nas prestações sociais não contributivas, etc.) e (ii) do continuado aumento da despesa pública corrente (salários, pensões, etc.), à custa do investimento público e da manutenção de uma carga fiscal excessiva, limitando o crescimento económico e pondo em risco a sustentabilidade das finanças públicas. Era curioso averiguar os custos orçamentais imputáveis à "Geringonça" acumulados neste seis anos...

Adenda (2) 
Num artigo no Público, Boaventura de Sousa Santos - que não pode ser acusado de preconceito contra a "Geringonça" -, observa pertinentemente que os dois partidos à esquerda do PS se sentem «sempre mais confortáveis na oposição contra a direita [e contra o PS, poderia acrescentar-se] do que na construção de políticas de esquerda». Aí está o busílis da questão...

domingo, 24 de outubro de 2021

Assim vai a política (9): O fim de uma ilusão

1. Depois das substanciais cedências adicionais do Governo, o PCP só pode manter o seu propósito de chumbar o orçamento, se já o tinha decidido antecipadamente, qualquer que ele fosse, e só manteve a aparência de negociações com "reserva mental" (o BE, esse, desde cedo que se pôs de fora...).

Em qualquer caso, o PCP será o grande vencedor do processo orçamental: viabilizando o orçamento, obtém importantes ganhos políticos, impensáveis à partida, impondo um claro revés político ao Governo, que sairá debilitado desta provação, vencido pela chantagem política comunista; chumbando o orçamento, derruba inexoravelmente o Governo e pode alterar o xadrez político nacional, abrindo um ciclo de imprevisível instabilidade política.  

Depois de ter sido o grande derrotado das recentes eleições autárquicas, acelerando o seu declínio, o PCP torna-se inesperadamente o principal protagonista da vida política naci0nal. Chapeau!

2. Em qualquer caso, quem perde sempre é o País. 

Havendo orçamento nos termos oferecidos ao PCP, teremos mais despesa pública e mais rigidez do mercado laboral, sacrificando a consolidação das contas públicas e  a competitividade da economia, respetivamente, e isto sem contar com as novas alterações que a votação na especialidade pode trazer. 

Havendo rejeição do orçamento, teremos crise política e convocação de eleições antecipadas, com uma prolongada fase de governação com capacidade política e orçamental diminuída, incapaz de fruir plenamente do Programa de Recuperação e de Resiliência, até à formação de novo Governo (não se sabe com que base partidária e com que orientação política) e à aprovação de novo orçamento (não se sabe com que maioria), num prazo incerto.

Se é de evitar a incerteza política imediata da segunda opção, não podem, porém, desvalorizar-se os custos duradouros de um mau orçamento. 

3. Em qualquer das hipóteses, tudo parece indicar o fim da solução governativa de governo minoritário do PS, baseada na aliança privilegiada com os partidos da sua esquerda parlamentar, incluindo em matéria orçamental, prescindindo de alianças de geometria parlamentar variável, como era tradicional nos governos minoritários do PS antes da experiência da "Geringonça" de 2015. 

Se as divergências político-ideológicas de fundo (União Europeia, alianças internacionais, economia de mercado, disciplina das finanças públicas, etc.) impedem uma verdadeira coligação de governo do PS com os partidos da "esquerda da esquerda", esta provação orçamental vem mostrar que uma tal aliança também não é possível em termos de gestão económica e orçamental sustentável, frustrando a tentativa de os trazer para o "arco da governação". 

Ao optar, à partida, por negociar exclusivamente com a sua esquerda parlamentar, o Governo tornou-se inapelavelmente refém do seu sectarismo doutrinário e do seu oportunismo político, expondo a sua própria vulnerabilidade política. 

Adenda 
No parecer do Conselho das Finanças Públicas sobre a proposta do orçamento lê-se que «uma comparação com o ano de 2019 revela que mesmo removendo da despesa os efeitos das one-off, o impacto do PRR e as “medidas de emergência”, a despesa primária prevista para 2022 situar-se-á 3,4 p.p. do PIB acima do valor pré-pandemia.» Ora, com a despesa adicional resultante das cedências do Governo ao PCP, o excesso será ainda maior. Um tal ritmo de crescimento da despesa primária, em grande parte despesa corrente, é pura e simplesmente insustentável.

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Ai o défice (15): O sorvedouro do SNS

1. Penso que entre as piores cedências que o Governo pode fazer para tentar assegurar a passagem do orçamento para 2022 estão as que aumentam estruturalmente a despesa pública, comprometendo orçamentos futuros, como é o caso da criação de novas carreiras nos serviços públicos, nomeadamente a carreira de "técnico auxiliar de saúde" no SNS, a instância do BE, com toda a despesa pública adicional que isso comporta, sem nenhuma avaliação prévia da necessidade dessa nova carreira.

Surpreende-me que o Ministro das Finanças tenha validado essa cedência, mesmo que conte limitar os seus efeitos financeiros no ano que vem. O problema é o que vem depois. Duvido que esta medida avançasse com Mário Centeno...

2. Conto-me entre os que entendem que os problemas do SNS são menos os do seu sempre referido subfinanciamento do que os problemas de organização e de gestão que não permitem utilizar os recursos disponíveis de forma eficiente, desde logo por falta de mecanismos de avaliação de desempenho de profissionais e de instituições e de remuneração de acordo com o desempenho.

Seria bom acreditar nas palavras da Ministra da Saúde quando declara que «cada euro investido no SNS significa mais cuidados de saúde». A verdade é que não parece haver correspondência direta entre o avultado aumento do orçamento do SNS desde 2015 e um acréscimo côngruo de prestações de saúde (consultas, exames, cirurgias, etc.). O SNS não tem deixado de perder quota de cuidados de saúde para a medicina privada.

Julgo, por isso, que se justifica um profundo spending review do SNS, com vista a identificar os fatores de ineficiência e a inventariar os possíveis ganhos de eficiência. Despejar mais milhões de euros, mantendo tudo na mesma, não constitui solução.

3. Também não percebo por que é que é preciso criar uma nova categoria remuneratória, sob o título enganador de "dedicação plena",  para assegurar que os médicos do SNS não podem desempenhar cargos de direção em instituições de saúde privados e para limitar o envolvimento de médicos com responsabilidades de direção no SNS nas instituições privadas em que acumulam. 

Tais incompatibilidades há muito deveriam estar instituídas por lei, como decurso normal do óbvio conflito de interesses que elas envolvem, em prejuízo do SNS. Pagar para as assegurar, aliás incompletamente, é um contrassenso!...

Adenda
Um leitor comenta que a redução do horário semanal de trabalho para 35 horas, decidida pelo Governo do PS em 2015, foi altamente prejudicial para o SNS, não somente pelo aumento de custos em novo pessoal e em horas extraordinárias para compensar essa medida, mas também por ter facilitado a acumulação do pessoal do SNS com tarefas privadas, onde são remunerados em função do desempenho. Não podia concordar mais, como tenho dito desde o início (por exemplo, AQUI e AQUI).

Adenda (2)
Outro leitor denuncia aquilo que qualifica como o "cinismo institucionalizado" do elogio oficial do SNS, quando a adesão generalizada à ADSE (um subsistema público paralelo ao SNS...) e a seguros de saúde privados, apesar de ambos serem financiados pelos utentes, revela uma "fuga generalizada" ao SNS por parte de quem tem meios para o fazer, o que, a prazo, pode levar muita gente, que deixou de depender do SNS, a rebelar-se contra o fardo fiscal do seu elevado custo orçamental. Penso que é um risco real.