sábado, 26 de junho de 2004

Actores de um golpe-de-teatro

1. Líderes europeus
Depois do sucesso da aprovação da Constituição europeia os líderes da UE não podiam permitir-se falhar a designação do sucessor de Romano Prodi à frente da Comissão Europeia. Eliminados os mais fortes candidatos, por efeito do veto cruzado da França e do Reino Unido, só restava um compromisso sobre um candidato de segunda linha, que não suscitasse resistências fortes. O Financial Times escrevia ontem: «Mr Barroso is one of the least known of EU leaders, but his relative obscurity has allowed to emerge as a compromise candidate.» Esse mesmo perfil permitiu também esquecer inclusive o seu alinhamento com Washington na guerra do Iraque. Além disso a sua escolha condiz com a relativa desvalorização da Comissão em favor das instituições intergovernamentais, a que se tem vindo a assistir na UE e que a Constituição não deixa de acentuar.

2. Durão Barroso.
Ao contrário de Guterres, há 5 anos, Barroso decidiu agarrar a oportunidade que se lhe ofereceu pela conjugação de circunstância inesperadas, sem se importar excessivamente com a estabilidade governativa. Além do prestígio e importância do cargo, ele liberta-se das dificuldades que o Governo enfrentava (que a recente derrota eleitoral testemunhou) e das escassas probabilidades de levar a bom termo o seu mandato governativo. Em Bruxelas não tem de aturar Paulo Portas, nem de decidir a candidatura presidencial do PSD entre Santana Lopes e Cavaco Silva, nem disputar o próximo ciclo eleitoral. Por outro lado, não lhe será difícil fazer melhor em Bruxelas do que os seus medíocres antecessores à frente da Comissão europeia. Enfim, ouro sobre azul! Há momentos assim na vida dos políticos medianos a quem a fortuna protege.

3. O Presidente da República
É evidente que Sampaio não poderia deixar de aceitar a dispensa do primeiro-ministro. Constitucionalmente, o Presidente poderia tomar a oportunidade para dissolver o parlamento e convocar eleições antecipadas, em vez de nomear outro governo. Mas, havendo na AR uma maioria de suporte a um novo executivo da mesma área, compreende-se que tenha prevalecido a segunda alternativa, tanto mais que certamente ela era uma condição de Barroso para ir para Bruxelas, colocando sobre o Presidente a culpa por uma eventual recusa do cargo. Não vai ser uma solução do agrado da oposição nem da maioria da opinião pública, desde logo porque, caso os papéis fossem inversos, provavelmente haveria dissolução parlamentar. Mas sendo conhecido o pensamento do PR acerca do seu papel constitucional em relação aos governos e sobre a primazia da estabilidade política, essa é a solução mais coerente como uma leitura mais parlamentar da froma de governo.
Cabe também ao PR aceitar, ou não, o candidato a primeiro-ministro que lhe seja indicado pelo PSD, tendo aqui uma margem de decisão (de veto, não de escolha obviamente), tanto maior quanto o indigitado não se submeteu a sufrágio eleitoral como "candidato a primeiro-ministro". Todavia, pela mesma razão, não é muito provável que ele objecte o candidato que lhe seja proposto, independentemente de ser ou não do seu agrado, incluindo Santana Lopes, por mais inquietação que este suscite, inclusive dentro do PSD.

4. Santana Lopes
A confirmar-se ser ele o próximo primeiro-ministro (por mais inverosímil que isso pareça), saiu-lhe a sorte grande. É o maior beneficiário da saída de Barroso. Passará de presidente da CM de Lisboa em dificuldades a Primeiro-ministro do País, sem ter de disputar o cargo. Com isso virá também a presidência do partido, em congresso que não tardará. Optará seguramente por uma ruptura com o estilo e a orientação política do primeiro-ministro cessante, incluindo o alívio da política de austeridade e disciplina financeira (Manuela Ferreira Leite pode ir arrumando os papéis). O PSD aplaudirá em geral a mudança de liderança de governo e de política, esperançado que um novo ciclo político dará um novo fôlego à coligação e aliviará a pressão que a contundente derrota nas eleições europeias provocou no seio do Partido.
Resta saber o que ele fará na questão das eleições presidenciais: se envereda por uma fuga em frente, promovendo a sua própria candidatura, aproveitando a sua posição de líder do partido, ou se preferirá o compromisso intrapartidário, deixando campo livre para o avanço de Cavaco Silva (supondo que este aceitará ir sob a égide de Santana...).

5. PS
Apanhado de surpresa pelo súbito desenlace do processo, resta ao PS condenar a "fuga" do primeiro-ministro, defender porventura sem excessivo entusiasmo a realização de eleições antecipadas e adaptar-se rapidamente ao novo Governo e ao novo ciclo político. Todo este episódio é obviamente um contratempo para o PS, sobretudo pela renovação e refrescamento que traz à coligação governamental e pela previsível mudança de política. Terá de reformular o seu discurso de oposição, visto que o novo primeiro-ministro (se for Santana) enjeitará expeditamente os aspectos mais contestados da herança do anterior. Provavelmente a disputa pela liderança do PS irá também ser reavivada pela mudança ocorrida no partido do governo.

6. António Vitorino
É afastado ingloriamente da presidência da Comissão Europeia, para que estava talhado como poucos. Ironicamente vê o único apoiante expresso da sua candidatura à presidência da Comissão Europeia acabar por ocupar ele mesmo o desejado lugar. É uma das vítimas deste processo. Depois de Bruxelas, o seu caminho político continua insondável.