Na Madeira, ainda não se processou, no plano dos factos, a transição da ditadura para a democracia: é uma constatação que qualquer pessoa com formação democrática mínima pode fazer. Mas é o que nunca fizeram, até hoje, os órgãos de soberania que, ao longo de décadas, têm contemporizado e sido cúmplices com uma situação de excepção que atenta contra os valores consagrados na Constituição da República.
Tudo se passa como se uma parte do território nacional pudesse subtrair-se ao regime democrático que nos rege. E como se isso não violasse o próprio conceito de Estado unitário ou alguns princípios essenciais do Estado de direito -- que asseguram o respeito pelas liberdades e garantias dos cidadãos, incluindo o pluralismo das opiniões.
A menoridade democrática da Madeira é entendida, por vezes, como uma fatalidade incontornável ou um fruto espúrio, uma consequência perversa dessa conquista democrática que são as autonomias. Mas estarão as autonomias à margem da lei fundamental do país? O preço a pagar pelas autonomias (cada vez mais alargadas ao longo de sucessivas revisões constitucionais) é a impunidade do regime jardinista? Eis uma questão a que os mais altos responsáveis políticos do Estado se têm furtado a responder.
A «obra» deixada por Alberto João Jardim parece caucionar a sua inimputabilidade política. Mesmo sem pôr em questão a importância física dessa «obra» (aliás altamente discutível em termos de desenvolvimento sustentado de uma região e com custos terríveis para as gerações vindouras), alguém admitirá, porém, a bondade de regimes autoritários ou totalitários (como os de Hitler ou Estaline) em nome da «obra» edificada pelos respectivos ditadores? A falta de alternância democrática da Madeira poderá ser evocada como normal e positiva em nome da «estabilidade», mesmo que essa estabilidade se confunda já com aquela que conhecemos durante o salazarismo?
A governamentalização da sociedade civil e a sua asfixia pelos poderes públicos, a desresponsabilização dos actores políticos que fazem «obra» sem assumir os compromissos devidos aos seus custos (e, ainda por cima, sufocam as liberdades) não é normal num Estado de direito democrático. Trata-se de uma efectiva monstruosidade. Mas é uma monstruosidade que não provoca grandes incómodos entre os admiradores continentais de Jardim (antes pelo contrário) nem parece ser suficiente para mobilizar de forma consequente os seus opositores.
Em relação à Madeira vivemos uma espécie de sono da razão democrática. Só que é um sono cujo vírus contamina a consciência e a vivência da democracia em Portugal. Se aceitamos como normal ou até motivo de elogios (e imitação) o que se passa na Madeira, que impede que se pense o mesmo relativamente ao resto do país?
Vicente Jorge Silva