quarta-feira, 3 de novembro de 2004

As duas Américas

Disse-se que a América estava mais dividida do que nunca -- ou que nunca ninguém a dividira tanto como Bush. Embora a vitória de Bush tivesse correspondido ao cenário mais provável, as manchas a vermelho e azul do mapa dos resultados eleitorais recortaram essa evidência de uma forma particularmente dramática, talvez inesperada.
Até há uma década atrás, a divisão entre republicanos e democratas não correspondia exactamente às fronteiras entre dois mundos: o cosmopolitismo de Nova Iorque, Nova Inglaterra ou Califórnia e o isolacionismo da América profunda (recorde-se a antiga implantação dos democratas no sul segregacionista). Bush exacerbou a polarização cultural da América em dois universos estanques. E é esse isolacionismo da América fechada sobre si mesma, temerosa do mundo e dos seus perigos reais ou imaginários, prisioneira do complexo de cerco mas, ao mesmo tempo, empenhada num missionarismo redentor dos pecados alheios, que emerge da reeleição de Bush.
Agora se verá até onde pode chegar a aliança do fundamentalismo evangélico com a «corporate América» que Bush e Cheney representam face a um mundo que, em geral, os rejeita (o mundo para além da América e o mundo da América moderna que votou Kerry). Detendo a totalidade do poder executivo e legislativo e com a oposição democrata lançada numa nova crise de identidade, a reeleita Administração republicana vê reconfortada a sua legitimidade e absolvidas todas as «aventuras» (ocupação do Iraque, Patriot Act, Guantanamo e Abu Ghraib, baixas de impostos para os mais ricos, défice astronómico...) através das quais foi revelando a sua verdadeira face. Ninguém sente um arrepio pela espinha abaixo?

Vicente Jorge Silva