Não vi o debate entre Portas e Louçã na SIC-Notícias, mas confesso que fiquei surpreendido com o teor serôdio, hipócrita e moralista de algumas reacções -- nomeadamente no «Público» -- , assentando baterias contra Louçã e absolvendo Portas na questão do aborto.
Não concordo que o facto de se ser ou não casado ou ter ou não filhos deva legitimar ou diminuir o direito de opinião de quem quer que seja. Mas se alguém, como Portas, se arvora em paladino do direito à vida e pretende condenar em bloco, e em nome de um dogma fundamentalista, as posições favoráveis à interrupção da gravidez, então o mínimo que se lhe deve exigir é que seja coerente e consequente entre as suas opções privadas e as suas posições públicas.
Portas não é um qualquer cidadão anónimo, é uma figura pública e um líder político. Não tenho nada a ver com o seu comportamento na esfera privada e íntima e considero intolerável que as suas opções nesse campo possam constituir um factor de diminuição dos seus direitos políticos e civis. Mas a partir do momento em que Portas (ou outro cidadão com responsabilidades na esfera pública) invoca critérios de superioridade moral para condenar sumariamente comportamentos alheios e ele próprio não é consequente com eles na sua vida privada, entramos já noutro campo.
Admitir que Portas possa dizer tudo o que lhe vem à cabeça (incluindo comparar a interrupção da gravidez com o assassinato), ou que tem todo o direito de o fazer mas não pode ser confrontado com as suas contradições, eis o que também me parece intolerável. E hipocrisia pura e simples.
Insisto: tenho todo o direito de contrapor a quem condena as minhas opções no plano moral as suas contradições e inconsequência, sobretudo se se trata de alguém que pretende armar-se em campeão de uma moralidade absoluta. A propósito, penso que ainda consta no Livro de Estilo do «Público» um princípio básico: um jornalista não tem o direito de violar a privacidade e a intimidade de alguém, mas se esse alguém é uma figura pública cujo comportamento privado contradiz radicalmente as normas que pretende impor publicamente aos outros (julgando os outros moralmente e politicamente em nome disso), a função do jornalista é denunciar essa contradição. Ora, no caso do debate referido, como negar a Louçã o direito de apontar a Portas a evidência de uma contradição, embora utilizando eventualmente termos menos felizes? Além disso, foi ou não Portas quem se atreveu a abrir as hostilidades, julgando-se resguardado por um estatuto de total e absoluta impunidade? Louçã deveria ter ficado calado?
Em Portugal, tem-se o hábito de celebrar as excelências da democracia britânica e Paulo Portas será certamente um dos que participarão com fervor nessa celebração. Mas se Portas fosse chefe do Partido Conservador inglês, alguém concebe que poderia dizer o que disse sem ser confrontado pelos políticos da oposição e pelos media? Lembram-se porventura do caso de Michael Portillo, um político brilhante que foi coagido a renunciar a candidatar-se à liderança dos «tories» por causa de notícias sobre os seus costumes sexuais na adolescência? Condeno, obviamente, os códigos de conduta dos tablóides britânicos. Só peço é que não pretendam fazer-me passar por hipócrita e por parvo. E que Louça não passe por demónio apenas por lembrar que Portas não tem o direito em vestir-se de anjo.
Vicente Jorge Silva