Bloguistas que vêm a este blog - já leram o livro da procuradora Maria José Morgado e do jornalista José Vegar «O inimigo sem rosto – fraude e corrupção em Portugal», editado pela Dom Quixote?
Então leiam-no sem demora neste Natal e recomendem-no ao sapatinho net de dez amigos, com a encomenda de passarem a mais dez em cadeia... É que os portugueses precisam mesmo de ler este livro, se querem ser cidadãos de parte inteira e não meros súbditos em democracia virtual numa república putrefacta. É que não se compreende nada do que se está a passar neste país se não se realiza a que ponto a traficância, a fraude e a corrupção penetram hoje fundo na malha institucional, partidária, empresarial, judicial, policial, militar, mediática, clubística, etc…
O livro deixa entrever os circuitos, simples e sofisticados, e os processos, dos mais ancestrais ao mais recente grito tecnológico, que servem aos traficantes e criminosos para enredar nas suas teias governantes, políticos, funcionários, autarcas, magistrados, polícias, jornalistas – estes são, sintomaticamente, alvos preferenciais, entre todos os necessários para olear a máquina da corrupção e da subversão.
O livro explica o efeito multiplicador e amplificador do alcance da fraude e corrupção, tanto pelos montantes envolvidos e mercadorias e serviços traficáveis, como pela extensão das redes de corrupção, que o processo de globalização desencadeou no mundo e em Portugal desde os anos 90. Este factor novo muda qualitativa e quantitativamente a fraude, a corrupção, a permissividade e o laxismo que sempre grassaram neste país, historicamente poupado a puritanismos luteranos. E este factor precisa de ser realmente entendido e assimilado pela gente honesta e incorruptivel que resta, entre governantes e outros politicos, juizes, magistrados, advogados, policias, funcionários, jornalistas ou empresários……
Mas não é fácil, nem evidente. Ainda há dias me chocou a insensibilidade a esta nova e aterradora dimensão por parte de uma velha amiga, impoluta, inteligente e experiente magistrada, que me asseverava que a única coisa que tinha mudado era o poder da imprensa: «corrupção, pedofilia, tráfico de influências sempre houve e haverá, agora está é tudo a ser mais denunciado e conhecido…». Esta minha amiga, embora ferrada pelo corporativismo sindical que espartilha tantos juízes e procuradores, até é mulher viajada, aberta e atenta (deu-lhe agora para se tomar de simpatias bloquistas, desforrando-se de sucessivos desapontamentos com o PS…).
Se esta pensa assim, como pensarão muitos outros magistrados e agentes do sistema da Justiça, confinados a redomas profissionais, sociais e políticas mais asfixiantes? Já bem basta que, por deficiência de formação ou deformação, invoquem e apliquem por sistema códigos e leis sem referência à Constituição e ao direito internacional ou europeu que a própria Constituição torna direito interno e, assim, tenham feito proliferar prisões preventivas intoleravelmente prolongadas, escutas telefónicas sem controle e metodologias de investigação e interrogatório ofensivas dos mais elementares direitos humanos; tudo sem que os tribunais funcionem melhor e com mais celeridade; e sem que as vítimas vejam feita Justiça. Congressos da Justiça, como o recentemente realizado, servirão para começar a mudar alguma coisa? Como hão-de juizes, procuradores, policias, advogados, e políticos também, entender que, com as novas formas e dimensões da corrupção, da traficância e da criminalidade organizada, de facto se estão a subverter os fundamentos do Estado de direito, da democracia e do exercício da cidadania? Porque se não entenderem, como é óbvio também não reagem.
Fiz um teste à minha amiga – «achas inocentes e inofensivas as teias de dependências que se criam por essas repartições públicas fora, incluindo as mais estratégicas, por exemplo no Ministério das Finanças e nas Polícias, entre uns personagens, em regra mulheres, que aparecem regularmente a vender jóias de ouro ou prata, roupa, quadros, antiguidades, electro-domésticos, etc… às prestações e que assim mantêm agrilhoados a contas-correntes, de montantes por vezes superiores a vários anos de salários, milhares de funcionários do Estado?» Resposta: «Mas isso é o que há de mais banal e normal, há anos que lá na Procuradoria e em todos os tribunais por onde passei toda a gente compra assim coisas a umas senhoras que aparecem a vender!»…
(Para quem deva e possa investigar, desde logo à PGR - porque não começar pela própria PGR? Quem deve a quem, quanto deve, o que se compra, quem vende, quem está por detrás de quem vende, como se paga?).
Há no livro da procuradora Maria José Morgado e do jornalista José Vegar matéria escaldante que merece ser escalpelizada numa Assembleia da República que se preze, num país que se preze, mesmo com uma maioria de direita apostada em impedir e descredibilizar Comissões de Inquérito. O silêncio da AR diante deste livro é, cada dia que passa, mais ensurdecedor. Como é óbvio, não vou parar de recomendar o livro aos meus camaradas no PS. Em especial aos avessos a acreditar em cabalas…
Não, não fiquem a pensar que o livro fala na Casa Pia, embora tenha umas referências avulsas a redes de tráfico de crianças e de pornografia infantil e a como se valem da internet. De facto, não é preciso ler o livro para saber que há muitas maneiras para apanhar «moscas»: há quem seja comprável por dinheiro, por mulheres (homens também, mas há menos mulheres em posições de poder e mais facilmente sucumbem a dinheiro), e até, como ilustra o caso Casa Pia, há quem tudo faça e a tudo se exponha para, abjectamente, abusar de meninos. E há, ainda, quem nem precise sequer de ser comprado, pois à partida já está no bolso dos corruptores e chantagistas, pelo terror de ser posto fora do armário, de ser recordado em deambulações pelo Parque, de lhe ser arrancada máscara e cabeleira …os traficantes nem precisam de pagar em «cash» ou em espécie para porem «varejeiras» destas ao seu serviço, afadigadas a urdir estratagemas de encobrimento e diversão.
O livro avivou-me à memória uma mão-cheia de casos que vi aflorados na imprensa nos últimos meses. Depois do impacto das noticias iniciais, houve seguimento político ou judicial? A lista não é, de modo nenhum, exaustiva e reporta-se apenas a casos que, se resolvidos pelo regular funcionamento do Estado, isto é das instâncias fiscais, policiais ou judiciais, podiam ajudar a Ministra das Finanças a arrecadar mais receitas sem ter que saldar património público ou vender ao desbarato à banca estrangeira créditos que o Estado já devia ter cobrado e ainda vai ter de cobrar:
- 57 % das empresas não pagavam impostos, queixava-se a Dra. Ferreira Leite há um ano. E agora, já pagam? A percentagem subiu ou desceu? As cartas que o Ministério das Finanças acaba de anunciar como estando a ser mandadas aos devedores ao fisco não são a prova de que nada se fez, entretanto? E como se obriga a pagar os grandes devedores, já que só pequenos é que se intimidam com bilhetinhos admoestadores da Dra. Ferreira Leite?
- E os gabirus do futebol que não pagam impostos, já pagam? Os jornais dos últimos dias relataram que não, com a história dos proventos de jogos patrocinados pela Santa Casa da Misericórdia que, não se percebe por que bulas, vão primeiro parar aos cofres dos clubes, em vez dos cofres do Estado… Muito esbracejou, em vão, o major dos electro-domésticos que saiu, de carapuça enterrada, em defesa dos gabirus. E o «Publico» de ontem conta mais uma história que vira do avesso qualquer honesto contribuinte e comfirma a bandalheira a que isto chegou, sem que nenhuma instância estatal se incomode, actue ou assuma responsabilidades: prescreveram as dividas ao fisco de que tão gostosamente se gabou o Bibi do Benfica. Bastaram uns oficios morosos das autoridades fiscais, uns policias distraídos, uns advogados especializados em empatar processos de execução fiscal e uns juízes diligentes a declararem tribunais incompetentes... E assim se evaporaram diafanamente dívidas substanciais aos cofres do Estado, como por magia se evaporou na PJ o substancial cadastro do personagem (alguma autoridade política, judicial ou policial se deu ao trabalho de reagir a uma reportagem do «Independente», há uns meses atrás, sobre tal desaparecimento?...)
- Onde estamos com a investigação anunciada sobre o caso do ex-ministro que tinha em contas na Suiça as poupanças de um esforçado sobrinho taxista? Não era certamente com o modesto vencimento de um luso autarca que se amealhavam tais poupanças…. Ou é da minha vista, ou o ex-autarca/ ex-ministro está tão confiante no «sistema» que nem sequer se deu ao trabalho de desaparecer do passeio público e até escreve nos jornais a atacar o seu desastrado sucessor por que não alinha num negócio aquático já devidamente isaltinado?
- E todas aquelas investigações cometidas à Inspecção Geral de Finanças e a DCICCES da PJ, sobre as redes que funcionavam nas Repartições de Finanças a toque de subornos geridos pelo ex-funcionário Rui Canas, que confirmou em entrevista ao «Correio da Manhã» ter desde há muito virado «consultor» dedicado ao negócio de «limpar impostos»? Estão indiciados ou acusados os clientes de tais serviços de limpeza ? Quem serão eles?
- E como vai a investigação aos assaltos a Repartições de Finanças em que foram roubados suportes informáticos com as listas dos maiores devedores ao fisco? E as reconstituições por «back up» são para se fazerem antes de prescreverem os respectivos processos ? Ou é para irem juntar-se aos das dívidas do Bibi a que o erário público vai dizer «bye-bye»?
A sucessão de perguntas acabrunhou-me e deixou-me às voltas com uma dúvida: pelo estado a que isto chegou, ele ainda haverá Estado?
Ana Gomes