quinta-feira, 8 de janeiro de 2004

De novo o lenço de cabeça islâmico

No Turing Machine, Porfírio Silva contesta a minha posição e defende a proibição francesa do véu islâmico nas escolas. Infelizmente não tive conhecimento de um anterior post seu sobre o mesmo assunto, pelo que só agora me é dado comentar a sua posição.
O seu ponto de vista converge no essencial com o argumento feminista, sobretudo francês, embora não só. A proibição teria por razão de ser e justificação libertar as jovens islâmicas da opressão, religiosa e sexual, que o uso do lenço de cabeça significa para elas. Se elas não usam livremente esse atavio, a proibição legal de o usarem significa uma libertação.
Sucede que, mesmo não pondo em causa a tese da "opressão", eu não acredito em libertações à força, nem por via legal. Certamente que existem fenómenos de opressão "comunitária", que devem ser combatidos e punidos, como toda e qualquer violação de direitos fundamentais (sou favorável à vigência dos direitos fundamentais também nas relações entre particulares, cabendo ao Estado impedir e punir essas violações). De resto, esses fenómenos não existem somente no islamismo, mas virtualmente em todas as religiões, mesmo as menos fechadas (por exemplo, é livre a opção pelo sacerdócio quando as crianças entram nos seminários?). Por isso apoio todas as medidas legislativas e administrativas para punir o acto de forçar alguém a usar símbolos ou vestes religiosas.
Mas não acredito que todas as jovens islâmicas, ou sequer a maior parte delas, usem o lenço porque forçadas. Esse argumento não tem apoio nos factos conhecidos. Por isso, enquanto houver quem, livremente, quiser usar símbolos religiosos em público, sem que isso lese ninguém, não vejo por que é que não há-de poder fazê-lo, inclusive nos estabelecimentos públicos. Isso sucede em todos os países democráticos, sem escândalo ou conflito de maior.
Não se trata de "relativismo cultural"; trata-se de respeitar o direito à diferença pacífica e de privilegiar a liberdade individual (mesmo que condicionada por qualquer "obscurantismo religioso"), quando inofensiva. Ora a quem é que ofende o uso do lenço islâmico ou do kippa judaico ou da cruz cristã?
Obviamente isto não coonesta os fenómenos de proselitismo agressivo ou de utilização de factores religiosos com objectivos racistas. Mas, para combater os abusos de uma liberdade não se deve suprimir essa liberdade. Ou seja, para "libertar" quem usa o lenço forçadamente não se torna necessário proibi-lo a toda a gente, mesmo a quem o usa por convicção religiosa. Há maneiras menos radicais e porventura mais eficazes de alcançar aquele objectivo.
Lembro-me do radicalismo por exemplo dos que, entre nós, em 1910 proibiram os sacerdotes de usar vestes religiosas fora das igrejas e do extremismo dos que queriam em 1975 libertar o povo do "obscurantismo de Fátima", atacando as peregrinações. O resultado não foi propriamente exaltante. Entre o absolutismo proibicionista - claramente autoritário - e o relativismo individualista e social, eu prefiro claramente este.
Por outro lado, expulsar à força para fora da escola pública a diversidade religiosa é o caminho mais directo para a proliferação de escolas religiosas privativas, aliás tendencialmente pagas pelo Estado. E isso seria conferir o maior dos triunfos às posições comunitaristas e fundamentalistas.
Eis o fundamento das minhas posições nesta matéria. Mas não conto evidentemente convencer o meu opositor. Nestes temas as precompreensões de cada um não são facilmente contornáveis. O mais que podemos é racionalizar os argumentos e explicitar os valores por detrás deles. Foi o que aqui tentei de forma sumária.

Vital Moreira