Foi o meu estimado colega e amigo prof. João Vasconcelos Costa, no seu blogue "Professorices" - dedicado especialmente aos temas do ensino superior, que desde há muito o interessam como a poucos -, que me chamou a atenção para o despautério ontem aparecido no "Público", intitulado "Não Pagamos",
Não, não é nenhum texto de algum dirigente estudantil contra as propinas, o que seria trivial. O seu autor é um tenente-coronel na reserva, radicalmente crítico da oposição estudantil às propinas, o que em si também não seria digo de especial atenção. Eu próprio critiquei a atitude e o radicalismo das formas de luta estudantis nos últimos tempos.
O que choca no referido texto é o facto de o autor ter aproveitado a ocasião para um discurso retintamente reaccionário acerca das lutas estudantis contra o Estado Novo, quando aliás os estudantes não lutavam contra as propinas (tanto ou mais pesadas como hoje), mas sim por valores tão pouco venais como a liberdade e a democracia, o fim da guerra colonial, a democratização e a autonomia da Universidade.
Veja-se esta inacreditável passagem desse texto, digna de qualquer saudosista do regime autoritário:
«Subverteu-se [depois do 25 de Abril de 1974] toda a casta de autoridade fazendo-a filha de práticas "fascistas"; conotou-se a ordem e a disciplina com normativos ditatoriais e instalou-se no córtex das pessoas que elas só tinham direitos e deveres nenhuns. Finalmente promoveram-se a lugares de responsabilidade pessoas que pelo seu passado, ou criaram anti corpos relativamente às organizações que tutelam ou estão à partida diminuídos ou inibidos de exercerem os seus cargos. Por exemplo um célebre estudante que por várias vezes fugiu à frente dos cassetetes da polícia e mais tarde veio a ser Ministro da Administração Interna, ou o cidadão que aquando da crise académica de 1969, aquando da inauguração da faculdade de matemática em Coimbra se gabava de ter "apalpado" o fundo das costas ao então Presidente da República e mais tarde, feito Secretário de Estado.»
É evidente a referência directa a, respectivamente, Alberto Costa e a Alberto Martins (antigos dirigentes estudantis que chegaram a ministros no regime democrático, em governos do PS), com algumas falsidades à mistura, como a alegada participação do segundo em qualquer humilhação física de Américo Tomás.
Nesta mesma linha, o autor poderia ter acrescentado vários outros casos de perigosos agitadores estudantis dos anos 60-70 que chegaram a altos cargos políticos no regime democrático, incluindo, acima de todos, um que chegou mesmo a Presidente da República (entenda-se: Jorge Sampaio)! Como é que Portugal pode estar sujeito a ter nos mais altos cargos políticos (que deveriam estar reservados para pessoas bem formadas) duvidosas personagens que desafiaram a autoridade legítima do Estado Novo, as cassetetes da polícia de choque e o seu braço protector, a PIDE !? De, facto todos deveriam ser «inibidos de exercerem os seus cargos», como estatui o zeloso tenente-coronel.
Trata-se de um discurso revoltante, cujo aparecimento está porém em sintonia com os sinais dos tempos que correm. Independentemente dos critérios editoriais do "Público", é inacreditável como um discurso retintamente provocatório e odiento como este (note-se a chocante referência à «fuga à frente das cassetetes da polícia») pode ser escrito e publicado hoje em Portugal num jornal sério (ainda por cima escrito num Português periclitante). Decididamente, o revisionismo ideológico da ditadura, aliás com cobertura em certas esferas governamentais de hoje, ainda está para nos reservar desagradáveis surpresas como esta...
Tens razão, João, é caso para um "salto de indignação" -, e de revolta!
[Na imagem: Coimbra, 1969]
Vital Moreira