Na minha qualidade de deputado eleito pelas listas do Partido Socialista, apresentei a seguinte declaração de voto sobre a última revisão constitucional.
Votei globalmente a favor da revisão constitucional, não apenas por disciplina partidária mas também porque me revejo no essencial das alterações aprovadas. Votei, todavia, contra outras, nomeadamente no que se refere às autonomias insulares. E tenho dúvidas de fundo relativamente à filosofia e aos procedimentos que presidiram à adaptação da Constituição portuguesa ao futuro texto constitucional europeu.
Sobre este último ponto, e apesar da minha identificação plena com um projecto federal europeu – diferenciando-me, por isso, das posições assumidas pelo Partido Comunista Português, o Bloco de Esquerda e o Partido Ecologista Os Verdes –, não me conformo com o défice democrático actualmente existente no funcionamento das instituições europeias. Encarar a Europa como uma fatalidade e não como um desígnio assumido e desejado voluntariamente pelos portugueses constitui uma contradição e uma perversão do contrato estabelecido entre as partes. Qualquer alteração do pacto anterior, a nível constitucional, entre os portugueses e a Europa, deveria ser precedido de um referendo.
Quanto ao princípio das autonomias insulares, sempre o defendi, antes mesmo do 25 de Abril. E precisamente por coerência com esse princípio considero que a experiência vivida do regime autonómico, especialmente na Madeira, deveria ter suscitado uma atitude menos condescendente, menos táctica e menos eleitoralista do que aquela que foi adoptada nesta revisão constitucional, nomeadamente pelo Partido Socialista.
Sempre fui a favor da autonomia como um valor em si, mas constato que a prática autonómica na Madeira se tem traduzido num exercício de poder autocrático que desvirtua e corrompe não apenas o princípio da própria autonomia mas também regras essenciais do funcionamento do Estado de direito democrático.
A autonomia é um direito que tem de ser assumido em pleno. Não pode ser algo que caucione a fuga aos deveres e às responsabilidades para com a Constituição e o todo nacional. E muito menos algo que exista numa mera base de conflito e crispação permanente com as instituições da República, como ainda agora o Presidente do Governo da Madeira e outros responsáveis regionais acabam de confirmar.
Na Madeira, ao antigo autoritarismo do poder central sucedeu um autoritarismo regional e pessoal que, em muitos aspectos, chega a ser tão antidemocrático e opressivo como o que vigorava durante o salazarismo. O poder local encontra-se claramente instrumentalizado pela subserviência ao poder “centralista” de quem protagoniza o Governo da Região. E sob a bandeira do poder autonómico, na Madeira, praticamente toda a sociedade se encontra governamentalizada e asfixiada por uma liderança política vigente há mais de um quarto de século. É a autonomia virada do avesso e convertida no oposto do que deveria ser.
As liberdades, os direitos e as garantias que sustentam a Constituição da República não podem ser sacrificados no altar de abstracções ou tacticismos conjunturais, motivados por qualquer cedência a inegociáveis chantagens políticas ou interesses eleitorais de curto-prazo. É fundamental reflectir sobre a perversão do regime autonómico na Madeira e sobre as condições que têm impedido um verdadeiro pluralismo político e uma efectiva alternância democrática naquela região.
A atribuição de direitos acrescidos às autonomias insulares não deveria ser feita sem a ponderação, a clarificação e a concretização dos correspondentes deveres e responsabilidades políticas, sejam quais forem as cautelas e reservas introduzidas na presente revisão constitucional (em particular no que se refere às futuras leis eleitorais das Regiões Autónomas). Aliás, as atitudes agora reafirmadas pelos principais responsáveis do poder político regional madeirense constituem – se acaso ainda fosse necessário – um inequívoco desmentido à boa-vontade dos deputados que viabilizaram as alterações introduzidas nesta revisão.
Lisboa, 25 de Abril de 2004
Vicente Jorge Silva