«A má-criação é uma constante no nosso dia-a-dia e um atavio dos portugueses. As pessoas insultam-se e berram em qualquer circunstância independentemente da gravidade do facto, do lugar em que se encontram ou da pessoa a atingir. Porque alguém teve uma condução menos correcta o(a) outro(a) abre o vidro e lança obscenidades ao(à) faltoso(a). Porque a polícia se sente lesada nos seus privilégios, chama "gatuno" a um ministro. Porque os universitários não querem pagar as propinas, chamam "ladrão" ao reitor. Porque há uma arruaça as televisões estão lá e transmitem os palavrões dos arruaceiros. Porque o árbitro decidiu mal, insultam-no à exaustão. O palavrão e o insulto são usados por pais em frente às crianças, por "cavalheiros" a senhoras, por polícias a ministros, pelo presidente da região autónoma da Madeira a quem o incomode. A provocação ou a arruaça surgem por "dá cá aquela palha".
A minha visceral repulsa ao palavrão cedeu lugar, ao longo da minha vida, a uma atitude racional de que de tanto ser dito e repetido por qualquer um, não importa o posto, o palavrão já não tem significado nem produz efeito.
Nos meus 12, 13 anos, recordo-me de ir a correr com os meus irmãos à janela para ouvir os impropérios que lançava à sua volta uma pobre mulher demente e alcoólica que subia diariamente a minha rua por volta do meio-dia.
- Vem aí a Amelinha, dizíamos uns aos outros.
(...) De facto os impropérios eram inócuos: a mulher disparava-os sem direcção. Até que um dia, um cãozito num portal, assustado talvez com a algazarra, ladrou-lhe. No seu desbragamento grita-lhe a desgraçada com o dedo em riste: "E bocê?! O qué que bocê quer também?". Lembro-me que o bicharoco não meteu o rabo entre as pernas nem sequer ripostou: quedou-se a olhar espantado.
Transpondo a história, há por aí muitas "Amelinhas" que vociferam obscenidades para o ar e o melhor é de facto não fazer como o cão: responder ao insulto nivela humanos e animais.»
Maria José Miranda