quarta-feira, 23 de maio de 2007

Afinal quem é que é irrelevante?

Se eu tivesse que escolher o aspecto mais infecto da guerra psicológica anglo-americana que precedeu a invasão do Iraque em 2003, não tinha dificuldades em decidir: foi a chantagem contra as Nações Unidas, que foram postas perante duas hipóteses - ou o Conselho de Segurança dava o seu beneplácito à invasão, ou as Nações Unidas tornar-se-iam "irrelevantes". As mesmas Nações Unidas que nunca tinham existido se não fosse a sabedoria de sucessivos presidentes dos EUA (e Primeiros-Ministros britânicos). Irrelevantes.
Num tão famoso como infame discurso perante a Assembleia-geral das Nações Unidas a 12 de Setembro de 2002, o Presidente George Bush foi claro: "A conduta do regime iraquiano constitui uma ameaça para a autoridade das Nações Unidas e uma ameaça para a paz.... O mundo encontra-se perante um teste, e as Nações Unidas estão perante um momento difícil e decisivo. As resoluções do Conselho de Segurança são para ser honradas e aplicadas, ou postas de lado sem consequências? As Nações Unidas vão servir o propósito para o qual foram fundadas, ou tornar-se-ão irrelevantes?"
Em Novembro de 2003, num discurso em Londres, Bush - ainda embriagado com a (aparente) vitória fácil e desconhecendo a plenitude do desastre que já se anunciava no Iraque - continua as insinuações, explicando que a "credibilidade das Nações Unidas depende da sua vontade de ser fiel à própria palavra e de agir quando importa agir."
O Reino Unido não ficou atrás: nem no servilismo, nem na chantagem. Jack Straw, MNE britânico na altura, reiterou numa intervenção nos Comuns a 25 de Novembro de 2002 que "como o Presidente Bush disse na Assembleia Geral das NU no passado dia 12 de Setembro, as Nações Unidas ou aplicam as suas resoluções ou arriscam-se a tornar-se irrelevantes."
Agora, incapaz de sair do atoleiro onde meteu os EUA (e onde nos meteu a todos), Bush, consciente de que a tentativa de resolver os problemas do Iraque com mais e mais e mais tropas não vai ter sucesso, prepara-se para pedir ajuda. A quem? Às Nações Unidas.
Parece que os EUA querem envolver mais as NU na normalização democrática do Iraque, no acompanhamento da implementação das políticas sectoriais dos ministérios iraquianos, na ajuda humanitária, no desarmamento e na reintegração das milícias e, acima de tudo, na manutenção da paz. Talvez uma missão de capacetes azuis integrada por contingentes de países muçulmanos, como tantas vezes eu aqui advoguei.
Nada mau para uma organização que esteve na iminência de se tornar "irrelevante"!
A invasão do Iraque e as suas consequências não só reafirmaram categoricamente o papel decisivo das Nações Unidas em travar - deslegitimando - os ímpetos mais perigosos das super-potências, como demonstraram que "as Nações Unidas" só funcionam se - e quando - os seus membros (especialmente os P-5) deixam.
Quanto ao envolvimento das Nações Unidas no Iraque, e à necessidade de internacionalizar a abordagem ao país, não parece haver outra alternativa. É preciso ajudar os EUA a sair do Iraque. É que Bush, Blair e Straw entretanto tornaram-se... irrelevantes.