por Catarina de Albuquerque
Cinco dias antes de se comemorar em Portugal mais um Dia da Criança, o conteúdo de um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça voltou a ser notícia em vários órgãos de comunicação social, desta vez devido a um caso relativo a abusos sexuais de uma criança de 13 anos. De acordo com o referido Acórdão, é diminuída a pena do autor do crime de abuso sexual de menores por não ser “certamente a mesma coisa praticar algum dos actos inscritos no âmbito de protecção da norma com uma criança de 5, 6 ou 7 anos, ou com um jovem de 13, que despertou já para a puberdade e que é capaz de erecção e de actos ligados à sexualidade” e ainda devido ao estigma social que todo o processo judicial já provocou no arguido.
Em primeiro lugar, parece-me extremamente curioso os senhores Conselheiros do STJ, em todo o texto do Acórdão, não referirem uma só vez a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança – que os deveria ter guiado neste (e já agora noutros) caso. Também é verdade que, se o tivessem feito e se a tivessem tido em conta nas suas deliberações, talvez chegassem a conclusão diversa.
Com efeito a dita Convenção – plenamente em vigor em Portugal e com força de lei vai para 16 anos – refere no seu artigo 3.º que o interesse superior da criança deve ser uma consideração primacial em todas as decisões que lhe digam respeito. A interpretação deste conceito deve colocar ênfase na criança enquanto indivíduo com opiniões e sentimentos próprios e na criança como sujeito de direitos civis, culturais, económicos, políticos e sociais e ainda com direito a protecções especiais.
Quer isto dizer que, sempre que tenhamos dois interesses em conflito, somos forçados a dar prevalência ao interesse da criança? Concerteza que não. O texto da Convenção indica que o interesse superior da criança não será sempre o único e determinante factor a ser considerado. Podem existir interesses de direitos humanos em competição ou em conflito, por exemplo entre crianças individualmente, entre grupos de crianças e entre crianças e adultos. O interesse superior da criança, no entanto, deve ser objecto de consideração activa. É necessário demonstrar que os interesses das crianças foram analisados e tidos primacialmente em conta.
E agora pergunto eu: os interesses desta criança vítima de abusos sexuais foram objecto de consideração activa? Foram analisados? Foram tidos primacialmente em conta? O Acórdão não os refere uma única vez… E a verdade é que o abuso sexual de crianças tem um impacto duradouro sobre as mesmas e as crianças vítimas destes abusos experimentam uma série consequências, que vão desde o stress pós-traumático, a formas menos permanentes de dor, stress e confusão. Podem sentir-se isolados, incompreendidos, envergonhados, tristes, zangados ou com baixa auto-estima. Sentem-se frequentemente “marcadas” por aquilo que lhes aconteceu.
É necessário no nosso país um choque de mentalidades. A nossa justiça não pode passar ao lado das obrigações que nos são impostas por tratados internacionais – nomeadamente na área de direitos humanos. Não pode ignorar as deliberações, decisões, recomendações e resoluções emanadas por organismos internacionais de que Portugal é parte. Não pode fingir que não existem ou que são irrelevantes.
A única fórmula mágica, eficiente e duradoura que conheço que permite assegurar que os direitos e interesses das crianças não são negligenciados, nem esquecidos, nem preteridos e que é dada à criança a visibilidade a que tem direito, é assegurar que os direitos da criança são divulgados não só junto do público em geral (para que este os possa depois reivindicar!), mas também que fazem parte integrante dos curricula de vários profissionais que trabalham com e para as crianças – tais como os juízes, mas também os professores, os polícias, os assistentes sociais, entre outros.
Com a Convenção da ONU, os direitos da criança deixaram de ser uma opção, uma questão de favor ou de mera simpatia. São uma fonte de obrigações jurídicas claras às quais Portugal – tal como todos os outros 191 Estados nela Partes - deve dar cumprimento.
(Catarina de Albuquerque é minha amiga. Mas, mais importante que isso, é uma internacionalmente reputada perita em direitos humanos. Presidente-relatora do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre um Protocolo Opcional ao Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Trabalha no Gabinete de Documentação e Direito Comparado da PGR. Os juízes do STJ e magistrados de outros tribunais portugueses bem fariam em dar-lhe ouvidos.)