O mail, curto, prevenia: "uma notícia triste - o João Isidro morreu".
Assentou-me como um soco, seco, duro, atordoador. Acabara de me sentar à secretária do gabinete em Estrasburgo e a custo retomei o equilíbrio. A cabeça ficou a zurzir-me toda a noite.
Quando o avião levantara voo da Portela, à hora do almoço, facultando-me a visão espraiada do rio e da outra margem, eu pensara no João "tenho de ligar para saber como está, combinar uma almoçarada para as férias se ele puder sair, ou ir visitá-lo, ficar à conversa com ele...".
E agora é insuportável realizar que já não vou sequer ver mais o João, o velho João.
É insuportável pensar que não vou poder mais ligar-lhe a saber o que ele pensa disto ou daquilo, rir e gargalhar com ele, conversar e desconversar, sempre a beber da sua inesgotável sabedoria, da sua mordaz ironia, da sua arguta reflexão sobre as andanças da política em Portugal e no mundo. É insuportável pensar que já não vou mais receber telefonemas dele, a dar-me um veredicto incisivo, mas benevolente, à saída de qualquer intervenção televisiva: "ouve lá: safaste-te! mas sempre podias pôr outro carão..." - ele era sempre a primeira pessoa a ligar, às vezes de voz fraca, arrastada da cama a que a doença o fazia baixar.
Passo em revista as horas que passamos no meu gabinete do PS no Rato a trabalhar em textos e a discutir o Iraque, o Afeganistão, a Constituição para a Europa, o dia-a-dia da desgovernação PSD-PP, a Casa Pia e tudo o mais. Decerto deixando a arder orelhas barroselas e outras que tal (inclusive de gente do PS) que se havia passado para o "in", mandando princípios e decência às urtigas... Inevitavelmente desaguávamos as mágoas numas bujecas na tasca da esquina - se eu não fosse, ele arranjava companhia... precisava de "one for the road", para dar para o barco para a outra margem...
Passo em revista o que vivemos no MR, antes e depois do 25. Foi o João quem me convenceu - a palavra exacta é "seduziu" - que era àquela malta na Faculdade que tinha de juntar-me para lutar contra o regime fascista e a guerra colonial: eram irresistíveis as suas intervenções em português escorreito, inventivo e a transbordar de humor cáustico e crítica certeira.
Querido João: não posso acompanhar-te pessoalmente a esta hora, à saída do Grémio Lusitano, de onde tu querias estar para fazer o caminho para essa outra margem, essa última outra margem... Mas estou aqui numa das margens do Reno, em Estrasburgo, a pensar em ti com o coração sentido. E a tentar assim dar a volta por cima, como tu sempre deste e sempre me encorajaste a dar. Tentando compensar a tua dorida perda com a recordação gostosa, indelével, da riqueza humana, intelectual, cultural e política que trouxeste às vidas daqueles que, como eu, tiveram a sorte de te ter como amigo.