Fernanda Câncio replicou ao meu post "Bonomia e poderes ocultos" de 21/11.
1. FC questiona a legitimidade de determinadas escutas estarem num determinado processo judicial - questão a que nem eu, nem ela, poderemos responder sem ter acesso ao processo, e que, em última análise, só poderá ser esclarecida e derimida em sede judicial.
Sustenta FC que eu devia ralar-me "em saber como é que o jornalista teve acesso as ditas conversas, e, estando gravadas, quem as teria e com que legitimidade gravado e transcrito e colocado num sitio em que estivessem acessíveis a jornalistas". Para FC o essencial é, portanto, se o jornalista praticou um crime ao aceder ou divulgar conversas gravadas no âmbito de um processo judicial (logo, judicialmente validadas). Se sim, segundo FC, a reacção adequada será... não reagir. E sobretudo não rir.
Havendo crime no acesso e divulgação de escutas legalmente operadas e mantidas num processo, cabe ao MP e aos escutados processar em justiça os criminosos. Mas essa actuação, necessariamente a posteriori, não impede a produção de efeitos da divulgação das escutas: e o seu conteúdo pode ser relevante, ou não, do ponto de vista do interesse público, além dos interesses pessoais eventualmente afectados.
É por isso que os escutados podem/devem reagir, desde logo desmentindo a transcrição, se a conversa não existiu ou foi reproduzida com distorções.
E porque deverão terceiros eventualmente afectados, de algum modo, pelas escutas publicadas, ficar mudos e quedos? Será que se forem publicadas ilegalmente transcrições de conversas escutadas no âmbito de um processo judicial onde, por hipótese, alguém maldosamente atribua a FC ignomínias diversas, poderemos esperar dela o mais olímpico silêncio?
Eu, perante um conversa escutada no âmbito do processo "Face Oculta" e publicada, optei por desvalorizar o seu teor, rindo. Ri do conteúdo de uma conversa que não foi desmentida. E não estava desprevenida quando disse a jornalistas que reagira à gargalhada. Nem os questionei sobre como tinham obtido a transcrição, pois presumi que sabiam dela tal como eu - fora publicada num jornal.
Rir do teor da conversa não significa, sublinho, que eu menospreze a ilegalidade da publicação.
2. Pergunta FC: "O que é que tanto a revoltou na utilização das escutas contra a direcção Ferro Rodrigues? o principio da coisa, a violação do estado de direito, o crime, a compressão dos direitos fundamentais, o jornalismo de sarjeta?"
Tudo isso, mais o facto dos acusados na praça pública não poderem defender-se, por nem sequer conhecerem que eventuais acusações a justiça tinha contra eles - e, afinal, não tinha.
No caso concreto das escutas do processo Casa Pia publicadas em 2003 e 2004, foi orquestrada uma manobra para difamar dirigentes do PS - e o PS - implicando magistrados e agentes da justiça, incluindo um director da PJ, que passavam a jornalistas informação em segredo de justiça que, veio a verificar-se, não ter relevância para efeitos criminais.
Independentemente da revolta (que partilhei) com ilegalidade da publicação de escutas de conversas, os visados não se escusaram a desmentir as fabricações e as interpretações tendenciosas e malévolas que os media veiculavam, protestando repetidamente a sua inocência. O facto de o acesso às escutas e a sua reprodução pública ser ilegal não os demoveu de se pronunciarem sobre o seu conteúdo.
3. FC incita-me a identificar os protagonistas das escutas a que me refiro no final do meu post: são Rui Pereira, Ministro da Administração Interna, e Abel Pinheiro, arguido no processo "Portucale". (Curioso que, depois de tantos anos, o processo "Portucale" ainda não tenha sequer chegado a julgamento, não é?....)
Diz, a propósito, FC que eu procurei justificar "ter legitimado publicamente a devassa de uma conversa sem qualquer interesse criminal ou informativo". Não, eu não justifiquei, nem legitimo nenhuma devassa. Mas isso não me impede de apreciar o impacto da mesma, se o resultado é tornado público, legal ou ilegalmente.
E no caso concreto, a publicação das escutas de conversas entre aqueles dois personagens que tratavam de se aproveitar do Estado para engendrar nomeações e traficar favores políticos ou pessoais (que podiam até frustrar o curso da justiça), elucidou os portugueses sobre a sua ética e as relações ocultas que mantinham.
Os ditos personagens não contestaram publicamente a veracidade das conversas transcritas. Do meu ponto de vista, o interesse público acabou por ser servido pela publicação, ainda que à partida esta tenha violado a letra da lei. Tanto mais que um dos intervenientes se tornara entretanto ministro (e mantém-se...).
4. Eu não defendo que "em certas circunstâncias, o jornalismo pode e deve infringir a lei e divulgar escutas", como me imputa FC.
Mas é inegável que o interesse público pode ser causa de exclusão da ilicitude da divulgação de conversas privadas. Se um interesse público maior que a defesa da privacidade estiver em causa - por exemplo, para desmascarar um corrupto, um traficante de influências, um ladrão - ainda que os factos expostos só por si não constituam crime. E não é esse o B-A-BA do jornalismo, a equação deontológica que os jornalistas têm que fazer quase diariamente, pergunto eu a FC que é jornalista?
5. É grotesco o paralelismo que FC faz com a justificação da tortura: a publicação de escutas pode envolver crime, mas nem sempre; e pode ter justificação no interesse público. A segunda constitui sempre crime e nunca é justificável por qualquer interesse publico ou privado, até por não ser eficaz - quem é torturado pode "confessar" o que for preciso, mesmo sem nenhuma sustentação. As transcrições de conversas gravadas no âmbito de uma investigação judicial, ainda que legal ou ilegalmente mantidas no processo ou divulgadas, têm de ter suporte da sua fidedignidade.
Em conclusão: porque se incomoda tanto FC com uma gargalhada, vinda de uma das pessoas que é afectada pela divulgação duma escuta em particular?