sexta-feira, 6 de abril de 2018

A "ameaça fascista"

1. Resumindo a tese principal do seu livro Fascism: A Warning [Fascismo: Um alerta], acabado de publicar, a antiga ministra dos negócios estrangeiros do Presidente Bill Clinton, Madeleine Albright, afirma, no seu artigo de hoje no New York Timesque «o fascismo representa atualmente a mais séria ameaça desde a II Guerra Mundial», incluindo explicitamente a ação de Trump no âmbito dessa ameaça.
Não é a única a pensar assim. Mas nem todos têm o seu nome e a sua autoridade política e moral. Por isso, a sua opinião não pode ser ignorada.

2. É uma tese pelo menos controversa e, a meu ver, excessiva e arriscada.
Por mais preocupantes e por mais que tenham de ser combatidas as atuais ameaças à democracia liberal, especialmente as que provêm das "democracias iliberais" e do "autoritarismo populista", assentes sobre a instrumentalização ideológica do Estado e o desprezo das oposições, o nacionalismo, a repressão da imigração e a defesa das "identidades nacionais", o protecionismo e a hostilidade à ordem global liberal, a complacência e cumplicidade com movimentos assumidamente extremistas, dificilmente se vê, porém, algum préstimo na invocação genérica de uma "ameaça fascista", quando tais regimes, aliás distintos em muitos aspetos, continuam a respeitar, pelo menos formalmente, as liberdades políticas básicas, os mecanismos eleitorais e os procedimentos parlamentares e continuam aquém de perfilhar os traços ideológicos mais caraterísticos do fascismo, como sejam a negação doutrinária da democracia e a opção por assumidas autocracias, a sistemática perseguição e eliminação dos adversários políticos, os apelos belicistas e a perseguição étnica, a mobilização nacional contra os "inimigos internos", o poder absoluto do Estado, etc..

3. Esta reserva vale por maioria de razão em relação aos Estados Unidos de Trump.
A conduta errática, caprichosa  e "autista" do Presidente, a deriva nacionalista e protecionista em curso, a quebra de compromissos internacionais e o desprezo pelo multilateralismo, tudo isso é inquietante, tendo em conta a responsabilidade dos Estados Unidos na construção e preservação da ordem global resultante da II Guerra Mundial. Outra coisa, porém, é identificar nesse quadro indícios de uma verdadeira "ameaça fascista".
Apesar de tudo, na sua história a democracia americana passou por outras provações não menos preocupantes. E superou-os.

4. Seria obviamente irresponsável ignorar os aspetos que hoje ameaçam a democracia liberal e que podem degenerar numa reversão da "terceira vaga da democratização" (Huntington), que se iniciou em 1974 em Portugal e que multiplicou o número de democracias constitucionais por esse mundo fora em poucas décadas, bem como o ativismo e o crescente apoio de movimentos políticos caraterizadamente fascistas ou filofascistas em muitos países.
Mas o combate a essas duas ameaças - que não pode ignorar as causas do descontentamento popular com o status quo - dificilmente pode ser travado com êxito confundindo tudo sob a designação genérica de uma alegada "ameaça fascista". É tão perigoso ignorar as manifestações fascistas lá onde elas existem como banalizar tal risco, acoimando de fascistas todos os que põem em causa a democracia liberal. Em vez de amalgamar, devemos separar e distinguir os adversários.