segunda-feira, 5 de outubro de 2020

História constitucional de Portugal (1): O que devemos à República de 1910

 

1. Quando celebramos os 110 anos da Revolução Republicana (5 de outubro de 1910), importa recordar o que lhe devemos em termos de edificação da democracia constitucional em Portugal, através da Constituição de 1911. Não é pouco!

Em primeiro lugar, devemos-lhe obviamente a mudança da "forma de governo", da Monarquia para a República, deixando o Chefe de Estado de ser um monarca vitalício e hereditário reservado à dinastia de Bragança - e que além das funções próprias de chefe do Estado tinha também um papel decisivo na função legislativa e governativa na Carta Constitucional -, para passar a ser um Presidente da República com legitimidade democrática própria, sendo eleito pelas duas câmaras do Parlamento, de entre os cidadãos portugueses em geral, e com mandato temporário e não renovável imediatamente.

A par desta mudança essencial houve também a eliminação da antiga Câmara dos Pares, nomeada pelo Rei e composta por representantes da nobreza e do clero, sendo substituída por um senado eletivo, de representação territorial.

Ainda no plano da democracia, importa sublinhar o reconhecimento enfático da autonomia e do autogoverno municipal.

2. Não foi menor a contribuição da I República para a igualdade política dos cidadãos.

A primeira e decisiva medida foi a eliminação dos "foros da nobreza" e dos  títulos nobiliárquicos e a fim da distinção entre nobres e plebeus. 

Depois vem o reconhecimento da liberdade religiosa, a separação entre a  Igreja e o Estado e o fim da discriminação religiosa entre portugueses.

Por último, mas não menos importante, há o reconhecimento constitucional do direito à educação, através da instituição do ensino primário obrigatório e gratuito, tendente a acabar, a prazo, com a básica distinção entre alfabetizados e analfabetos, principal obstáculo à fruição dos direitos de cidadania.

3. No plano da edificação do Estado de direito constitucional, cumpre destacar três medidas:

        -  a consolidação do direito à liberdade pessoal (reforço das garantias penais, entre as quais o habeas corpus);

        - a consagração dos "crimes de responsabilidade" pelos atos governativos, tendo a condenação por consequência a perda do cargo e incapacidade para exercer funções públicas;

        - a instituição da fiscalização judicial da constitucionalidade das leis, confiando a todos os tribunais o poder de, nos casos submetidos ao seu julgamento, desaplicar as normas que considerassem desconformes com a Constituição.

Adenda

Na sua mensagem sobre a revolução republicana no site so PS, Ferro Rodrigues credita-lhe também a conquista da cidania, através da passagem "de súbditos a cidadãos". Mas não é bem assim, pois essa conquista deve ser imputada à Revolução Liberal e à Constituição de 1822, que aliás FR menciona, justamente, como um dos fundamentos da Revolução republicana. 

De resto, se a República contribuiu decisivamente para estabelecer a igualdade na cidadania, como referido acima, já retrocedeu, por exemplo, quanto ao direito de sufrágio, mais restrito do que o vintismo, pois enquanto este adotou tendencialmente um sufrágio universal masculino, a República não só manteve a exclusão das mulheres, mas também afastou os analfabetos, que ainda eram uma proporção elevada da população. Ora, o direito de voto é o mais eminente direito de cidadania. Nesse aspeto, portanto, houve um recuo da cidadania republicana em relação a 1820.