Que a restrição da liberdade de deslocação existe, é óbvio. Já não me parece que ela seja constitucionalmente inadmissível.
2. Em primeiro lugar, a medida governamental tem cobertura legal na Lei da Proteção Civil, na interpretação ampla que dela tem prevalecido, quando estabelece que o "estado de calamidade" pode abranger a «fixação, por razões de segurança dos próprios (...), de limites ou condicionamentos à circulação ou
permanência de pessoas, (...) ou veículos»;
Em segundo lugar, a medida não parece descabida nem desproporcionada. Por um lado, não se trata da "suspensão" da liberdade de circulação (o que impediria adotá-la fora do caso de estado de exceção constitucional), visto que a restrição não é absoluta, abrangendo somente as saídas para fora do município e estando em vigor num curto período de tempo. Por outro lado, face ao ressurgimento da vaga de infeções em curso, parece-me que se justifica a medida, sendo apropriada para tentar travar aquilo que um especialista já qualificou como «uma transmissão descontrolada do vírus na comunidade».
3. Os valores constitucionais que estão em causa - controlar o risco acrescido para saúde pública e para a vida das pessoas - é muito mais importante do que o incómodo da restrição limitada e temporária da liberdade de deslocação.
É claro que a medida poderia ser mais moderada, admitindo, por exemplo, a deslocação a concelhos limítrofes. Mas é muito provável que o seu alcance ficasse assaz enfraquecido, reduzindo o seu impacto positivo.
Em situações de incerteza como as da pandemia, tem de admitir-se uma maior margem de liberdade dos decisores políticos quanto à ponderação dos bens e valores constitucionais em causa na restrição de direitos fundamentais, que os tribunais, a começar pelo Tribunal Constitucional, devem respeitar.
Adenda
Um leitor argumenta que, na falta de autorização constitucional explícita para restrição da liberdade de circulação, as restrições legais serão inconstitucionais, salvo em estado de emergência. Penso, porém, de acordo com a doutrina constitucional prevalecente (perfilhada na Constituição Anotada de que sou coautor, na nota VII ao art. 18º da CRP), que essa regra deve ser objeto de interpretação restritiva e que a autorização constitucional de restrição não pode ser exigível quando se trate de gerir conflitos entre direitos fundamentais (como neste caso entre a liberdade de circulação e o direito à saúde de outros), que só podem ser dirimidos pela restrição de um deles ou de ambos. De resto, é frequente essa situação de colisão entre direitos, como, por exemplo, entre o direito ao bom nome e reputação e a liberdade de informação e de imprensa, em relação aos quais a Constituição não prevê restrições, mas que têm de ser admitidas para solucionar o litígio entre eles.