sábado, 19 de junho de 2021

Pandemia (61): Confusionismo deliberado

1. A crónica de hoje de J. M. Tavares no Público sobre a alegada inconstitucionalidade da proibição de entrada e saída da Grande Lisboa e a suposta "desautorização" do Presidente da República é um exercício de confusionismo deliberado

A saber: (i) a referida medida tem cobertura legal na Lei da Proteção Civil, ao abrigo do "estado de calamidade" declarado nos termos dessa lei; (ii) essa medida não implica suspensão da liberdade de circulação, mas somente a sua restrição, pois os residentes continuam a poder deslocar-se dentro da área delimitada; (iii) para restringir direitos não é necessário declarar o estado de emergência, desde que se trate de restrições previstas em lei, como é o caso; (iv) o estado de emergência foi declarado várias vezes para permitir a efetiva suspensão de vários direitos fundamentais (confinamento domiciliário, encerramento de estabelecimentos, proibição de atos de culto, de reuniões e manifestações, etc.) ou autorizar restrições não previstas em lei. 

Por conseguinte, embora haja quem pense diversamente, entendo que a medida em causa não é constitucionalmente ilegítima. De resto, a referida lei não foi constitucionalmente impugnada até agora.

2. É evidente que essa medida se traduz num recuo no processo de desconfinamento, tal como inicialmente programado pelo Governo, a quem compete geri-lo. 

Todavia, tal eventualidade sempre esteve em aberto, tendo o Governo tido o  cuidado de declarar o "estado de calamidade", para manter todas as hipóteses disponíveis, como lhe compete. De resto, medida idêntica já tinha sido aplicada em Odemira.

Por conseguinte, contra o que defende apressadamente J.M.T., a decisão governamental não implica nenhuma «desautorização» do Presidente da República, desde logo porque não lhe compete comandar o processo de desconfinamento. Pelo contrário: travar a retoma de uma fase aguda da pandemia em pleno verão constitui uma obrigação imperativa do Governo para assegurar que o Presidente não é obrigado a reconsiderar a sua garantia pública de que, no que dele dependesse, não se voltaria atrás quanto à declaração de novo estado de emergência, que só ele pode emitir.

Adenda
Um leitor observa que a questão da "desautorização" nasceu da formulação equívoca da garantia de "não recuo" por parte do Presidente da República, pois este não precisou que se referia ao estado de emergência, cuja declaração lhe compete, e não ao desconfinamento, que é competência do Governo. Tem razão. Mas o Primeiro-Ministro também podia ter evitado referir o Presidente na sua declaração sobre o recuo no desconfinamento; e este, por sua vez, bem podia e (devia) ter evitado a despropositada declaração de que o Presidente nunca é "desautorizado" pelo Governo, pois tal não era o caso. Imprudentes quiproquós verbais! No exercício dos seus poderes políticos e administrativos, o Governo só pode desautorizar o Presidente, se este indevidamente se intrometer na esfera de competência daquele.