sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Não concordo (25): Iliteracia constitucional

1. Há comentadores (por exemplo, aqui e aqui) que defendem que o Governo deveria demitir-se ou ser demitido, em consequência da dissolução parlamentar, alegadamente por deixar de estar sujeito a escrutínio da AR.

Trata-se, porém, de uma ideia descabida, constitucional e politicamente. 

Constitucionalmente, nada obriga o Governo a demitir-se em consequência da rejeição do orçamento ou da dissolução da AR; e também nada autoriza o Presidente da República a demitir o Governo, pois se trata de um poder excecionalíssimo, aliás até agora nunca exercido por nenhum Presidente. Um pouco mais de literacia constitucional, precisa-se! 

Politicamente, seria prejudicial para o País que, a somar ao parlamento dissolvido, se viesse acrescentar um governo demitido, limitado a poderes de gestão corrente. Nas atuais circunstâncias, a paralisia governamental é um risco que o País não deve correr.

2. Também não existe nenhuma relação necessária entre dissolução parlamentar e demissão do Governo. É óbvio que Constituição impõe a demissão do Governo, logo que se inicie a nova legislatura resultante das eleições antecipadas, mas, até lá, o Governo mantém-se em funções com os seus poderes ordinários.  

O que tem sucedido na maior parte dos casos é o inverso, ou seja, a dissolução parlamentar em consequência da demissão do Governo (por exemplo, em 2011, 2002, 1987); mas em 2004, houve dissolução parlamentar sem demissão presidencial do Governo (embora se tenha depois demitido).

Também agora a dissolução parlamentar ocorre sem prévia demissão do Governo e não tem de a arrastar.

3. Não procede o argumento de falta de escrutíni0 político do Governo.

Primeiro,  a dissolução parlamentar limita muito os poderes do Governo, privando-o desde logo dos poderes legislativos que dependem daquela, caducando também as autorizações legislativas de que dispunha. Perde igualmente o poder de propor alterações ao orçamento em vigor. Deixa também de poder nomear membros das aurtoridades reguladoras, que depende de parecer prévio do parlamento.

Em segundo lugar, não é verdade que se extinga o escrutínio parlamentar sobre o Governo. Na verdade, na pendência da dissolução parlamentar mantém-se em funções a Comissão Permanente da AR - uma espécie de miniparlamento -, à qual compete exercer o poder parlamentar de «vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e acompanhar a atividade do Governo e da Administração». 

Em terceiro lugar, como defendo no post anterior, há limites implícitos aos Governos cessantes, que decorrem de um princípio constitucional de lealdade institucional.

Por último, na pendência da dissolução parlamentar, mantém-se em pleno o poder "moderador" do Presidente da República, para frear os abuso dos Governos cessantes, incluindo o poder de veto legislativo (e de outros decretos do Governo), e em última instância o poder de demissão, em caso de estar em causa o «regular funcionamento das instituições».

Também aqui, um pouco mais literacia constitucional ajudaria à análise política.

[revisto]