1. Há quem condene a invasão russa da Ucrânia, não por ser uma agressão à soberania territorial de outro Estado (como se isso não bastasse!), mas sim por se tratar do ataque de uma alegada "ditadura" a uma suposta "democracia liberal".
Compreende-se o propósito implícito: uma invasão já não seria censurável se se tratasse de uma democracia liberal a uma ditadura, para mudar ao regime, tese que o chamado pensamento "neoconservador" norte-americano defendeu há poucas décadas, para justificar as intervenções dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão, e que ressurge regularmente quando convém, como, por exemplo, para justificar as intervenções ocidentais na Síria e na Líbia, e chegou a ser encarado no mandato do Presidente Trump para justificar uma intervenção na Venezuela.
No entanto, não há invasões de um país por outro menos ilegais e condenáveis do que outras. À face do direito internacional, o respeito pela soberania territorial dos Estados e a proibição da agressão militar não dependem do regime político dos países em causa.
2. Sucede que, tanto quanto é possível avaliar a partir da justificação russa para a invasão - proteção dos direitos da minoria russa, desmilitarização e "desnazificação" da Ucrânia -, ela não tem a ver com o regime político vigente em Kiev, podendo ter ocorrido mesmo que se tratasse de um regime autocrático.
Sendo lícito considerar que a principal razão russa para invasão visa impedir a jurisdição da Nato de chegar às fronteiras da Rússia, mantendo a Ucrânia como país-tampão neutral, também tem de concluir-se que não existe nenhuma identificação necessária entre a Nato e a democracia liberal: sendo verdade que a maior parte do países que integram a Nato são democracias liberais, tal não é uma condição (Portugal antes de 1974, Turquia e Hungria hoje), havendo várias democracias liberais europeias que a não integram, mantendo-se neutrais (Suécia, Suíça, Finlândia, Áustria).
Por conseguinte, não sendo necessário para a condenar sem reservas, em nome do direito internacional e da Carta das Nações Unidas, também não é politicamente correto enquadrar a invasão russa da Ucrânia como uma guerra entre a autocracia e a democracia liberai.