Como mostra a terrível hipótese de o Supremo Tribunal dos EUA, na peugada da direita evangélica "trumpiana", vir a revogar a decisão Roe v Wade, que desde há décadas reconhece às mulheres norte-americanas o direito à interrupção da gravidez, tornando inconstitucional a sua penalização, a força das Constituições depende essencialmente do entendimento do respetivo juiz constitucional sobre elas.
Por isso, é inquietante a hipótese de ver cooptado para o nosso TC um jurista que deixa entender que não abandonou posições próprias da extrema-direita religiosa, de condenação geral do aborto e da sua despenalização. Não vejo como é que uma nomeação tão radical pode ser coonestada, não somente pela esquerda constitucional, mas também pela direita constitucional que defende posições de humanismo penal, nomeadamente contra o excesso da repressão penal, sobretudo quando estão em causa questões de dignidade humana, como a autodeterminação da mulher.
Reabrir entre nós, tal como nos Estados Unidos, uma questão constitucional sobre a despenalização geral do aborto seria um retrocesso civilizacional.
Adenda
Um leitor objeta que
«o aborto em Portugal não é um assunto constitucional, mas sim legal, pelo que, as posições que em 1984 alguém exprimiu sobre o aborto não têm qualquer relevância atual». Discordo, em absoluto. A despenalização legal do aborto sempre teve opositores, em nome da Constituição, tendo sido submetida ao TC várias vezes, e nada impede que a questão seja recolocada, se houver a ideia de que a oposição à legalização do aborto pode ter mais apoio agora, como sucedeu nos Estados Unidos. Por isso,
as antigas declarações de Almeida Costa têm toda a relevância, se ele as mantém, como par
ece.
Outro leitor questiona a minha legitimidade para discutir o assunto, por entender que
«a escolha dos juízes cooptados é uma questão interna do TC, que não deveria vir para a praça pública». Mais uma vez, discordo de todo em todo. Primeiro, num Estado constitucional, entendo que a nomeação dos juízes do TC, que têm o poder de "dizer a Constituição", interessa a qualquer cidadão, e que os nomes propostos deveriam ser objeto do mesmo escrutínio curricular dos juízes eleitos pela AR. Não é por acaso que, tanto quanto me é dado saber, já mais do que uma vez nomes sugeridos vieram a ser rejeitados. Em segundo lugar, a questão da despenalização do aborto não é uma questão de
lana caprina, tendo sido objeto de várias decisões do TC,
tendo eu próprio sido relator numa delas, pelo que
sou especialmente sensível a este tema e ao risco da reversão da jurisprudência do TC.