sábado, 17 de setembro de 2022

Assim vai a política (14): A inventona do "corte nas pensões"

1. Seguramente há de ficar na história das falsificações políticas em Portugal a campanha em que comentadores e partidos da aposição conseguiram transformar a maior subida das pensões jamais registada em Portugal num "corte de pensões"!

Ora, o máximo que pode suceder com a solução encontrada pelo Governo - antecipar para o corrente ano uma parte da subida das pensões legalmente devida em 2023, a fim de atenuar o grande impacto orçamental dessa atualização no próximo ano - é que nos anos seguintes a subida das pensões será menos acentuada do que seria. 

Contudo, nunca está em causa nenhum "corte" das pensões, mas somente a dimensão da sua subida futura.

2. Acresce que, ao beneficiarem, sem redução, da vantajosa fórmula legalmente em vigor para atualização das pensões, os pensionistas têm um aumento de rendimento (mais de 8%) bem maior do que outras categorias de cidadãos, como os funcionários públicos (a quem o Governo só propõe uma atualização de 2% no próximo orçamento), os senhorios (em relação aos quais o Governo alterou a regra de atualização, reduzindo-a de 5% para 2%) e os trabalhadores do setor privado (cujos salários não serão obviamente atualizados pela taxa de inflação).

Por conseguinte, os pensionistas não só não sofreram nenhum corte nas suas pensões como tiveram um tratamento privilegiado, pelo qual devem estar gratos.

3. E, no entanto, haveria boas razões para modificar imediatamente a regra de atualização das pensões, estabelecendo um "teto" mais baixo (como se fez para as rendas), designadamente as seguintes: 

    - não pôr em risco a sustentabilidade financeira do sistema de pensões a médio e longo prazo;

    - reduzir o impacto financeiro da atualização, em beneficio de menor défice orçamental e de maior redução do peso da dívida pública, a fim de conjurar o risco de uma subida mais acentuada dos juros;

    - não contribuir para estimular o surto inflacionista com o aumento sensível da procura agregada, que poderá favorecer uma espiral inflacionista.

Pelos vistos, porém, não bastam boas razões para justificar boas soluções.

4. O mais estranho nesta história é ver o PSD - que tem no seu registo a único corte efetivo de pensões em pagamento na nossa história política, no Governo Passos Coelho - a alinhar nesta inventona do imaginário "corte" das pensões, renegando todo o seu historial virtuoso de luta pela sustentabilidade da segurança social, pela disciplina orçamental e pela contenção da dívida pública.

Só falta ver o PSD a defender também um aumento da remuneração dos funcionários públicos correspondente à taxa de inflação. Se tal for o caso, temos de concluir que o PSD já não é o que era e que deixou de ser fiável como alternativa de governo financeiramente responsável.

Adenda
É errada a noção de que o Estado deveria devolver às pessoas, em transferências ou redução de impostos, tudo o que recebe a mais em receita fiscal, por causa da inflação. Primeiro, a inflação também faz aumentar, e muito, a despesa do Estado (em energia, obras, compra de equipamentos e de serviços, etc.), a qual tem de ser paga com receita adicional; segundo, entendo que o Governo deve reservar uma parte da folga fiscal para reduzir mais o défice orçamental e o peso da dívida pública, para atenuar a subida dos juros, causada pela política anti-inflacionista do BCE. Alimentar despesa pública à custa de empréstimos em situação inflacionista e de política monetária restritiva é duplamente penalizador: alimenta a inflação e o aumento dos juros da dívida pública.

Adenda 2
Um leitor pergunta se não sou pensionista e se, por isso, não deveria estar com aqueles que protestam contra «a manobra do Governo para, a partir de 2024, evitar a subida das pensões nos termos previstos na lei». Sim, sou obviamente pensionista, mas não posso colocar os meus interesses pessoais imediatos acima do interesse público, tal como o vejo, que é o de assegurar a sustentabilidade do sistema de pensões, a fim de garantir a capacidade de pagamento das mesmas, sem reduções, no futuro. Deixo a miopia política da demagogia fácil para outros...