sexta-feira, 24 de março de 2023

Privilégios (23): Um equívoco "socialista"

1. É lamentável ver um ex-ministro e vários deputados socialistas a juntarem-se a deputados do Bloco e do PCP para, contrariando a recente recomendação da OCDE, reivindicarem, mais uma vez, a abolição das propinas no ensino superior público, que, aliás, têm um valor hoje muito baixo, depois das reduções no tempo da "Geringonça".

A abolição das propinas seria, antes de mais, uma solução socialmente injusta. Por um lado, embora o ensino superior tenha uma "externalidade" pública positiva - o aumento do nível tecnológico do País, que deve ser paga pela coletividade -, a sua frequência é acima de tudo um investimento pessoal num melhor futuro profissional, devendo, portanto, ser maioritariamente pago pelos seus beneficiários, de acordo com o princípio beneficiário-pagador. Por outro lado, estando longe de ser de acesso universal - dada a grande percentagem dos que o não frequentam -, não é aceitável que o ensino superior público seja pago por todos, incluindo por aqueles que não chegam lá ou que têm de frequentar o ensino superior privado, por falta de vagas nas escolas públicas.

Tal como, por exemplo, as antigas autoestradas SCUT, o ensino superior gratuito é o contrário do socialismo: é fazer pagar por toda a coletividade o privilégio de uma parte dela.

2. Política de esquerda no ensino superior é, por um lado, aumentar a oferta pública e a sua qualidade, para reduzir a dependência dos estudantes menos abastados em relação ao ensino privado, obviamente dispendioso e, por um lado, multiplicar as bolsas de estudo e o apoio ao alojamento estudantil para os estudantes oriundos de meios economicamente mais carenciados, atenuando as desigualdades sociais. 

Ora, além de reduzir a autonomia financeira das universidades, a abolição das propinas só iria diminuir os recursos públicos para aqueles dois objetivos, tornando o ensino superior público refém da dificuldades orçamentais do Estado, agravando o crónico subfinanciamento do ensino superior público e frustrando uma aposta mais determinada na promoção da igualdade de oportunidades. 

Os resultados da benesse do ensino superior gratuito não seriam propriamente socialistas, no sentido nobre da palavra. Pelo contrário!

Adenda
Um eleitor acha um «escandaloso privilégio de classe» que os alunos de medicina, que custam individualmente mais de 15 000 euros por ano às universidades públicas, paguem menos de 700 euros de propina, por mais abastadas que sejam as suas famílias, sendo o resto pago pelos contribuintes em geral, incluindo aqueles que não conseguiram entrada em qualquer curso superior, muito menos nas faculdades de medicina. Tem toda a razão!

Adenda 2 (28/3)
Na esperança de dividir o PS, o Bloco apressou-se a avançar de novo com o seu velho projeto de lei a abolir as propinas. Como a "Geringonça" felizmente já acabou, espero que os ministros da Finanças e do Ensino Superior façam ver ao grupo parlamentar do PS o disparate político e doutrinário desta questão e que, pelo contrário, defendam a reversão dos cortes feitos entre 2015 e 2019 por pressão do BE e do PCP.