1. Na sua habitual e excelente coluna sobre livros e escritores na "Revista" do Expresso de hoje, o ex-editor Manuel Alberto Valente, meu condiscípulo no curso de direito em Coimbra, nos anos 60 do século passsado, recorda um episódio dessa época com Francisco Lucas Pires, igualmente estudante de direito, o qual, sendo candidato proeminente da lista derrotada da direita estudantil nas eleições para a direção da AAC, em 1965, decidiu ir felicitar os vencedores da lista de esquerda, o que, no ambiente politicamente crispado da academia sob o salazarismo, era um gesto de nobreza política pouco comum.
Esse episódio com aquele que, após o 25 de Abril, se viria a notabilizar politicamente (primeiro como militante e depois presidente do CDS, do qual viria a sair, para aderir ao PSD nos anos 90), fez-me recordar um dos momentos mais tocantes da minha longa relação de amizade com ele, apesar das fundas divergências políticas no início, ele na direita nacionalista radical e eu na esquerda marxista. Já depois de licenciados, e ambos assistentes da Fduc na mesma secção de Direito Público, passámos a conviver lado a lado diariamente numa das salas de estudo da Faculdade, preparando as nossas teses do "curso complementar" da licenciatura, o mestrado de então, o que gerou uma relação de cumplicidade pessoal nessa época pouco provável.
2. Um certo dia, em 1968, convidei-o a ir ao meu quarto de estudante para buscar um livro em que ele estava interessado. Como era frequente nessa altura nos estudantes de esquerda, o meu quarto estava forrado de cartazes políticos, incluindo, no meu caso, grandes retratos de Che Guevara e de Ho Chi Min.
Não estando claramente à espera, ele ficou por momentos especado à entrada, olhando as paredes, e depois dessa hesitação, declarou num tom grave: «Pois, a grande diferença é que nós, à direita, não temos os ícones heroicos nem as gestas revolucionárias que vos mobilizam; é por isso que a nossa luta é muito mais ingrata». Foi a minha vez de parar para meditar sobre aquela inesperada reflexão, que registei para sempre.
Depois de 1974 a vida voltaria a juntar-nos em outras circunstâncias, como no tardio serviço militar nas Caldas da Rainha ou, depois, na Assembleia da República, frente a frente, ele na bancada do CDS, eu na do PCP. Mas o respeito mútuo e a estima recíproca nascidos em Coimbra ficaram para sempre.
Meio século depois, dez anos após o seu prematuro desaparecimento, não deixei de lhe prestar publicamente a homenagem pessoal que lhe devia.