terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Laicidade (15): Regresso ao "Estado Novo"?

Ao ler a notícia da bênção de uma obra pública do município de Lisboa pelo Cardeal Patriarca, julguei que tinha regressado inadvertidamente ao "Estado Novo", quando tais cerimónias eram comuns no feliz "concubinato" entre o Estado e a Igreja Católica. 

Passado, porém, meio século, está em vigor, desde 1976, um regime de separação entre o Estado e a religião, cujo  "núcleo duro" mais elementar inclui a proibição de encomenda ou promoção de atos religiosos (missas, bênçãos, etc.) pelas entidades públicas. Tal princípio constitucional tem de prevalecer contra atos de proselitismo religioso de autoridades públicas, que, sem escrúpulos políticos ou religiosos, humilham os que não são crentes da religião "oficial", desprezam o pluralismo religioso e pisoteiam a Constituição da República, ao abrigo da qual desempenham o seu mandato.

A meu ver, quem assim abusa do seu poder público, instrumentalizando mesquinhamente a religião para efeitos políticos, torna-se indigno do poder político na República e perde o direito a qualquer respeito democrático.

Adenda
Um leitor pergunta aos partidos representados na autarquia da capital e às organizações da sociedade civil lisboeta «se não veem que é pelo silêncio e pela indiferença generalizada que pequenos grupos ativistas conseguem  "normalizar" o regresso a práticas do antigo regime como estas». Boa pergunta, que faço minha.

Adenda 2
Um leitor lamenta que eu ande «distraído» e que não tenha notado que «igual benção religiosa teve lugar nas obras do Metropolitano de Lisboa, que são do Estado, isto é, do governo», dando-me o link para o evento. De facto, tenho de admitir que a "minagem" de um dos fundamentos constitucionais do regime vai mais avançada do que admitia. Uma vergonha! Tal como a CML, o Governo deve uma explicação pública ao País.

Adenda 3
Um leitor do PS estranha o "silêncio do partido na CM Lisboa". Eu também! A celebre frase de Mário Soares - "laico, republicano e socialista" - não o definia somente a ele, mas também o partido que ele fundou. Pelos vistos, o PS vai deixando "prescrever", por silêncios comprometedores como este, o primeiro dos pilares do "credo" socialista originário.