quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Bandeira da esquerda

«Porque tem de ser bandeira da esquerda não apenas assegurar reformas e prestações sociais no ano que vem, mas reformas e prestações sociais daqui a dez, 20 e 30 anos. E isso só se faz com finanças públicas sustentáveis. Portanto, a necessidade de consolidação orçamental não é uma bandeira da direita. Tem de ser uma bandeira da esquerda.»
(Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, hoje no Diário de Notícias)
Nem mais! Não tenho dito outra coisa desde há muitos anos. Tenho repetido vezes sem conta que a disciplina orçamental não é uma bandeira da direita mais sim uma questão de boa gestão financeira e de sustentabilidade das contas públicas, que é crucial para sustentabilidade do Estado social, e que por isso tem de ser assegurada pela esquerda.
Infelizmente, para outras esquerdas, falar em "consolidação orçamental" e "sustentabilidade financeira do Estado social" é "paleio neoliberal" ou prelúdio de "políticas austeritárias".

De vez em quando a direita tem boas ideias...


Conheço boa parte dela e concordo! O país turístico não é somente Lisboa e o Algarve.

Amanhã vou estar aqui


terça-feira, 18 de outubro de 2016

"Orçamento de esquerda"

A líder do BE diz que este "não é um orçamento de esquerda".
Felizmente, não é o orçamento do BE. Apesar das concessões feitas, o PS não ensandeceu politicamente nem se enamorou das sereias da irresponsabilidade orçamental.
Um orçamento de um Governo BE aumentaria o rendimento de toda a gente, salvo dos "grandes capitalistas", que seriam objeto de tributação expropriatória. Apesar desse aumento de impostos, o défice duplicaria, à conta de um ainda maior aumento da despesa. A denúncia do Tratado Orçamental e o anúncio de uma reestruturação unilateral da dívida - os dois grandes objetivos políticos do BE - fariam disparar os juros desta. O País começaria a ter rapidamente dificuldade em financiar os gastos públicos. O investimento estrangeiro fugiria, os capitais emigrariam, a economia entraria em recessão, o desemprego aumentaria.
Colocado perante a iminência do colapso orçamental, o Governo BE ver-se-ia forçado a pedir assistência externa, mas, ao contrário de Tsipras na Grécia - que o BE considera ter traído a esquerda -, recusaria as duras condições de austeridade orçamental postas pela União e pelo FMI para um novo resgate e convocaria Varoufakis para preparar num fim de semana a saída do Euro e o regresso do escudo. Cortado o acesso aos fundos europeus (por violação das regras orçamentais) e aos empréstimos externos (por incumprimento de pagamentos), Portugal entraria em autarcia financeira. Seguir-se-ia a desvalorização maciça da nova moeda e a subsequente inflação de dois dígitos, que reduziria rapidamente o rendimento de toda a gente. Em poucos meses o país seria uma Venezuela sem petróleo, no meio do empobrecimento generalizado e na iminência do caos social e político...
É este o cenário idílico do tal "orçamento de esquerda" à moda do BE. Nem toda a ficção é irreal...

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Preocupante


De acordo com estes dados da OCDE, Portugal encima a lista dos países com mais elevada proporção de pessoas que declaram não ter "nenhum interesse na política", com 40%, o dobro da média dos países da organização (coluna a vermelho) e a léguas de países como a Dinamarca ou a Alemanha. Os dados comparativos são menos maus quanto à juventude, com alguns países ainda pior do que Portugal.
Sem verdadeira educação cívica nas escolas, com partidos em geral desacreditados, com um debate público pobre e confrontacional, com um sistema eleitoral que não atrai o envolvimento dos cidadãos, com desempenhos governativos em geral bem distantes dos compromissos eleitorais, a alienação política das pessoas entre nós é menos difícil de compreender.

O diabo está nos pormenores

O Governo diz que que no orçamento para 2017 a despesa pública calculada em percentagem do PIB diminui, embora marginalmente, o que depende naturalmente de a despesa respeitar o limite orçamental e de o crescimento da economia atingir os 1,5% previstos.
Num pais em processo de consolidação orçamental, a redução do peso da despesa pública é de saudar. Todavia, se isso é sobretudo devido a corte no investimento público, enquanto aumenta a despesa com pessoal e com pensões, então o alívio do peso orçamental da despesa pública é bem menos virtuoso...

Mesmo assim

O PS resistiu em parte à proposta da extrema-esquerda parlamentar de aumento extraordinário das pensões no próximo ano, aqui criticado. Restringiu o universo de beneficiários às pensões abaixo de 628 euros e adiou esse aumento extra para agosto do ano que vem, assim reduzindo o custo orçamental em 2017 para menos de metade (menos de 200 milhões de euros em vez de cerca de 500 milhões de euros).
Todavia, mesmo assim, o PS derrogou, sem justificação bastante, o prudente modelo de atualização automática das pensões em vigor, que o próprio Governo PS tinha aprovado em 2007 (tendo em conta o crescimento económico e a taxa de inflação), e faz pesar sobre os orçamentos dos anos futuros mais uma substancial despesa permanente e irreversível, antes de estar concluído o processo de consolidação orçamental em curso.

domingo, 16 de outubro de 2016

Onde quem governa ganha

1. Como se esperava, o PS ganhou as eleições regionais de hoje nos Açores, repetindo a maioria absoluta que já tinha no parlamento regional cessante (embora menos folgada agora do que antes).
Com este novo mandato, prolonga-se por mais quatro anos a hegemonia política socialista, que já vem desde 1996, mesmo assim aquém do contínuo predomínio político do PSD na Madeira, desde 1976.

2. É relativamente fácil explicar a continuidade política nas regiões autónomas - só interrompida nos Açores há vinte anos, com a saída de Mota Amaral - e que tem a ver sobretudo com o generoso regime financeiro das regiões, que ficam com todas as receitas fiscais aí geradas, sem terem de contribuir para as despesas gerais da República (que ficam a cargo dos contribuintes do Continente) e que ainda gozam de avultadas transferências do orçamento do Estado. Em igualdade de circunstâncias, os açorianos têm mais rendimento do que no Continente: salário mínimo mais elevado, pensões mais altas, impostos menos elevados.
Nestas circunstâncias, seria preciso governar muito mal para perder eleições, o que não tem sido o caso nos últimos vinte anos, para bem dos açorianos.

Impostos virtuosos

1. Há muitos comentadores de direita a condenar, em nome da liberdade individual e contra um alegado "paternalismo de Estado", o novo imposto sobre os produtos com excesso de açúcar, bem como o aumento dos impostos sobre bebidas alcoólicas e sobre o tabaco.
Não têm razão, porém. Esses impostos não visam diretamente defender as pessoas dos "vícios", mas sim contribuir para poupar ao SNS aos custos adicionais provocados pelas doenças resultantes do consumo daqueles produtos. Trata-se, portanto, de defender um relevante interesse público e não propriamente de forçar as pessoas a adotar hábitos virtuosos.

2. Para além do incentivo ao contrabando que constituem, a única objeção séria destes impostos - que é comum a todos os impostos indiretos - está no facto de eles serem socialmente discriminatórios, por serem "cegos ao rendimento", afetando sobretudo quem menos rendimento tem. Decididamente, os pobres não podem ter vícios, se não à custa de outros consumos essenciais, enquanto os ricos podem pagá-los. Mas a verdade é que não incumbe ao Estado assegurar a igualdade no acesso a produtos nocivos à saúde. Eis uma reivindicação de que nem o Bloco de Esquerda ainda se lembrou...
Dito isto, só é de lamentar a limitada incidência do imposto sobre produtos com excesso de açúcar (que só abrange as bebidas, e nem todas) e as exceções do imposto sobre as bebidas alcoólicas (que deixam de fora o vinho, cujo teor alcoólico, aliás, não cessa de aumentar).

sábado, 15 de outubro de 2016

Quando (quase) tudo corre bem

1. Os "idos de outubro" estão a revelar-se bem-sucedidos para o Governo na frente orçamental.
O défice de 2,4%  previsto para o corrente ano vai ficar abaixo do máximo permitido pela UE (embora acima do que estava no orçamento, que era 2,2%), ainda que à custa de um corte drástico no investimento público e da entrada adicional de receita fiscal proporcionada pelo "perdão fiscal" recentemente anunciado. E o orçamento para 2017 está praticamente aprovado, com metas consistentes com os compromissos da UE, ainda que inteiramente à custa de novas receitas fiscais e dos efeitos orçamentais esperados do crescimento económico antecipado.
Só falta a Comissão Europeia validar os pressupostos e as previsões orçamentais, nomeadamente a relativa ao crescimento económico, cuja previsão governamental fica acima da indicada por algumas agências internacionais, e as relativas ao investimento e às exportações.

2. O primeiro "ano fiscal" do Governo fica, porém, negativamente marcado no campo económico pela queda do investimento, a quebra da retoma económica e a baixa das exportações. Esperemos que estas tendências se invertam no ano que vem.
No campo financeiro, 2016 ficou também marcado pelo aumento da dívida pública e dos respetivos juros, que é talvez o aspeto mais preocupante da atual situação, tanto mais que os juros da dívida estão a ser suportados essencialmente pela intervenção do BCE na compra de obrigações no mercado secundário, que não vai durar sempre. Esperemos que a provável manutenção do rating da DBRS, apesar desse desenvolvimento negativo, contribua para estabilizar esta frente e que o ano que vem traga também o início, há muito aguardado, de uma efetiva redução do peso da dívida pública.

Adenda
É claro que a própria estimativa governamental do défice de 2016 está calculada para um crescimento do PIB de 1,2%, tal como agora prevê o Governo. Se este for inferior, como prevêem algumas instituições, então o défice pode vir a ser superior ao agora previsto. O mesmo raciocícnio vale para o cálculo da carga fiscal e do peso da dívida pública, que também são rácios do PIB.

Adenda 2
Saber se a proposta de orçamento para 2017 cumpre os requisitos da UE depende essencialmente da redução em 0,6% do "défice estrutural" (que é o défice nominal descontado dos efeitos do ciclo económico e das medidas one off, ou seja, não repetíveis). Ora, uma parte importante da prevista redução do défice orçamental assenta em lucros excecionais do Banco de Portugal e na recuperação de uma garantia que tinha sido dada ao BPP, que não é obviamente repetível...

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Blowin' in the wind


A Academia sueca surpreendeu mais uma vez com a atribuição do prémio Nobel da Literatura o Bob Dylan, o grande trovador norte-americano.
Saúdo a escolha, como admirador do homenageado, desde sempre. Há cerca de uma década já tinha celebrado aqui a atribuição de outro prémio ao autor de Blowin' in the Wind.

Supermerecido

O prémio dos direitos humanos atribuído pelo AR a António Guterres é mais do que merecido, pelo seu impressionante papel à frente da agência das Nações Unidas para os refugiados.
Mais um incentivo para que não deixe de honrar esses créditos na sua nova função de SG das Nações Unidas.

Liberais, o tanas!

Os historiadores hão de ter dificuldade em explicar como é que uma sobrevivência corporativista como o regime dos táxis, oriundo dos anos 40 do século passado, conseguiu resistir incólume desde 1974 até ao presente, apesar dos vários governos que tivemos defensores da economia de mercado e da concorrência.
O mais estranho é que, perante a meritória iniciativa do atual Governo de reconhecer as novas plataformas eletrónicas de mobilidade urbana paralelas aos táxis, mantendo porém em vigor o regime tradicional destes, os mesmos partidos supostamente liberais em matéria económica venham tergiversar publicamente sobre essa iniciativa, em vez de reclamarem, como deviam, a abertura do negócio dos táxis ao mercado e à concorrência, até para estes poderem competir mais facilmente com as referidas plataformas.
Quando importa defender interesses corporativos, por puro oportunismo político, a direita liberal manda os princípios às urtigas. Com pseudoliberais destes o habitual protecionismo económico da esquerda pode bem e a referida herança corporativista do Estado Novo vai mesmo continuar um "cadáver adiado"!

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Golos na própria baliza


Não há nenhuma notícia relativa aos taxistas que não redunde em argumento contra eles e a favor dos seus competidores das plataformas eletrónicas. Mesmo que não seja surpreendente, esta notícia referente à fuga fiscal dos taxistas impressiona pelo sua dimensão.

Manifestódromo presidencial

Parece-me evidente que Marcelo Rebelo de Sousa não deve receber as associações representativas dos táxis no contexto da manifestação marcada para Belém para a próxima semana, com o propósito explícito de "envolver o Presidente da República" no seu conflito com o Governo.
O Presidente não se deve imiscuir numa questão que respeita exclusivamente ao Governo nem dar a impressão de que apoia os taxistas na sua oposição ao executivo. De resto, se o fizesse, corria o risco de desencadear uma peregrinação a Belém de todos os grupos de interesse em conflito com o Governo e de transformar a praça fronteira ao Palácio de Belém num manifestódromo antigovernamental.

Adenda
Parece que a manifestação vai ser desconvocada. Ainda bem! Espero que Belém tenha enviado uma apropriada advertência aos promotores...

Demasiado elevado

É má a ideia de acrescentar mais umas centenas de milhões de euros à despesa pública com um aumento extra de pensões, num país que ainda está em laborioso processo de consolidação orçamental, que já tem uma das mais elevadas faturas de pensões no orçamento e que tem insistentes recomendações internacionais para reduzir essa fatura.
É também uma medida duplamente injusta: primeiro, não se vê razão para as pensões subirem quando os salários em geral continuam congelados; segundo, o adicional das pensões vai incidir sobre os contribuintes no ativo que, quando chegar a sua vez, não vão beneficiar das pensões que agora são chamados a financiar.
O facto de os pensionistas serem uma apetecível constituency eleitoral não justifica nem o ónus orçamental nem os desrespeito das regras da equidade horizontal e intergeracional.
Se este é um preço a pagar pela "geringonça" (ver post anterior), então é um preço demasiado elevado.
[revisto]

Adenda
Um leitor pergunta se eu próprio não sou pensionista. Assim é. Mas isso não me força a apoiar uma proposta que pode agravar as condições de sustentabilidade financeira do sistema público de pensões. Primeiro, quem me lê há muito sabe que não pauto as minhas posições políticas pelos meus interesses pessoais; segundo, não desejo que um aumento das nossas pensões possa pôr ainda mais em causa a pensão dos nossos filhos (sabendo que ceteris paribus já vão ter uma pensão inferior...).

Adenda 2
Mais uma vez, os que propõem aumentos extra generalizados das pensões são incapazes de propor o fim dos iníquos regimes privilegiados de pensões de certas categorias do setor público.

Adenda 3
Como se sabe, de acordo com o entendimento do Tribunal Constitucional, depois de aumentadas as pensões não se pode depois voltar atrás, mesmo em caso de crise das finanças públicas, o que vincula a gestão orçamental dos governos seguintes. Daí a necessidade de ponderar devidamente o impacto orçamental de qualquer subida extra das pensões.

Adenda 4
Entre muitos insultos e impropérios, também recebi de alguns leitores a ideia de toda a subida das pensões é justa, para reduzir a perda de rendimentos trazida pela aposentação. Lamento contrariar esse entendimento. As pensões contributivas deviam depender da carreira contributiva de cada pensionista. Ora, por esse critério, o mínimo que se pode dizer é que a maior parte das pensões, sobretudo no setor público, mas não só, são superiores ao que resultaria da carreira contributiva. Uma parte significativa da pensão é subsidio público. A subida extra das pensões só vai alargar essa "renda" indevida.

Adenda 5
O aumento extra das pensões em pagamento também vai criar uma óbvia vantagem em relação às pensões posteriores, pois o cálculo destas não vai ser revisto em alta, pelo contrário. As revisões do cálculo das pensões na última década têm sido sempre em baixa, reduzindo a chamada "taxa de substituição", ou seja, a relação pensão-remuneração.

O preço da "geringonça"

1. Numa entrevista radiofónica, em geral serena e equilibrada, o Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, normalmente identificado com ala mais à esquerda do PS, declarou que "nenhuma medida do atual Governo vai contra a matriz ideológica do PS".
Sem pôr em causa essa afirmação - felizmente, a "matriz ideológica" do PS é de largo espetro, desde uma social-democracia liberal até uma esquerda paredes-meias com as esquerdas radicais -, outra teria de ser a resposta se a questão fosse a de saber se o acordo governativo com a extrema-esquerda implicou o sacrifício de alguns pontos importantes da agenda política do PS.
Tal é o caso de propostas de reformas políticas estruturais com décadas (como a revisão da lei eleitoral para a AR ou do sistema de governo das autarquias locais) ou de outras propostas políticas que tinham lugar explícito no programa eleitoral do Partido (como o imposto sobre sucessões e doações de elevado valor, a redução da TSU para os salários mais baixos, a criação de um complemento de rendimento para os trabalhadores com rendimento abaixo do limiar da pobreza, a sujeição das pensões não contributivas a "condição de recursos", a desestatização e mutualização da ADSE, a aposta no investimento público como fator crucial de elevação do crescimento económico, etc.).
Acresce o impacto político sobre o PS, neste momento impossível de estimar, da "certificação" do BE e do PCP como partidos de governo, retirando-os da condição antissistémica de "partidos de protesto" a que estavam remetidos.

2. É evidente que todos os acordos de coligação governativa são transações que implicam cedências mútuas entre os intervenientes, tanto maiores quanto mais profundas forem as diferenças que os separam à partida, como era o caso. E é também óbvio que há reformas políticas impossíveis de acordar entre o PS e os partidos à sua esquerda, incluindo as duas acima referidas e a revisão constitucional (esta, de resto, não premente).
Embora o acordo não iniba inteiramente a realização de reformas significativas sem o apoio dos parceiros de coligação, fora das áreas negociadas, como sucede com a importante reforma do regime do serviço de transporte automóvel com condutor, a verdade é que o acordo de coligação se traduz numa enorme limitação à liberdade política do Governo, quer no que respeita à obrigação de tomar as medidas acordadas (com significativos custos orçamentais), quer sobretudo quanto à impossibilidade de tomar medidas que constituam "linhas vermelhas" para os parceiros de coligação.
No fim do dia, e abstraindo de questões de principiologia política e ideológica, tudo está em saber se as vantagens do acordo valem o preço que se tem de pagar por ele. Como se trata de um "acordo em movimento" e em permanente atualização, eis um balanço que só se vai poder fazer no final. Como dizia o outro, "prognósticos só no fim".
[revisto]

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Cadáveres adiados

1. No conflito entre os taxistas e as plataformas digitais de mobilidade (Uber, Cabify, etc.), o que está em causa é saber se as regras da economia de mercado se devem aplicar ou não aos serviços de transporte automóvel de passageiros com motorista.
Ora, as principais regras da economia de mercado são a liberdade de empresa e a concorrência: concorrência na entrada na atividade, concorrência na diversidade de oferta, concorrência nos preços, de acordo com as condições do mercado (oferta e procura).
O atual regime dos táxis contradiz ponto por ponto essas regras, cancelando toda a concorrência: contingentação na entrada, uniformidade da oferta, fixação administrativa dos preços. As plataformas eletrónicas respeitam integralmente aquelas regras.

2. Como demonstrou a Autoridade da Concorrência, não existe justificação para manter os serviços de transporte automóvel de passageiros à margem das regras do mercado, pelo que o serviço de táxis deveria ser no essencial liberalizado quanto à entrada na atividade, quanto aos preços e quanto aos tipos de serviço.
Ora, ao exigirem que as plataformas de mobilidade fiquem sujeitas a contingentação e a preços mínimos, os taxistas incorrem num contrassenso. Não devem ser aquelas a serem sujeitas ao regime dos táxis, mas sim tendencialmente o inverso. Os taxistas não querem "igualdade de armas", como alegam; querem proteger o seu negócio.
De resto, se há algo que merece objeção na proposta governamental tornada pública não é o reconhecimento expresso e a regulação mínima das plataformas de mobilidade, mas sim a manutenção intocada do regime dos táxis, que aliás é um resquício da antiga economia dirigida e protecionista do Estado Novo, tal como estabelecido nos anos 40 do século passado.
Afinal, o regime dos táxis mostra que há "cadáveres adiados" que insistem em sobreviver e mesmo em reproduzir-se!
[revisto]


Adenda
Note-se que defendo publicamente a sujeição dos táxis às regras do mercado pelo menos desde 2008, quando ainda nem se sonhava com a Uber e outras plataformas digitais de mobilidade.

Adenda 2
Pela mesma altura critiquei o "corporativismo de esquerda", que leva os partidos de esquerda a defender interesses profissionais e corporativos contra a economia, em geral, e os interesses e direitos dos consumidores, em especial.

Adenda 3
Quando me refiro a "cadáveres adiados" no final do texto, é evidente que não tenho em mente os taxistas - como, por ligeireza, se diz nesta notícia -, mas sim o atual regime dos táxis, que há muito deveria ter sido revisto no sentido de abrir essa indústria ao mercado.

domingo, 9 de outubro de 2016

Est modus in rebus

É absolutamente descabida a ideia de que o responsável governamental dos assuntos fiscais não pode tomar medidas fiscais suscetíveis de beneficiar as empresas em geral só porque entre as beneficiárias poderiam estar duas empresas em que ele detém umas centenas de ações.
Só haveria algo de censurável se a medida fosse especialmente destinada a essas empresas, o que não é o caso, ou tivesse sido tomada só  para as beneficiar, o que não faz nenhum sentido na situação em causa. Também não estamos perante nenhuma decisão administrativa concreta relativa a essas empresas, em que seriam naturalmente aplicáveis as regras da imparcialidade administrativa.
Por aquela ordem de ideias, e por maioria de razão, a Ministra da Justiça estaria impossibilitada de adotar medidas favoráveis aos magistrados, por ser um deles; o Ministro do Ensino Superior estaria impedido de beneficiar a situação dos professores universitários, por ser um deles; o Ministro da Agricultura ficaria proibido de decidir políticas favoráveis aos agricultores, por ser um deles; etc.
O argumento é, portanto, manifestamente indefensável.

sábado, 8 de outubro de 2016

Doping orçamental

É evidente que o programa de incentivo ao pagamento das dívidas em atraso ao Fisco e à Segurança Social envolve um perdão fiscal, através do perdão de juros e eventuais custas processuais (que são tudo menos leves...), que é total no caso de pagamento de toda a dívida e parcial no caso de opção pelo pagamento em prestações. E também é óbvio que esta medida visa ajudar o saldo orçamental do corrente ano, em risco de exceder os limites acordados, pois o deadline foi cirurgicamente marcado para 20 de dezembro.
Nada há a censurar a este doping da receita fiscal na "última milha" da execução orçamental, tanto mais que ele também foi usado anteriormente por governos de direita, a última vez em 2013. O problema está em que na altura esse expediente foi criticado por quem agora o adota. Mesmo em política os double standards não costumam ser aplaudidos...

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

O corporativismo do "Estado Novo"


No próximo dia 13/10 vou estar na FEUC, a apresentar este livro de Álvaro Garrido sobre o Estado Novo e o corporativismo. Uma das chaves da longevidade da ditadura salazarista...

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Imaginação fiscal

1. Os compromissos da "geringonça" custam dinheiro e, na falta de dinamismo da economia, é preciso aumentar impostos para financiar a despesa adicional sem agravar o défice orçamental. A julgar pelas especulações da imprensa dos últimos dias, não falta imaginação fiscal.
Além do agravamento de algumas das variáveis de cálculo do IMI (exposição solar, etc.), que já era conhecido, há mais novidades na mesa. Resta saber se o orçamento as vai acolher todas...

2. A ideia de lançar um fat tax sobre produtos alimentares com excesso de sal, açúcar e gordura faz sentido. Além da receita fiscal que pode gerar, esse imposto combate as más práticas alimentares. Os impostos também podem e devem estar ao serviço de outros objetivos de política pública.

3. O mesmo se diga da extensão do imposto especial de consumo de bebidas alcoólicas ao vinho, que goza de uma injustificada isenção. Com a criação do fat tax, a isenção do vinho da tributação agravada das bebidas alcoólicas torna-se ainda menos explicável.

4. Outro tanto não se pode dizer da ideia de o novo imposto sobre o conjunto do património imobiliário, complementar do IMI, vir a incidir sobre o património agregado dos cônjuges, independentemente do regime de bens.
Para além das objeções aqui levantadas anteriormente sobre tal imposto, a ideia de tributação conjunta não parece razoável (salvo comunhão de bens), visto que torna cada cônjuge contribuinte pelo património do outro. Além de se poder tornar num desincentivo ao casamento (ou um incentivo ao divórcio por conveniência), essa solução é discrepante com a recente possibilidade de tributação separada dos cônjuges em IRS: se há tributação separada dos rendimentos, porque é que há de haver tributação conjunta dos bens imobiliários, tornando património comum aquilo que o não é nem os cônjuges quiseram que fosse?

Magistratura presidencial

Foi talvez o melhor discurso do Presidente da República, o do 5 de outubro, ontem, nas comemorações da implantação da República, em Lisboa.
Primeiro, pela sua concisão e clareza, sem enxúndias oratórias nem ambiguidades oportunistas. Um modelo de alocução pública.
Segundo, pela exposição e defesa clara da principiologia republicana do poder político: legitimidade popular, igualdade e universalidade, primazia do interesse público sobre os interesses particulares, separação entre o poder político e o poder económico, discrição e virtude pessoal no exercício do poder.
Terceiro, porque desta vez o Presidente se cingiu inteiramente a uma magistratura de princípios, sem se envolver no comentário de circunstância da atualidade política, em que tantas vezes se enreda e em que banaliza e desgasta a autoridade do cargo.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Eu queria que o próximo Conselho Europeu...

"Eu queria que o próximo Conselho Europeu abandonasse a deriva intergovernamental, anti-europeia, de Bratislava. Começando por reagir ao terramoto financeiro que o Deutsche Bank ameaça e às últimas notícias sobre o Brexit: uma coisa é o Reino Unido querer atirar-se para o abismo, outra é deixarmos que arraste a UE.
Queria que desmantelasse a anti-europeia "Fortaleza Europa" abrindo vias legais e seguras de acesso a refugiados e migrantes, sem os condenar a entregarem-se em mãos criminosas e à morte no Mediterrâneo; parando de replicar acordos imorais e ineficazes com governos repressivos como o turco; para travar a proliferação de muros, leis e referendos à la Orbán que, de facto, alimentam o negócio dos traficantes, ameaçando a nossa própria segurança.
Há muito que a Europa da Defesa se impõe, mas não irá longe sem estratégia nem determinação política. E têm faltado para passar mensagens dissuasórias à Rússia, que da continuada agressão na Ucrânia ao bombardeamento impiedoso em Alepo não pode sair impunemente.
Eu queria que, num assomo de coragem e réstia de sanidade europeista, a UE apoiasse o Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos, exigindo restrições ao veto dos P5 no Conselho de Segurança face à evidência de crimes de guerra e contra a humanidade que destroiem hoje o que resta da Síria e da credibilidade da União Europeia".

Minha intervenção em debate plenário no Parlamento Europeu, hoje, sobre o próximo Conselho Europeu (Outubro 20/21)

Calais - sobretudo não calar...

"Em Julho chefiei uma delegação da Comissão LIBE a Calais. Encontrámos  duas realidades bem diferentes: em Grande-Synthe, por acção de um Presidente da Câmara com sensibilidade humanista; em Calais, por inacção de uma Presidente com discurso hostil a refugiados e migrantes. A abordagem faz toda a diferença para encontrar soluções dignas para gerir um afluxo que põe muita pressão nesta região de fronteira.

Apesar de as autoridades francesas aceitarem pedidos de asilo, as pessoas com quem falamos na "Jungle" não perdem esperança de atravessar para o Reino Unido, onde têm família, conterrâneos e pensam ter futuro, porque sabem que as redes de traficantes continuam activas e passar é apenas uma questão de poder pagar. Incluindo para as centenas de menores desacompanhados que o Reino Unido tarda em deixar reunificar às famílias.

 Etíopes com quem falei na "Jungle" disseram-me que centenas dos seus compatriotas haviam chegado nas semanas antes, 2 a 3 meses depois de partirem das suas aldeias, em jornadas perigosas arriscando as vidas. 

Construir muros e continuar a recusar abrir vias legais e seguras para refugiados  e migrantes é continuar a dar negócio às redes traficantes: para além de imoral e violador dos direitos humanos, é ineficaz e só agrava a segurança europeia. Calais pode ser em qualquer praia da Europa..."


Minha intervenção em debate plenário no Parlamento Europeu, ontem, sobre  a situação de migrantes, refugiados e população local em Calais

 

Conflitos de Interesses

"A contratação do ex-Presidente da Comissão pela Goldman Sachs, o caso do Comissário Cañete e a ocultação de interesses offshore pela ex-Comissária Kroes alimentam o discurso populista e eurofóbico porque alimentam a justa desconfiança e a ira dos cidadãos. 

É inadmissível que Barroso continue a receber pensão paga pelos contribuintes, enquanto serve a Goldman Sachs - que visitou à socapa em 2013, quando era Presidente da Comissão Europeia. Uma comissão de ética ad hoc não basta: o caso Barroso deve ir ao Tribunal de Justiça.

 É preciso reforçar regras sobre “portas giratórias” entre sector público e privado, alargar os períodos de nojo e incompatibilidades. São precisas sanções por violação das mais elementares regras de transparência e ética. São precisos registos detalhados dos interesses financeiros de lobistas e consultores junto da Comissão, do Parlamento e do Conselho.  As medidas propostas pela Comissão são manifestamente insuficientes. 

Restabelecer a confiança dos cidadãos exige reforma firme e radical. Na Comissão de Inquérito do PE sobre os Panamá Papers e os Bahamas Leaks vamos trabalhar para isso."


Minha intervenção em debate plenário no Parlamento Europeu, ontem, sobre "Conflitos de Interesses"

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

40 anos da CRP


No próximo dia 7/10 vou participar na sessão evocativa dos 40 anos da CRP promovida pela Universidade Católica do Porto, com intervenção no painel sobre a "constituição económica".
O programa integral pode ver-se aqui.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Negócio da China

Excelente negócio o das autarquias do Grande Porto, que vão passar a governar os STCP, apesar de estes continuarem propriedade do Estado e de este continuar a assegurar os custos da enorme dívida e os custos dos novos investimentos.
De facto, adquirir a gestão dos transportes urbanos sem ter de financiar ao menos os novos investimentos necessários (que vão continuar a ser suportados pelos contribuintes de todo o País) é efetivamente um "negócio da China". Quando são os outros que pagam, nada é caro...
Há de haver uma explicação para o facto de os transportes de Lisboa e do Porto não serem da responsabilidade, incluindo financeira, dos respetivos municípios e serem cofinanciados pelos contribuintes do resto País, que já financiam integralmente os seus próprios transportes urbanos. Será que este singular privilégio decorre do facto de quase todo o pessoal político viver em Lisboa e no Porto?

Mudar algo para que tudo fique na mesma

Enjeitando de todo em todo as recomendações do grupo de peritos nomeados para pensar o futuro do sistema de saúde dos funcionários públicos, o Governo preferiu seguir as posições do sindicatos da função pública e dos partidos da aliança parlamentar e manter a ADSE na esfera pública, agora sob a forma de instituto público com participação dos beneficiários na sua gestão.
Continua a ser um enigma saber porque é que um Estado que constitucionalmente tem de manter um SNS universal (ou seja, para toda a gente) há de assegurar paralelamente um sistema de saúde privativo para o seu pessoal. A única explicação para essa regalia é a de que os funcionários públicos são uma importante constituency eleitoral...