quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Tolémica

Rui Tavares tem toda a razão neste artigo: a pseudopolémica sobre a ausência da Costa nas exéquias de Mário Soares, por se encontrar em visita oficial à Índia, é mesmo uma "tolémica".
Aliás, estúpida, além de tola.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Contra

Entendo bem que o Governo mantenha na mesa a hipótese de nacionalização do Novo Banco, a fim de aumentar o seu poder negocial face aos candidatos à privatização. Mas, por menos que esta renda ao Fundo de Resolução - ao qual o Estado teve de emprestar quase todo o custo da resolução do BES -, entendo que a nacionalização seria a pior opção, por várias razões:
  - por a nacionalização não estar equacionada nas hipóteses negociadas com o BCE aquando da resolução do BES e exigir, portanto, uma nova negociação de resultado incerto e de duração indefinida, mantendo a atual incerteza e instabilidade sobre o futuro do banco de transição;
  - porque a nacionalização envolveria um significativo encargo financeiro do Estado, pois além do valor da nacionalização teria de desembolsar a necessária recapitalização do Banco, sobrecarregando o endividamento público, quando os juros da dívida pública não mostram sinais de alívio (pelo contrário);
  - por a nacionalização, mesmo temporária, envolver riscos não despiciendos para o Estado na gestão do NB e implicar o adiamento da necessária e definitiva superação dos efeitos da crise financeira no sistema financeiro nacional;
  - porque a entrada do NB na esfera pública iria duplicar os problemas que o Estado já tem com a CGD, incluindo a questão da sua governação.

Ai, a dívida!

1. Eu não estaria tão seguro com o facto de Portugal ter «um dos maiores saldos [orçamentais] primários da União Europeia» [saldo das contas públicas sem contar os encargos da dívida]. Infelizmente, isso não chega para nos colocar fora da zona de risco da dívida pública, como mostra a recente subida dos juros para cima dos 4%.
A verdade é que que também somos um dos países com mais elevado endividamento público e somos mesmo o país da zona euro com maior peso relativo dos encargos da dívida no orçamento, dada o menor custo médio da dívida da Itália e dadas as concessões que foram feitas à Grécia (nomeadamente o período de carência no pagamento de juros e da dívida). Logo, se temos os maiores encargos com a divida, deveríamos ter também o maior saldo primário. 
Ora, em 2016 o valor do saldo primário não deve atingir nem sequer metade dos encargos da dívida. Continuamos, portanto, a pedir muito dinheiro para pagar juros, acrescentando dívida à dívida!

2. Tenho defendido várias vezes uma prioridade política à diminuição da dívida, de modo as baixar os juros, reduzir o diferencial destes em relação aos da dívida alemã e corrigir a notação negativa das agências de rating. Além de pagarmos mais do que outros países para obter dinheiro, não podemos continuar "com o coração nas mãos", suspensos da notação periódica da única agência que nos mantém à tona no mercado da dívida (a DBRS) e temerosos do próximo episódio de instabilidade dos mercados ou da provável revisão da política monetária expansionista do BCE.
Neste contexto, importa não tergiversar sobre as metas da consolidação orçamental e cortar decididamente com a retórica da "reestruturação da dívida", que só pode gerar nervosismo nos mercados e aumentar o prémio de risco da dívida portuguesa. Parece evidente que os credores oficiais não vão equacionar sequer a hipótese de aliviar o fardo da dívida (por exemplo, prolongando o calendário de reembolsos), enquanto não estiverem seguros de que Lisboa não aproveita a folga para se endividar ainda mais.

Adenda
A emissão de hoje de títulos a 10 anos com o juro mais elevado desde a saída da troika, e bem acima do juro médio da dívida pública portuguesa, revela bem os riscos da situação existente e constitui mais um sinal de alerta.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Passada a tempestade

Já depois de publicado o post precedente, foram divulgados a meio do dia de hoje dados oficiais que indicam uma forte recuperação da economia da zona euro, o que confirma a análise aqui apresentada.
Boas notícias também para Portugal, tanto mais que os nossos principais parceiros comerciais são países da zona euro, pelo que o nosso país pode ser arrastado pelo referido dinamismo económico europeu. O único senão resulta do facto de a retoma económica e a provável subida da inflação na zona euro poderem obrigar o BCE a moderar a sua política monetária expansionista, com reflexos negativos para os custos da dívida pública.

O milagre de São Draghi


1. Foi em julho de 2012 no auge da crise financeira, que já ameaçava a estabilidade do euro - com três países sob assistência financeira externa, uma recessão económica em quase toda a União e a terrível ameaça da deflação -, que o governador do Banco Central Europeu, Mário Draghi tomou o célebre compromisso público de "fazer o que fosse necessário e suficiente" para preservar a moeda única.
Desde então não faltou determinação nem ousadia ao BCE, quer quanto às medidas de intervenção próprias (convencionais e menos convencionais) quer no incentivo às reformas que levaram, por exemplo, ao Tratado Orçamental e ao lançamento da união bancária e do mecanismo único de supervisão.

2. Quase cinco anos passados, acumulam-se os indícios de que a União está em vias de vencer definitivamente a guerra do Euro: está instalada, em ritmo ainda lento mas seguro, a retoma do crescimento económico e do emprego, da consolidação orçamental e da redução do endividamento público, acompanhada do afastamento do risco da deflação (inflação já superior a 1%), bem como do aumento consistente do sentimento positivo dos agentes económicos. Até a Grécia está a crescer de novo, a reduzir os juros implícitos da sua dívida e a encarar a hipótese de voltar ao mercado da dívida antes do termo do seu programa de assistência!

3.  A confirmar-se o fim das provações agudas em Atenas, a Grécia juntar-se-á à Irlanda e a Portugal como casos bem-sucedidos de saída de graves crises orçamentais e económicas através da assistência externa condicionada a dolorosas políticas de austeridade orçamental e de reforma económica.
Essas medidas tiveram elevados custos sociais e políticos; mas a estória do seu insucesso é uma evidente ficção, tendo em conta os seus resultados.
Se não houver terramotos políticos nas eleições programadas para este ano (Holanda, França, Alemanha) nem inesperados choques políticos externos, o ano de 2017, ao contrário dos maus augúrios, pode bem ser o ano que marca o encerramento da crise económica e financeira que abalou o Euro e a integração europeia.
E se há uma personalidade singular cuja estatura emerge bem alta deste prolongado e atribulado processo é, indubitavelmente, a do presidente do BCE.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Mário Soares (1924-2017)



1. Se há uma personalidade que pode personificar politicamente o atual regime democrático em Portugal é indubitavelmente Mário Soares, verdadeiro "patriarca" desta República.
Ele protagonizou todas as grandes etapas da transição e consolidação democrática: a militância contra a longa ditadura do chamado Estado Novo (que lhe valeu a prisão, a deportação e o exílio); a revolução do 25 de abril, a democratização e a descolonização; a estrénua luta pela democracia constitucional e contra a cooptação da revolução pela esquerda radical; a consolidação da democracia parlamentar contra as tentações presidencialistas e caudilhistas; o porfiado empenho na adesão de Portugal ao processo de integração europeia.

2. Como fundador e presidente do PS, como ministro e depois primeiro-ministro, como Presidente da República, como deputado ao parlamento nacional e ao parlamento europeu, Mário Soares foi capaz de manter inabalável a sua enorme convicção, carisma e combatividade ao serviço da democracia liberal, do Estado social e da integração europeia, os três valores que pautaram quase toda a sua vida.
Os grandes homens moldam a história. Portugal não seria a democracia nem o País que é sem Mário Soares. Felizes os países que podem beneficiar tão decisivamente com a ação de personalidades desta estatura. Aqui fica o meu reconhecimento pessoal.

Esquizofrenia territorial

1. É justificada a reabertura parcial de vários dos tribunais encerrados no âmbito da reforma judicial realizada pelo anterior Governo, que lima algumas arestas da nova geografia judicial do País.
Mas com essa pequena cirurgia a reforma da geografia dos tribunais judiciais mantém e consolida um dos seus traços mais censuráveis, que foi a opção pelos antigos distritos como base territorial das comarcas judiciais, em vez das comunidades intermunicipais (CIMs), de menor dimensão territorial, que tinham estado na base da tentativa de reforma do Ministro Alberto Costa, no Governo do PS de 2005-2009.

2. Na verdade, a "distritalização" judicial contribui para reforçar indevidamente o dualismo assimétrico entre a velha divisão distrital do território continental e a nova divisão territorial baseada nas unidades de referência estatística implantadas há mais de trinta anos, ou seja, as NUTS III (que constituem o substrato territorial das CIMs) e as NUTS II (que formam a base territorial das cinco grandes unidade das administração desconcentrada do Estado, delimitando a jusrisdição das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional - CCDRs).
Mais de quarenta anos depois da CRP, que extinguiu os distritos como autarquias territoriais e determinou a criação das regiões administrativas, a revivescência dos distritos preclude cada vez mais a criação das mesmas e a coabitação da duas divisões territoriais com lógicas distintas e fronteiras discrepantes só serve para impedir uma leitura consistente do território nacional e uma articulação adequada das políticas públicas e da descentralização territorial.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Quando a ideologia prevalece sobre a racionalidade

1. A proposta do BE para acabar com as PPP existentes quanto à gestão de alguns hospitais do SNS revela mais uma vez a irresponsabilidade das suas propostas políticas e como a ideologia prevalece sobre a análise racional dos problemas.
É evidente que, contrariamente às contas demagógicas apresentadas, a eventual reversão dessas PPP não faria o orçamento do SNS beneficiar dos 450 milhões pagos às empresas privadas em causa, visto que as despesas desses hospitais passariam a ser encargo direto do Estado.
Ora, as PPP só existem no pressuposto de que o seu custo para o Estado é inferior ao da gestão pública, mercê dos ganhos de eficiência proporcionados pela gestão privada e dos constrangimentos próprios da gestão pública (em matéria de contratação de bens e serviços, regime de pessoal, flexibilidade na gestão, etc.). Nesse sentido, se bem negociadas e implementadas, as PPP podem ser uma mais valia e não um prejuízo para o SNS.

2. De resto, tendo um prazo de vigência relativamente curto, as referidas PPP podem ser sempre reavaliadas e submetidas a novo procedimento concursal, com novas condições; ou descontinuadas, se for caso disso. Por isso, equacionar a cessação geral das PPP só faria sentido se se provasse, em todos os casos, que elas não cumprem efetivamente as vantagens que as justificam (incluindo a introdução de uma salutar competição entre a gestão pública e a gestão privada dentro do SNS).
Mas para os dogmas neocomunistas isso pouco importa.

Adenda
A proposta bloquista é tanto mais pedestremente ideológica quanto é certo que na recente avaliação da qualidade dos hospitais efetuada pela Entidade Reguladora da Saúde, dois dos três melhores hospitais do SNS estão em regime de PPP!

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Regresso ao corporativismo? (2)

1. Ao preparar o post antecedente, reparei que, além da publicidade a uma empresa de seguros, o site da OM anuncia também um "Seguro Exclusivo Ordem dos Médicos" de outra companhia.
Suscitam-se aqui duas questões: primeiro, pode o site de um organismo oficial inserir publicidade comercial? E pode uma ordem profissional patrocinar serviços comerciais de terceiros?
Também reparei que o site da OM tem uma secção sobre "beneficios sociais", que porém não é acessível ao público, estando a informação reservada aos membros da Ordem -, o que deixa muito a desejar em matéria de transparência num organismo público.
A questão que estes benefícios sociais suscitam é a seguinte: podem as ordens profissionais prestar aos seus membros, ou financiar, serviços alheios à sua missão legal?

2. Ora, depois da Lei-Quadro das ordens profissionais, é evidente que elas não podem dedicar-se a tarefas alheias às suas atribuições oficiais (como organismos públicos que são), não cabendo entre aquelas a prestação, o agenciamento ou o patrocínio de seguros para os seus membros nem a prestação de quaisquer outros serviços para além dos previstos na lei (onde se incluem a informação e formação profissional).
As ordens profissionais não são mutualidades nem organismos de proteção social, pelo que não podem dedicar os seus recursos financeiros - que são tributação pública - a quaisquer outros serviços estranhos às suas tarefas legais de regulação e supervisão da profissão médica,

3. Estes indícios de que a OM está a atuar à margem da lei talvez devessem suscitar a atenção da tutela e do Ministério Público.
Mais um vez, no "Estado corporativo" é que as ordens também eram organismos de prestação de outros serviços complementares aos associados (incluindo a segurança social). Mas a era corporativa passou há muito - definitivamente!

Regresso ao corporativismo?

1. É de questionar a legalidade deste pretenso regulamento da Ordem dos Médicos sobre o regime de trabalho do internato médico, que na verdade é uma revisão do "regulamento" já existente, contendo "orientações" (sic) sobre a matéria. São várias as razões da sua ilegitimidade.
Primeiro, não se vê qual pode ser o fundamento legal deste regulamento nos Estatutos da Ordem ou noutra lei, sendo certo que o tal regulamento não indica essa base legal (o que o torna à partida inválido) e que a regulamentação do internato compete legalmente ao Governo. Segundo, a missão da Ordem diz respeito somente ao acesso à profissão e à prática médica, não às relações profissionais nem à organização do trabalho nos hospitais ou clínicas; isso é matéria do foro sindical, que está constitucionalmente vedada às ordens profissionais. Terceiro, parece óbvio que a autoridade e o poder disciplinar sobre os diretores clínicos quanto à organização das urgências pertencem à direção institucional dos hospitais e não às ordens profissionais, por não terem a ver com o exercício da profissão médica. Por último, a lei-quadro das ordens profissionais diz expressamente que os seus regulamentos sobre «os estágios profissionais, as provas profissionais de acesso à profissão e as especialidades profissionais só produzem efeitos após homologação da respetiva tutela, que se considera dada se não houver decisão em contrário nos 90 dias seguintes ao da sua receção».
Por tudo isto, parece óbvio que o referido "regulamento" da OM incorreria em vício de incompetência absoluta, não podendo por isso ser posto em prática, mesmo que as tais "orientações" pudessem ser tidas como verdadeiras normas.

2. Extinguiu-se há muito o regime corporativo do Estado Novo, em que as ordens tinham a natureza híbrida de (i) organismos de regulação e supervisão do acesso e do exercício da profissão e de (ii) organismos sindicais de defesa de interesses profissionais nas relações de trabalho. Quarenta anos depois da CRP de 1976, convém não reverter essa antiga mudança.
Às ordens cabe exclusivamente a regulação /supervisão da formação e da prática profissional; aos sindicatos, a defesa dos interesses do médicos nas relações de trabalho. As ordens não são sindicatos nem podem atuar às ordens ou a instância dos sindicatos, nem como "braço legislativo" dos mesmos, o que seria um manifesto "desvio de poder" (como parece ser o caso, à vista deste comunicado conjunto).

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Pobre Língua


1. A frase que encima esta notícia do Diário de Noticias digital de hoje está obviamente errada. Qualquer gramática de Português indica que a preposição "de", ou as locuções prepositivas compostas por "de", não se fundem ou contraem com o artigo seguinte (definido ou indefinido) ou com um pronome quando o verbo da frase está no infinitivo, como é caso. A frase correta seria: «Ministro não descarta hipótese de o Hospital de Cascais ter gestão pública».
Infelizmente, trata-se de um erro cada vez mais vulgar, mesmo onde menos seria de esperar, como é o caso de um jornal de referência.

2. O progresso tecnológico provocou o desaparecimento de muitas profissões ao longo dos tempos, à medida que os seus serviços foram sendo tornados obsoletos, desde os arautos aos almocreves, passando pelos aguadeiros e os cantoneiros, entre muitos outros. Mas há outros ofícios que não deviam  ter desaparecido, porque fazem muita falta, como é o caso dos revisores de imprensa, que corrigiam os textos antes da impressão dos jornais e dos livros.
Sucede que, apesar do aumento da escolaridade obrigatória, a escola deixou de ensinar a falar e escrever bom português, sendo frequente encontrar inúmeros erros ortográficos e sintáticos em textos de estudantes universitários e, mesmo, de graduados. Mas um país que não leva a sério o ensino da Língua dificilmente será um país culto.

Adenda.
Há duas semanas, o semanário Expresso, ao transcrever a primeira frase deste meu post, decidiu substituir "idiossincrásico" por "idiossincrático", como se a primeira fórmula estivesse errada e a segunda fosse a única admissível. Mas não é assim: ambas são admissíveis, pelo que o jornal deveria ter respeitado a minha versão.

Adenda 2
A peça do DN, cujo título foi acima reproduzido, foi entretanto corrigida, como se vê por esta nova versão (que no entanto mantém o erro originário no link: http://www.dn.pt/portugal/interior/ministro-nao-descarta-hipotese-do-hospital-de-cascais-ter-gestao-publica-5583618.html).
Também verifiquei que a mesma notícia com o mesmo erro saiu noutros jornais - como, por exemplo, no Correio da Manhã -, o que deixa entender que se trata da reprodução de uma peça da agência Lusa, que aliás é citada na notícia. Tal, porém, só agrava a situação: temos a agência oficial a incorrer num erro de palmatória e dois jornais a reproduzirem-no acriticamente.

Levar a teoria à prática

O Primeiro-Ministro afirmou, com toda a razão, que «as autarquias locais são as que estão mais bem posicionadas para gerir o transporte público».
Não digo outra coisa repetidamente desde há décadas, para defender a remunicipalização dos transportes públicos de Lisboa e do Porto, estatizados na voragem das nacionalizações de 1975 e desde então a cargo do Estado, com enormes custos orçamentais. Por isso não posso deixar de saudar a decisão deste Governo de transferir a Carris e a os STCP para os municípios da Lisboa e da AMP respetivamente.
Só é de lamentar, todavia, que a remuncipalização seja incompleta e parcial. É incompleta, porque, além de a elevada dívida das empresas permanecer no Estado (ou seja, a cargo de todos os contribuintes do País), este continua a comparticipar nos investimentos dos STCP, mesmo depois da transferência da gestão para os municípios beneficiários. É parcial, porque em ambos os casos fica de fora o metropolitano, que é tão "transporte público" urbano como o serviço rodoviário e que por isso deveria ser também transferido para os municípios.
Enquanto isso não ocorrer, como tenho dito várias vezes, o Estado vai continuar a espoliar o resto do País em benefício do Lisboa e o Porto.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

O que o Presidente não deve fazer

No nosso sistema constitucional não faz sentido que o Presidente da República se encarregue de anunciar publicamente medidas governamentais.
Entre as suas funções não cabe seguramente a de porta-voz ou arauto do executivo. Nem o Governo lhe deve delegar tal tarefa nem ele deve assumir um tal função. É positivo que o Presidente proporcione as melhores condições institucionais ao Governo, mas toda a confusão de papéis e funções é negativa para a perceção pública das competências constitucionais e responsabilidades políticas de cada um.

Luzes e sombras

Ao iniciar um novo ano, Portugal compara favoravelmente com muitos outros países em matéria de estabilidade política, paz social, ausência de movimentos xenófobos ou populistas, imunidade ao terrorismo internacional. E mesmo na frente económica e social o País registou, embora menos do que o previsto e necessário, alguma retoma económica, recuperação do emprego e consolidação orçamental.
Há, todavia, que anotar também as principais vulnerabilidades, nomeadamente a enorme quebra do investimento público, o aumento da despesa pública permanente, o baixo nível da poupança nacional e o excesso de consumo, o aumento da dívida pública e do respetivo custo. Os dois fatores que muito contribuíram  para o relativo desafogo económico e financeiro corrente - petróleo barato e dinheiro barato - não vão durar sempre. E a "política de devolução de rendimentos" tem limites orçamentais, tanto maiores quanto menor for o crescimento económico e quanto maior for a pressão da dívida pública...

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Espoliação

1. Só no primeiro semestre, os transportes de Lisboa e do Porto acumularam prejuízos superiores a 200 milhões de euros, muito acima dos orçamentados.
Como o Governo reverteu a concessão desses transportes à gestão privada e como somente a Carris foi agora transferida para o município de Lisboa (deixando porém a dívida com o Estado...), esses encargos adicionais vão obviamente pesar sobre os todos contribuintes nacionais.
Entretanto, apesar deste agravamento do défice, o Governo anuncia um aumento das tarifas limitado à taxa de inflação esperada, com o bónus de um desconto no IRS, ou seja, mais um financiamento do orçamento nacional.

2. Se se entende que os transportes públicos de Lisboa e do Porto sejam subsidiados, então que os encargos recaiam sobre os municípios respetivos e não sobre os contribuintes de todo o país, incluindo aqueles que já suportam integralmente os custos dos seus próprios transportes municipais. Os contribuintes em geral não têm de suportar a política de baixas tarifas, as regalias laborais e a ineficiência dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto.
O privilégio de Lisboa e do Porto constitui uma espoliação do resto do País.

Adenda
A dedução no IRS não aproveita a quem mais precisa, que são as pessoas que não têm rendimentos suficientes para pagar o imposto. Portanto, trata-se de uma medida socialmente regressiva.

Universidades SCUT

1. Uma das invenções mais deletérias para as finanças públicas nos últimos vinte anos foi a das autoestradas SCUT (sem custos para os utentes), que puseram a cargo de todos os contribuintes o pagamento das rodovias de valor acrescentado, em vez dos beneficiários das mesmas. As autoestradas CCC (com custos para o contribuinte), como dei em chamar-lhes, foram um enorme erro, que vamos pagar por muito mais tempo.
O Bloco de Esquerda propõe-se agora criar as universidades SCUT, segundo o mesmo princípio de que aquilo que aproveita a alguns seja pago por todos. Na verdade, o que o Bloco propõe é que a sua juventude estudantil seja financiada pelos impostos de todos, incluindo os da classe operária, que não foi para a universidade nem pode mandar os filhos. Eis um inovador princípio revolucionário de justiça social.

2. Ora, o ensino superior, que está longe de ser um serviço universal, constitui sobretudo um investimento individual para os seus beneficiários (melhores qualificações profissionais e melhores remunerações). A progressiva democratização do ensino superior deve ser assegurada por bolsas de estudo, que não se limitem a custear as propinas, a fim de garantir a igualdade de oportunidades a quem tem menos recursos.
Terminado definitivamente o tempo das "vacas gordas" orçamentais, quanto mais gratuita for a frequência, menos dinheiro haverá para o ensino superior e para bolsas de estudo e mais seletivo será o acesso, contra o que alegadamente pretendem os defensores da gratuitidade.
Contradições que o dogmatismo ideológico tece...

Salário mínimo subsidiado

Vai ser a mesma solução do ano passado, agravada. As empresas vão ser compensadas com um desconto na TSU para aceitarem o aumento do salário mínimo, ou seja, um salário mínimo subsidiado pela segurança social.
Continuo a pensar, tal como há um ano, que é uma má solução. Por um lado, reconhece-se que há empresas que não poderiam aguentar o aumento do salário mínimo sem reflexos negativos sobre o emprego, mas por outro lado, por razões políticas (acordo à esquerda), sobe-se o salário mínimo artificialmente, sem sobrecarregar demasiado as empresas, mas à custa da segurança social. Ora, entre as missões da segurança social não consta a de financiar salários em vez das empresas.
Julgo que, em vez de elevar o salário mínimo acima do que a economia permite, só para as estatísticas internacionais, seria mais apropriado implementar uma medida que constava do programa do PS, de criar um suplemento de rendimento para os trabalhadores empregados com remunerações muito baixas, ponto que ficou na gaveta, vítima do acordo com a extrema-esquerda parlamentar.

Adenda
Vale a pena ler este texto de Luís Aguiar-Conraria sobre os efeitos perversos de um salário mínimo comparativamente elevado (como eu próprio já tinha lembrado aqui).

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Maniqueismo

Já se sabia que, desmentindo a famosa tese da "espiral recessiva", a saída da grande crise se iniciou na frente económica logo no final de 2013 e na frente do emprego durante 2914. Fica-se agora a saber que, contrariando a tese do "circulo vicioso do empobrecimento", já em 2015 houve uma redução do risco de pobreza, iniciando o alívio da crise na frente social.
Sem dúvida, a retoma tem sido lenta e ainda não se regressou aos níveis económicos e sociais de antes da crise e da recessão que ela arrastou. Resta saber em que estado estaríamos se não tivesse havido a assistência financeira externa, a austeridade orçamental que ela impôs e o posterior regresso ao mercado da dívida.
As narrativas maniqueístas contam a história por metade.

Filhos e enteados

1. Através do Ministro das Infraestruturas ficamos a saber que o orçamento para 2017 reserva apenas 50 milhões para investimento na renovaçao do material circulante da CP - deixando portanto de lado a aquisição de novos comboios, como proposto pela companhia ferroviária pública - e 100 milhões para o investimento na rede ferroviária, o que dá para financiar apenas uma pequena parte dos compromissos públicos anunciados nessa área. Nada ficamos a saber sobre o investimento previsto para os anos seguintes.
Entretanto, através do Ministro do Ambiente - que surpreendentemente tem a seu cargo os transportes públicos de Lisboa e do Porto -, sabemos que o Governo vai investir proximamente mais de 200 milhões no metropolitano de Lisboa e ainda mais no metropolitano do Porto.

2. Para além de ser injustificável que o país pague os transportes locais de Lisboa e do Porto através do orçamento do Estado - pois deviam ser uma responsabilidade municipal ou intermunicipal, como já aqui referi várias vezes -, a enorme diferença de investimento público nos dois transportes locais e na ferrovia nacional mostra bem a ordem de prioridades territoriais.
Por mais que a proximidade das eleições locais justifique a prodigalidade no investimento do Estado nas duas principais cidades do país, a secundarização do modo ferroviário, já tão prejudicado ao longo dos anos pelo investimento prioritário na rede rodoviária, pode hipotecar gravemente o futuro do setor, que diz respeito ao País em geral.

Adenda
Todos os partidos são apóstolos da descentralização territorial e do princípio da subsidiariedade. Mas quando vemos que cabe ao Governo fixar os preços dos transportes urbanos - que obviamente deveriam ser uma questão municipal - vemos que vai uma enorme distância entre as proclamações e a prática política.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O que o Presidente não deve fazer

1. Era de temer que o idiossincrásico ativismo político do Presidente da República pudesse levar a incidentes embaraçosos, como o que ocorreu na sessão de encerramento do Teatro da Cornucópia, em que Marcelo Rebelo de Sousa protagonizou frente às câmara de televisão uma inopinada "conciliação" ao vivo entre o responsável pelo TdC e um constrangido Ministro da Cultura, tomado de surpresa pela iniciativa presidencial e compelido a comprometer-se precipitadamente a revisitar o caso do subsídio público ao teatro.
De uma assentada, o PR fez três coisas que devia cuidadosamente evitar: (i) intrometer-se numa questão concreta do foro governamental; (ii) envolver-se num diálogo político direto com um ministro setorial, quando o seu interlocutor institucional é por definição o Primeiro-ministro;  (iii) patrocinar uma solução política excecional para um caso concreto, em violação flagrante do princípio da igualdade de tratamento.

2. Há dias um comentador dizia, referindo-se às recorrentes incursões opinativas de Belém na esfera da competência governativa, que o PR não precisa de fazer de primeiro-ministro. Nunca estivemos tão próximo disso como neste infeliz caso da Cornucópia.
Mas MRS não deve evitar somente assumir o papel de primeiro-ministro num teatro; deve também evitar aparecer como treinador, chairman ou maestro do Governo, que ele não é, nem pode ser. Não basta manter em relação ao Governo uma inequívoca neutralidade político-partidária, que a sua função constitucional exige, mas também manter uma prudente distância política, que a separação de poderes recomenda.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A União Europeia falha porque falta

"Alepo jaz massacrada, Putin e Assad exultam. Incapaz de agir, que resta de credibilidade ao Conselho Europeu?

A Europa falha porque falta. Na Ucrânia agredida e ocupada pela Rússia. E na Síria, no Iraque, no Yemen, na Libia, na Palestina, onde Estados Membros não só não se coordenam mas rivalizam. A vender armas e noutros sórdidos negócios com regimes que fazem guerras por procuração instrumentalizando grupos terroristas, como o saudita, o qatari, o turco.

Não admira que Putin, Erdogan, em breve Trump, se afeiçoem a chantagear e encurralar uma Europa em retrocesso intergovernamental anti-integracão, a reboque de um governo alemão sem estratégia, que pode querer apaziguar, mas de facto alimenta populismos xenófobos.

Do euro incompleto que semeia divergência e desigualdade, à fiscalidade não harmonizada que desvirtua mercado interno e aproveita à corrupção e crime organizado, passando pela Fortaleza Europa que entrega migrantes e refugiados a redes de traficantes e radicaliza os seus próprios jovens dando recrutas à hidra terrorista: esta não é a União Europeia da paz, dos direitos humanos, da solidariedade e do progresso. 

Esta Europa inter-governamental não nos protege, nem defende: destrói-se, pondo em causa a nossa segurança e a segurança global."


Minha intervenção em plenário do Parlamento Europeu, esta manhã, sobre a preparação do próximo Conselho Europeu (15.12.2016)


terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Sem pés para andar

Tomada à letra, a notícia de que «a Academia de Ciências de Lisboa vai rever o Acordo Ortográfico» não tem pés nem cabeça.
Sendo uma convenção internacional, o AO só poderia ser modificado por acordo entre os governos dos países que o ratificaram. Ora, que se saiba, não existe nenhuma iniciativa oficial nem oficiosa nesse sentido, nem se vislumbra nenhuma perspetiva de vir a ser dado algum passo nessa direção. Portanto, o máximo que se pode dizer é que a Academia (ou o seu presidente, não se sabe bem), por sua livre iniciativa, decidiu apresentar publicamente uma proposta de revogação do AO e da sua substituição por uma "convenção" (o que quer que isso seja).
Fica bem à Academia, de vez em quando, fazer prova pública de vida. Mas, se bem julgo, as hipóteses de essa ideia ser levada a sério oficialmente são iguais a zero. Se fosse membro da tribo anti-AO não depositava nenhuma esperança nessa iniciativa.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Um pouco mais de cultura constitucional, sff

1. Em relação ao meu penúltimo post, sobre o caso Fernanda Câncio, um leitor comenta que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são um «pilar essencial de uma sociedade democrática».
Não podia concordar mais. Mas com a mesma convicção afirmo que o respeito pela intimidade da vida privada é um pilar essencial de uma sociedade decente. E afirmo mais: que para ser um pilar essencial de uma sociedade democrática, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa não precisam nada de atentar contra o direito à intimidade da vida privada.
A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa nasceram para garantir a liberdade de informação e para assegurar a externalização pública da liberdade de pensamento e de opinião em matéria política, religiosa, económica, filosófica, artística e cultural, bem como para denunciar os abusos do poder público ou privado. Para isso não precisam nada de invadir a esfera da privacidade das pessoas.

2. No caso concreto, a tese do tribunal de que o deferimento da providência cautelar contra o livro de Saraiva equivaleria a "censura" assenta num quádruplo equívoco:
  - primeiro, a censura designa a sujeição da informação ou opinião ao controlo ou punição do Governo ou das autoridades administrativas, não a aplicação das medidas judiciais previstas na lei contra os abusos da liberdade de imprensa;
  - segundo, ao dar proteção absoluta à liberdade de expressão, o tribunal desprotegeu em absoluto o direito à intimidade da vida privada, que não goza de menor proteção constitucional (pelo contrário);
  - terceiro, o respeito pela intimidade da vida privada não constitui uma restrição em sentido próprio da liberdade de imprensa, mas sim um "limite imanente", decorrente da própria Constituição, não podendo ser equiparado às restrições estabelecidas por lei (embora com base na Constituição), por exemplo, o segredo de Estado ou o segredo de justiça;
  - por último, ainda que o direito à intimidade da vida privada tivesse de ser comprimido em homenagem à liberdade de expressão, mesmo assim essa operação teria de obedecer às condições constitucionalmente estabelecidas para a restrição de direitos, liberdades e garantias (necessidade, proporcionalidade, respeito pelo núcleo essencial, etc.), o que não se verificou.
Nos tribunais convém um pouco mais de cultura constitucional.

3. Compreende-se que a imprensa tablóide e o "jornalismo de sarjeta" (na célebre expressão de uma antiga presidente do Sindicato dos Jornalistas) cultivem o voyeurismo e explorem publicamente a vida sexual de conhecidos e desconhecidos, invocando abusivamente a liberdade de imprensa para defender esse nicho de mercado.
Já se compreende menos que a imprensa séria condescenda com esse abuso da liberdade de imprensa, ou seja cúmplice pelo silêncio.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Direito de Resposta



Um direito constitucional pouco conhecido e escassamente exercido.
Inscrições aqui!

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Populismo judicial

1. Tem inteira razão a jornalista Fernanda Câncio, quando se rebela contra a denegação judicial da providência cautelar por ela requerida contra o livro de J. A. Saraiva, por invasão da intimidade da sua vida privada. Se o livro é uma provocação jornalística, a sentença é um despautério judicial.
Não é por acaso que a Constituição coloca à cabeça dos "direitos, liberdades e garantias pessoais" o direito à vida, o direito à integridade pessoal e outros "direitos pessoais", entre os quais o direito à reserva da intimidade da vida privada. Trata-se de direitos de defesa do património pessoal de todas as pessoais contra a invasão externa, seja pelo poder público, seja por terceiros (já que os direitos, liberdades e garantias valem diretamente nas relações entre privados).
Por isso, o direito à intimidade da vida privada - que não pode deixar de cobrir a vida sexual - não pode ser sacrificado à liberdade de expressão ou à liberdade de imprensa, e a garantia destas não pode nunca afetar o núcleo essencial daquele.

2. Sucede, porém, que nos últimos anos, como tenho denunciado várias vezes, se verifica uma desconsideração geral dos direitos de personalidade em prol da absolutização da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa.
Até agora, por influência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, essa primazia absoluta da liberdade de imprensa valia somente em relação aos políticos, em alegada homenagem ao valor da transparência e responsabilidade especial da ação política, e a vítima era em geral o direito ao bom nome e reputação.
Pelos vistos, a ter em conta esta desastrada decisão, e ainda mais a sua insustentável justificação, a liberdade de expressão passa a autorizar também a aniquilação do direito à reserva da vida privada e passa a abranger não somente os políticos mas também quem teve a má ideia de ser namorada de um político. Abyssus abyssum!

3. Vivemos num mundo bizarro, a este respeito. Por um lado, há um coro de protestos, em nome da reserva da vida privada, contra um alegado excesso das autoridades públicas no acesso aos dados pessoais, incluindo os saldos bancários, mesmo que não haja a sua divulgação pública nem seja evidente que os dados bancários integram a reserva da intimidade da vida privada; por outro lado, porém, aceita-se passivamente, e até se aplaude, que se revelem publicamente informações (verdadeiras ou falsas, pouco importa) sobre a vida sexual de pessoas comuns, neste caso de uma cidadã, só por ter tido uma relação com um antigo primeiro-ministro.
A justificação está na onda populista que entende que não há nenhum limite à invasão da intimidade das pessoas conhecidas, por maioria de razão quando se trata de políticos ou de quem com eles conviva ou tenha convivido. Esta infeliz decisão ficará nos anais do sacrifício judicial de um direito pessoal nuclear no altar do populismo antipolítico. É uma péssima ocorrência na história do Estado de direito constitucional entre nós.

Adenda
Voltei a este assunto num post mais recente

Ainda nos 40 anos da CRP

Na próxima semana, dia 14/12,  estou aqui:


Etiqueta

Nas minhas diversas incursões na política sempre me considerei um académico emprestado transitoriamente à atividade política. E, seguindo o conselho de Novalis, sempre voltei para casa, isto é, à Universidade de onde nunca saí efetivamente.
Mas verifiquei que a etiqueta política, por mais transitória e longínqua que seja, é como uma tatuagem indelével na testa. Uma vez político, sempre político. Assim, por exemplo, ao dar notícia de uma recente troca de opiniões que mantive com outro professor universitário, sobre uma matéria que aliás ensino há muito, um comentador identificou o meu opositor como "professor de Direito" (que é efetivamente), e a mim como... "antigo eurodeputado socialista".
Ou seja, mesmo num debate entre académicos, a minha efémera qualidade de eurodeputado, aliás terminada há mais de dois anos, prevaleceu sobre a minha qualidade permanente de professor de Direito, apesar de aquela minha participação política ser irrelevante para o caso, pois não foi tida nem achada no referido debate.
Não enjeito obviamente (pelo contrário!) a minha participação política ao longo dos anos, desde a oposição à ditadura até ao Parlamento Europeu, mas entendo que não se deve misturar alhos com bugalhos.

Adenda
Há bem pior, todavia. Por vezes ainda me identificam como "ex-comunista", como se o tivesse deixado de ser há pouco, apesar de ter deixado o ser há mais de 25 anos e de desde então estar publicamente ligado ao PS (quase o dobro do tempo que pertenci ao PCP), quer como apoiante quer como deputado.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Fingidor

Passos Coelho afirma que «o PSD não é de direita».
Mas finge bem! E, parafraseando Pessoa, finge tão bem, que chega a fingir que é aquilo que deveras é...

A fortuna e a prudência

1. Sim, o poder de compra das pessoas está a subir, mercê da "devolução de rendimentos" por via orçamental e da recuperação do emprego, iniciada logo em 2014. E a gente está a aproveitar para consumir mais (automóveis, electrodomésticos, viagens, restaurantes, etc.) e a regressar lentamente ao nível de vida de antes da crise. O benigno clima social e político reflete essa evolução.
Tudo isso é bom e é bem-vindo.

2. Mas a recuperação do nível de vida anterior à crise vem acompanhada do regresso de alguns dos antigos vícios que favoreceram a mesma crise, a que se somam outros trazidos por ela.
Por isso, o estado de felicidade geral não devia fazer ignorar os fatores menos positivos, que podem trazer uma "aterragem" desagradável lá mais para a frente, a saber:
   - a contínua quebra do investimento (a começar pelo investimento público), que compromete o futuro do (já modesto) crescimento económico;
   - o aumento do endividamento das famílias (crédito à habitação e ao consumo), alimentado pelos juros baixos e pela expetativa de que assim continuem;
   - o reduzido nível de poupança interna e de equity doméstico, que favorece o endividamento externo da economia e a venda de ativos empresariais ao estrangeiro (incluindo bancos e infraestruturas);
   - a retoma do aumento da despesa pública, reforçando os gastos mais rígidos (despesa com pessoal e pensões), que retira flexibilidade à política orçamental e pressiona a política fiscal;
   - o excessivo rácio de dívida pública e do spread em relação aos títulos alemães e espanhóis, que sobrecarrega as contas públicas e adia a mudança de notação desfavorável das agências de rating.

3. Além do risco que representam em si mesmos para a sustentabilidade da retoma económica e da consolidação orçamental, estes fatores tornam o país especialmente vulnerável a algum "evento" externo que afete o atual ciclo económico positivo (que muito deve ao petróleo barato) ou a era dos juros baixos em que vivemos (cortesia do BCE).
Nesta época de enorme incerteza e de volatilidade política (Brexit, Trump, triunfo da demagogia populista) convém apostar mais na prudência e confiar menos na fortuna.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Arrasem-se?

1. Não concordo com esta tese de Nuno Garoupa, propondo a extinção das autoridades reguladoras da economia.
Antes de mais, há afirmações radicais sem fundamento, com a de que a Lei-Quadro de 2013 «não teve qualquer impacto relevante». Ora, foram muitas e algumas importantes as alterações, como o alargamento da duração do mandato dos reguladores e a proibição da sua recondução, a submissão dos indigitados ao filtro curricular da CRESAP e ao escrutínio parlamentar antes da sua nomeação, o reforço da autonomia orçamental, dos poderes e da transparência dessas entidades. Além disso, algumas entidades reguladoras que eram institutos públicos comuns (administração indireta do Estado) foram transformadas em entidades independentes (como a ERSAR e a AMT),
Outra afirmação infundada é a de que «os tribunais não desempenham qualquer papel minimamente relevante» no controlo judicial da regulação, o que ignora a revolução da nossa justiça administrativa em geral desde 1976 e o papel específico do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, criado em 2011 (aliás integrado na ordem judicial comum).

2. Quanto à tese principal, a da extinção, não me parece que as premissas justifiquem a extinção geral das autoridades reguladoras independentes.
Elas tem em Portugal a mesma razão de ser que têm em qualquer outro país onde se operou a transição de um "Estado intervencionista" para um "Estado regulador", concentrado na defesa da concorrência e em dar resposta às falhas e insuficiências do mercado, incluindo a garantia dos "serviços de interesse económico geral" (SIEG), como é próprio de uma "economia social de mercado".
Entre essas razões contam-se as seguintes:
  -  a desgovernamentalização e despolitização da regulação do mercado;
  - a imunidade da atividade reguladora às mudanças do ciclo eleitoral, em prol da continuidade e previsibilidade da regulação;
  - a separação das funções do Estado empresário e do Estado regulador, nos setores em que há operadores públicos (como na banca, nos transportes ferroviários e aéreos, nas águas e resíduos), como garantia da neutralidade e da imparcialidade da regulação;
   - reduzir o espaço para "captura regulatória"e para a troca de favores políticos;
   - facilitar a autossuficiência financeira das entidades reguladoras, através do princípio "regulado-pagador", deixando de ter encargos orçamentais.
Não se vê como é que as direções-gerais dos ministérios poderiam cumprir esta missões.
Não se fica a saber se a operação geral de limpeza incluiria também a extinção das funções reguladoras do Banco de Portugal e a supressão da Autoridade da Concorrência. Em todo o caso, seria absurdo imaginar, por exemplo, uma direção-geral do ministério das Finanças a voltar a regular a banca ou o mercado de valores mobiliários ou o mistério da Economia a desempenhar as funções de defesa da concorrência.

3. O que se pode discutir - como faço no meu ensino e nas minhas intervenções públicas sobre a matéria - é se se justifica manter um tão grande nível de especialização e de fragmentação das entidades reguladoras.
Assim, desde há muito defendo uma redução e concentração das autoridades reguladoras existentes, mediante as seguintes operações:
  - adoção do modelo twin peaks na regulação financeira, com apenas duas autoridades reguladoras, em vez das três atuais;
  - agregação de todas as atuais autoridades reguladoras das utilities e das "indústrias de rede" (energia, telecomunicações e serviços postais, água e resíduos) num só regulador transversal (seguindo o modelo alemão), com exceção dos transportes;
  - junção das duas atuais autoridades reguladoras dos transportes numa só, com competência para todo esse setor.