quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

"Boticário de província"

O meu artigo na 3ª feira no Público sobre as restrições legais na criação de novas farmácias desencadeou a fúria trenga de um “boticário de província”, o qual, depois de me acoimar contraditoriamente de «comuna empedernido» e «liberal empedernido», entre outros mimos – como certa gente pensa que o ataque pessoal gratuito pode substituir a vacuidade dos argumentos próprios!... –, se esforça depois ingloriamente para alinhar duas ou três considerações irrelevantes para defender o actual regime.
É fácil desmontar o débil aranzel, o qual de resto silencia os pontos mais comprometedores da situação existente (como a insuficiência de farmácias, os muitos casos de propriedade fictícia e o seu valor especulativo no mercado).
Assim, como refere hoje mesmo o Diário Económico, um estudo encomendado pela Comissão Europeia revela que Portugal está entre os países onde o acesso à actividade farmacêutica (incluindo o regime de criação de farmácias) é dos mais restritivos. Tirando o caso especial da Suécia, onde as farmácias constituem um monopólio do Estado, trata-se de países do sul da Europa, onde a tradição corporativista e proteccionista é mais forte. Nos países onde essas restrições são maiores, nomeadamente as de carácter geográfico e populacional, elas estão a ser atacadas pelas respectivas autoridades da concorrência (Espanha, Itália, por exemplo).
O argumento de que essas restrições visam garantir a existência de farmácias no interior e nas zonas rurais é perfeitamente hilariante. É evidente que só existem candidatos nessas zonas porque elas são rentáveis mesmo aí. A abolição das restrições só faria aumentar o seu número. Há muitos farmacêuticos que gostariam de ter a sua farmácia, mesmo com reduzida rentabilidade.
Nas minhas controvérsias sobre este assunto costumo lançar um desafio aos defensores do “status quo”: por que não um referendo a todos os farmacêuticos sobre o assunto?
Não conheço nenhum beneficiário de um privilégio que não defenda que não se trata de privilégio, mas antes de uma forma de defesa do “interesse público”. De vez em quando, os privilégios corporativos podem ter certas vantagens sociais como "efeitos colaterais". Neste caso, nem isso. O malthusianismo na criação de farmácias não favorece ninguém, a não ser os actuais proprietários, com prejuízo de toda a gente, designadamente os demais farmacêuticos, o público em geral e o Estado. Pura vantagem particular; pura lesão do interesse público.
A abolição dos referidos limites só teria dois efeitos: (i) aumentar o número de farmácias e fomentar a competição entre elas, para bem do público; (ii) diminuir o valor especulativo do trespasse de farmácias, facilitando a sua transmissão e pondo fim a um escandaloso enriquecimento sem justa causa dos seus proprietários.
Desnecessário será dizer que prefiro um mercado bem regulado do que um arcaico corporativismo protegido, que é o que temos no sector farmacêutico desde o Estado Novo. Como deixa entender o referido estudo da Comissão Europeia, este regime não tem muito futuro à sua frente e os seus beneficiários sabem-no. Por isso perdem a tramontana sempre que alguém mostra a sua irracionalidade.

Vital Moreira