sábado, 22 de novembro de 2003

O farol e o paraíso

Ao fim de vários anos de visitas frequentes - por motivos académicos e afins - não cessa de aumentar a atracção que sobre mim exerce Veneza. Quanto me sobra o tempo (o que é raro, porém), pego no encantador roteiro veneziano de Corto Maltese, o meu herói de banda desenhada predilecto, que dois amigos de Hugo Pratt coligiram depois da sua morte, e lanço-me à descoberta dos seus percursos secretos, que escapam aos viajantes apressados ou turistas mundanos. Por vezes acabo no "La Corte Sconta", o restaurante que leva o nome de uma das últimas aventuras do mítico marinheiro maltês.
Sem receio de heterodoxia, não me cativa menos o Lido, quanto mais não seja porque é de lá que melhor se pode admirar Veneza, naqueles inefáveis fins de tarde de Outono, em que a luz é quente, diáfano o ar e a cidade do outro lado brilha em todo o seu esplendor. Mas não só. O característico hotel "arte nova" em que normalmente fico alojado, a dois passos da praia e do Grand Hotel des Bains faz-me evocar amiúde a "Morte em Veneza" de Visconti, bem como Thomas Mann e Gustav Mahler, o grande escritor e o grande compositor a quem o realizador recorreu para construir o seu pungente filme veneziano.
Foi lá, na ponta do comprido molhe da barra principal da laguna, numa das extensas corridas que adoro fazer ao longo do mar, que deparei, num bloco de betão no sopé do farol, com a caligrafia elegante de um dos mais eloquentes "graffiti" que me foi dado alguma vez registar: "O farol é a vida, o paraíso pode esperar" [Il faro è la vita, il paradiso può attendere].
A expressiva frase logo me fascinou, pelo que não tardei a escolhê-la como mote pessoal da minha correspondência electrónica. Intrigados, alguns dos meus amigos e correspondentes perguntam-me por vezes pelo sentido da inscrição. Costumo dar uma explicação cândida, por exemplo: "o que importa é não navegar às escuras; o porto de destino, esse pode aguardar". Ou: "mais do que buscar cegamente o incerto paraíso importa iluminar e explorar bem as rotas que lá podem eventualmente conduzir". Ou ainda: "o que importa na vida é o espírito esclarecido e a liberdade de orientação; a felicidade, se houver, vem por acréscimo, quando vier".
Cada vez me identifico mais com essa metáfora veneziana, no que penso, escrevo e faço!
(Dentro de dias revisitarei o "meu" farol na ponta do Lido...).

Vital Moreira