quarta-feira, 3 de dezembro de 2003

Dezembro

No Primeiro de Dezembro vou comer arroz à valenciana, descascar um melocotón, oferecer rebuçados de Badajoz aos meus amigos e pagar mais uma prestação no Banco Santander.
Sei que podia comer cozido à portuguesa, mas quem me garante que a orelheira de porco e o grão não são espanhóis? Podia descascar um pêssego, mas quem me garante que não foi nado e criado na Andaluzia? Podia chupar rebuçados Bayer e aí já estava mais descansado, pois todas as manhãs, na Amadora, quando o vento passa mais rápido e guloso, recebo nas narinas o aroma anizado da fábrica artesanal dos rebuçados, ali tão perto. Também podia pedir um empréstimo à Caixa Geral de Depósitos, mas quem me garante que daqui a uns anos não estaria a pagar juros aos espanhóis?
Neste capítulo a minha identidade nacional não sofreria grande mossa, pois o dinheiro não tem pátria.
O Primeiro de Dezembro da minha juventude não dispensava o desfilar dos lusitos da Mocidade Portuguesa, de verde e bivaque, e a exibição dos barrigudos legionários com uma obsoleta Mauser, capacete da guerra de 14 e cantil vazio.
Não sei o que deu ao acrisolado (desde os ultra-românticos que não ouvia esta palavra) patriotismo do dr. Portas para não escolher este dia como o da Defesa Nacional. Ou foi apressado ou teve um ataque de amnésia ou os seus assessores foram influenciados por obscuras forças espanholas.
Não fora a idiossincracia terrunha do nosso ministro da Educação, que admite o Big Brother como uma manifestação cultural em tudo semelhante ao “Se Bem me Lembro” de Vitorino Nemésio, e eu já saberia e os portugueses já saberiam que, com subsídio do Corte Inglés, Cervantes vai substituir Camões e o “Lazarillo de Tormes” a “Menina e Moça” de Bernardim.
Não tenho nada contra os espanhóis, excepto a hipocrisia dos portugueses em relação a eles.
Sou dos que agradecem a tragédia do Prestige só para ficar a saber como o dr. Portas é devoto de Nossa Senhora de Fátima.
Sou dos que agradecem o TGV delineado pelos espanhóis, caso contrário, começava em Bragança e terminava em Celorico da Beira, o que não viria a acontecer, pois o lobby sulista havia de conseguir que unisse Capital do Gótico (Santarém) à capital do Nada (Lisboa).
Para nosso benefício, deixemos tudo na mão dos espanhóis e, com o sentido de Estado que Manuela Ferreira Leite tem, tentemos vender-lhe, sem obrigações nem alcavalas, o Santuário de Fátima, devidamente orçamentada a percentagem para os cultores da azinheira. Porque, tirando Santa Teresa de Ávila, de um misticismo erótico, que raio de Santa ou Virgem é que os espanhóis têm?
Devemos tratar bem os nuestros hermanos, porque os amigos escolhem-se, mas os irmãos suportam-se, quando não se matam por causa de uma pobre herança.
E este país que herdámos hoje mais parece reduzido a um condomínio fechado, penhorado ao dinheiro de Castela.
Para sermos simpáticos, deveríamos esquecer que existiu o Primeiro de Dezembro e justificar a defenestração do traidor (era traidor ou herói? pragmático, cínico ou idealista? funcionário zeloso ou intriguista mór?). Há muitas perguntas a que só o cardeal Kissinger Richelieu poderia responder. Infelizmente, um nada sabe de história e o outro morreu há muito tempo.
Deixemos que sejam apenas os espanhóis a celebrar o Primeiro de Dezembro. Eles é que tiveram sorte.

Rogério Rodrigues