quarta-feira, 28 de janeiro de 2004

21 Gramas



don't grow up too fast
and don't embrace the past
this life's too good to last
and I'm too young to care

don't kid yourself
and don't fool yourself
this life could be the last
and we're too young to see
[...]
It scares the hell out of me
and the end is all I can see.


MUSE, in "Blackout" & "Apocalipse Please"

O desespero
Quando assistimos a um jogo de futebol temos a companhia do cronómetro, no canto superior direito do nosso televisor, que marca os 90 minutos da partida e os poucos que se acrescentam de descontos. Na noite de Guimarães, esse cronómetro demorou mais de um quarto de hora a parar. Demasiado tempo. O período de tempo que a vida tentou descontar à morte e que se chama "desespero".

O golo
A jogada do golo do Benfica define Miklos Fehér como jogador. O húngaro assistiu Aguiar para o golo, mas inadvertidamente - porque falhou o remate para a baliza. Fehér era sobretudo um jogador esforçado, à procura do ânimo que levou algumas revistas estrangeiras a considerá-lo, poucos anos atrás, como um dos mais promissores jovens jogadores do Velho Continente. Um jogador a quem o "Quase" de Mário de Sá-Carneiro vestiria tão bem como o equipamento do Benfica.

A ironia
Um jogador que festejava os seus golos com um toque elegante da mão direita no peito.

O belo
Um homem belo. Jovem. Uma mulher que assistia ao jogo em directo, no momento em que o jogador sorriu após ver o cartão amarelo, disse "Que belo jogo de futebol!". Miklos tinha o estofo de um galã de cinema, de ídolo pop para adolescentes, ou de rentável fonte de receitas na venda de camisolas se possuísse o talento de Beckham.
Era jovem e belo e vimo-lo morrer. E aqueles que amam o futebol e trocariam quase tudo pela sensação de vestir a camisola do seu clube dentro de um estádio de verdade, identificam-se com estes jogadores que lutam sempre.
Para os seus companheiros de balneário obviamente que não, mas para nós - meros admiradores destas figuras bidimensionais que nos alimentam os sonhos pela televisão - o choro é maior quando o morto é a mais bela presença em todo o estádio.

O companheiro
Tomo Sokota. Não porque o croata tenha demonstrado maior ou menor sofrimento do que qualquer outro colega - questão ridícula. Mas porque desejaria ter a verve de Javier Marías para contar - como ela merece - a história do companheiro de ataque que, como na mais perfeita dupla de avançados, permaneceu ao seu lado até ao fim. O primeiro a assisti-lo, o único que pareceu não abandonar o seu posto no terreno, impotente face aos defesas da morte, à espera que Fehér se desmarcasse de volta a nós.
No próximo jogo e daí em diante, O Benfica apresentará o que uma gíria cruel poderia designar de "reforços de inverno". Toda uma nova equipa composta pelos mesmos nomes mas por inteiramente novos homens. Um grupo de indivíduos obrigados a testemunhar a tragédia de um igual. E, ao contrário do que se repetiu por todas as televisões, não é a vida que "é assim". A morte sim. Nós vimo-la.

A primeira vez
Sonhamos viver a mesma sensação que um craque vive ao marcar golo. Mas nunca nos aproximámos do que um verdadeiro jogador de futebol sente. Até domingo passado, no período de tempo do desespero, em que estes foram apenas homens.

A catedral
No próximo jogo na Luz, durante o minuto de silêncio, fará mais sentido do que nunca chamar ao estádio de "Catedral".

A pornografia
Miguel Prates, que conduzia a emissão na SportTV, um canal cabo que vive dos seus assinantes, finda a transmissão em directo disse que não voltariam a passar as imagens da última queda do jogador, "Que nada acrescentariam". Pornográfico é o que todos os outros canais fizeram, passando as mesmas imagens até à náusea. Pornografia é José Mourinho vir dizer que "trocava uma vitória pela vida de Fehér" (!), um comentador desportivo dizer que o Benfica ficava com "um problema de avançados", ou o jornal Record permitir-se avaliar e cotar a prestação do jogador em campo. É verdade que o mundo está cheio de cães, mas não compreendo a sua insistência em querer obrigar o resto de nós a urinar contra os postes.

O título
"21 gramas" é o título do último filme de Alejandro González Iñárritu. No seu trailer diz-se que perdemos 21 gramas no exacto momento da nossa morte. Pergunta-se aí quanto pesa a culpa, quanto pesam o sofrimento e a vingança. Interrogações retóricas. Subentende-se, para os cristãos, o peso de uma alma. No caso do elegante Miklos Fehér, talvez os 21 gramas - a sua incomparável leveza, se tenham apenas tornado insustentáveis. Ou talvez fosse o peso do seu destino surdo, que ditou o fim do jovem húngaro, muitos quilómetros longe de casa, numa noite portuguesa de chuva e frio.

Luís Filipe Borges