Com a sua morte desapareceu um resistente anti-salazarista como poucos, um universitário zeloso que deixa obra de mérito e sobretudo uma estimável pessoa.
2. Na sua entrevista autobiográfica ao "Expresso" a propósito da atribuição do Prémio Pessoa (que António Manuel Hespanha digitalizou e se encarregou de disponibilizar na sua página pessoal na net), J. J. Gomes Canotilho recorda a personalidade de Orlando de Carvalho, «um prodígio de cultura, [que] recitava poesia em várias línguas até às tantas da manhã».
É uma justíssima invocação do intelectual - ele também professor de Direito - que tanto marcou sucessivas gerações de estudantes e de professores de Coimbra, fosse nas tertúlias do Tropical ou da Clepsidra, fosse nos múltiplos espaços por onde prodigalizou o seu talento e energia (Clube de Cinema, etc.). Além de tradutor de poetas (Ungaretti, Saint-John Perse, Lorca), era ele mesmo poeta, tendo chegado a reunir em livro a sua poesia ("Sobre a Noite e a Vida", 1985). Embora assumidamente de esquerda (além de católico praticante...), sublinhava a sua independência partidária.
Quem teve o privilégio de privar de perto com ele não pode deixá-lo cair num injusto esquecimento.
3. Na mesma entrevista, divagando sobre a sua intervenção política, Canotilho conta como nós
Entendeu-se que o projecto deveria ser ratificado pelo comité central. Canotilho e eu fomos chamados a participar na reunião convocada para o efeito. Surpreendeu-nos verificar que não eram poucos os que tinham lido o documento. O projecto passou sem reparos de maior. As poucas reservas levantadas tinham a ver com a alegada falta de expressão da "dinâmica revolucionária", entretanto criada, "a caminho do socialismo". Não foi difícil rebatê-las. O projecto era tudo menos ousado, além de razoavelmente ortodoxo. Ainda mais sumária foi a resposta à dúvida de alguém sobre a pertinência de prever expressamente a proibição absoluta da pena de morte, como constava no projecto. Aí foi Álvaro Cunhal pessoalmente a defender que o partido não deveria deixar dúvidas sobre essa matéria, que pertencia à nossa tradição liberal progressista.
Achámos que tínhamos dado boa conta da tarefa. Mas nessa altura, empenhado como estava em dinamizar o "movimento popular de massas", talvez a Constituição não fosse a principal preocupação do PCP...
Vital Moreira