1. Uma grande comunicação
Em grande forma está sem dúvida o Presidente da República, a julgar pelo poderoso discurso na abertura do ano judicial hoje proferido. Palavras claras, conteúdo forte, propostas consistentes, desafios estimulantes. Um verdadeiro "safanão" no ambiente judicial (para utilizar um termo usado pelo PGR, na mesma sessão, a outro propósito), sobretudo no área da justiça penal, tirando a moralidade dos atropelos cometidos no caso Casa Pia (embora sem mencionar explicitamente este processo).
De destacar numa primeira impressão: a importância da formação dos operadores judiciais (juízes, ministério público e advogados), com a original proposta de uma fase de formação comum a todos eles; a importância da sensibilização dos juízes para os valores constitucionais; a defesa do escrutínio público da justiça; o direito dos arguidos a conhecer os factos que lhe são imputados; a aplicação do segredo de justiça aos jornalistas, nos termos da lei; o reforço da cadeia hierárquica no Ministério Público; a sugestão de controlo judicial da decisão de arquivamento de processos pelo MP; a sugestão de reconhecimento do chamado "recurso de amparo" para defesa de direitos fundamentais.
Em suma, recados cortantes em várias direcções: juízes, Ministério Público, comunicação social.
2. Segredo de justiça e jornalistas
Entre as mais importantes das posições presidenciais conta-se seguramente a insistência na subordinação dos jornalistas ao segredo de justiça, até que a acusação se torne definitiva. O Presidente não poupou argumentos na denúncia das posições que até agora têm permitido a situação de impunidade corrente, apesar da clareza da lei, mesmo perante situações em que órgãos de informação transcrevem expressamente peças de autos em segredo de justiça ou invocam ostensivamente os autos como fonte.
Na minha crónica de amanhã, 3ª feira, no "Público", escrita antes de conhecer o discurso presidencial [ver agora aqui], pronuncio-me também no sentido de que, sob pena de o segredo de justiça se tornar irrelevante, ele não pode deixar de se impor também aos jornalistas, desde que limitado ao mínimo necessário para salvaguardar os valores que o justificam.
3. "Recurso de amparo"
Entre as sugestões adiantadas pelo Presidente da República, neste caso a título interrogativo, conta-se a instituição do "recurso de amparo", ou "queixa constitucional" entre nós - ele existe por exemplo na Alemanha e na Espanha -, de modo a permitir a qualquer interessado recorrer para o Tribunal Constitucional, em última instância, de qualquer decisão ou acto público (incluindo de decisões judiciais) quando lesivo de direitos fundamentais. Hoje só se podem levar ao TC questões de constitucionalidade de normas aplicadas (ou não) pelos tribunais, não das decisões individuais em si mesmas.
A ideia é sem dúvida atraente, mas tem fortes contra-indicações: perigo de inundação do TC, alongamento dos processos judiciais, agudização da hostilidade dos tribunais comuns contra o TC, entre outras. São estas reservas que explicam a rejeição dessa figura até agora nas sucessivas revisões constitucionais em Portugal. Estes obstáculos podem ser atenuados, mas há remédios que podem matar se não forem administrados com cuidado...
Vital Moreira