domingo, 11 de janeiro de 2004

O sono dos justos e os monstros da razão

O processo da Casa Pia está a ter efeitos demolidores não só no sistema de justiça e no estado de direito, mas no próprio bom senso e na sanidade mental de muita gente responsável. À confusão de valores juntou-se a confusão sobre a natureza das coisas, mesmo quando elas são completamente distintas. E como a liberdade é o mais precioso dos bens mas também o mais vulnerável, começou já atacar-se a liberdade a pretexto de defender o segredo de justiça. Sintoma revelador: a tentação censória tomou de assalto alguns espíritos até aqui insuspeitos de inclinações autoritárias.

Veja-se o artigo (oportunamente desmontado por Vital Moreira e Miguel Sousa Tavares) em que Pacheco Pereira leva as suas velhas obsessões conspirativas a um ponto delirante e de manifesta má-fé intelectual. Veja-se a recente intervenção parlamentar de Assunção Esteves, presidente da comissão de Assuntos Constitucionais, visando a restrição da liberdade de imprensa. Mas veja-se, sobretudo, porque o assunto foi menos falado, o convite explícito que o bastonário da Ordem dos Advogados dirigiu aos jornalistas no sentido de estes se "censurarem" (sic). A propósito: já se reparou como José Miguel Júdice fala cada vez mais e parece perdido na lógica e coerência das suas sucessivas declarações?

Como o processo da Casa Pia entrou em rédea solta e atingiu um grau de puro surrealismo judicial (vide os episódios das cartas anónimas e do álbum de fotografias apresentado às testemunhas), a lucidez das mentes parece também ter já sido contaminada pelo vírus da surrealidade e pelo pânico desta corrida para o abismo. Que é que está em causa, afinal? Os factos ou as notícias sobre os factos? Protegidos pelo segredo de justiça, os factos deixariam de sê-lo - ou só passariam a sê-lo quando o processo se tornasse público? E então? A solução (bem provisória e ilusória) será esconder os factos - e factos de uma gravidade inusitada - em nome do segredo de justiça (que, aliás, não tem aqui qualquer relevância) e permitir a ocultação de situações de inexplicável e absurdo arbítrio judicial?

Como já foi lembrado, antes punha-se o acento tónico na necessidade de rever os prazos do segredo de justiça, de modo a contrariar a manipulação das fugas de informação. Agora,
defende-se o contrário. Antes, pretendia-se a transparência total, agora quer-se tapar o sol com a peneira. Será que dormiremos o sono dos justos enquanto o sono da razão judicial vai gerando novos monstros?

Vicente Jorge Silva